Tinha sete anos quando foi pela primeira vez a um endocrinologista. Foram dezenas os especialistas de nutrição que consultou ao longo da vida. A guerra entre Magda Gonçalves e a comida durou quase 30 anos. Durante este período, oscilou de peso dezenas de vezes. “Quando não estava e perder peso, estava a recuperá-lo”, recorda a autora do livro em conversa com a NiT.
2011 foi o ano em que tudo mudou, porque foi quando foi internada num centro de recuperação nos Estados Unidos e percebeu que tinha um distúrbio alimentar, muito diferente daqueles a que estamos habituados a ouvir falar. Chama-se “binge eating disorder” e reflete-se numa relação muito pouco saudável com a comida, que passa a ser o escape e fonte de refúgio para ignorar todos os outros problemas da vida, que podem ser conscientes ou inconscientes.
Depois de recuperar, Magda deixou de trabalhar na área de organização de eventos corporativos e formou-se em psicologia alimentar no Institute of the Psychology of Eating, a escola líder mundial em psicologia alimentar, nos Estados Unidos. A exercer a profissão de coach em Psicologia Alimentar desde 2014, o trabalho de Magda passou a ser o de ajudar todas as pessoas que sofrem do mesmo problema que ela.
E o intuito do livro que acaba de publicar — “Vencer a Batalha com a Comida”, editado pela Matéria-Prima —, onde também relata a sua história, é ajudar as pessoas a identificá-lo.
Apesar de já manter um peso saudável há anos, a especialista admite que esta é uma adição como qualquer outra e que, por isso, a vai acompanhar a vida toda. Leia a entrevista completa.
Chegou a pesar 115 quilos, mas também pesou 58. Teve uma oscilação de peso de 57 quilos.
Não oscilei só uma vez entre esse tão pouco e tanto peso. Eu entre os cinco anos e 32 oscilei inúmeras vezes. A vez em que a diferença foi maior foi quando perdi 50 quilos. Mas também perdi muitas vezes 20 quilos, 10 quilos, 15 quilos e até 30 quilos. Depois, ou recuperava tudo, ou recuperava um pouco, ou ganhava ainda mais do que aquilo que tinha. No fundo, desde criança que isso me aconteceu muitas vezes mesmo.
Há um motivo específico para isto ter acontecido?
Eu sempre pensei que gostava muito de comer, que era glutona, que era um bom garfo. Desde muito pequena que fui encontrar na comida algo que era maior do que o seu valor nutricional e funcional. Claro que eu, na altura, não fazia a mínima ideia disto. Achava só que gostava muito de comida e que tinha muito apetite. Aquilo que eu hoje sei, e que sei há alguns anos, é que eu fiz da comida o meu melhor amigo, o meu pior inimigo, onde eu me vingava das coisas, onde eu ia buscar força, onde eu ia buscar conforto, onde eu ia afogar os meus medos e as minhas mágoas. Portanto, era um mecanismo de defesa e uma ferramenta para eu lidar com as coisas da minha vida com as quais eu não sabia efetivamente lidar. Obviamente, que isto é tudo um processo muito inconsciente — eu não sabia de nada disto.
Podemos comparar este comportamento a que outro tipo de adições?
Este é um comportamento compulsivo com a comida, como quem tem com o álcool, droga, sexo, compras, jogo. Há muitos comportamentos aditivos e obsessivos aos quais podemos ir buscar esta relação emocional e ligação que não conseguimos ir buscar às pessoas e a outros mecanismos de defesa para lidarmos com questões da nossa vida que para nós são problemáticas.
E é um trabalho para continuar até ao dia em que morra. É como no caso de um alcoólico: quando um alcoólico deixa de beber, e mesmo que não beba para o resto da vida, o álcool nunca lhe vai ser indiferente. A pessoa tem de trabalhar diariamente para não voltar a beber. Eu trabalho diariamente para não voltar a comer três pizzas inteiras ou não sei quantas refeições inteiras do McDonald’s de enfiada. Ainda há dias em que é isso que me apetece fazer, mas já tenho as ferramentas que me impedem.
Houve algum motivo, no seu caso, que tivesse espoletado esta dependência pela comida?
Quando fui internada nos Estados Unidos não fazia a mínima ideia de quais é que seriam as razões, porque tudo na minha vida era, aparentemente, normal. Eu não percebia os motivos para ter um distúrbio alimentar. Depois compreendi que não era preciso haver violência doméstica ou problemas financeiros horríveis. No fundo era a minha falta de autoestima, de autoconfiança e de horror ao sentimento de falha. Nós podemos ter um desconforto real ou imaginado. E o imaginado não é menos mau que o real. Eu tinha muitos desconfortos e inseguranças imaginadas.
Como por exemplo?
Por exemplo: o meu pai dizia-me com a melhor das intenções, na minha adolescência: ‘Magda, tu podes ser o que quiseres, desde que sejas muito boa ou a melhor naquilo que fazes’. Eu gravei aquilo com uma carga de responsabilidade tão grande na minha cabeça que sentia que não podia, de forma nenhuma, desiludir ou desapontar o meu pai. Em tudo aquilo que eu fazia, eu metia na cabeça que tinha de ser perfeita. Em todos os trabalhos que tive — antes eu trabalhava em eventos corporativos — tentava fazer as coisas da melhor forma possível e parecia que quanto mais eu tentava fazer bem, mais me saía o tiro pela culatra. A pressão que eu punha em mim era tão grande que eu não conseguia digerir um incumprimento que fosse.
Chegar atrasada, por exemplo, a qualquer sítio era um filme de terror para mim: achava logo que iam achar que eu tinha falta de caráter, que não me conseguia organizar. A verdade é que eu fui para gestão de eventos porque me achava extremamente organizada e conseguia cumprir regras tão bem. Achava que aquilo tinha tudo a ver comigo. A verdade é que teve o efeito oposto: levei o trabalho tão a sério e tão à risca, que não só não conseguia desempenhar as minhas funções, como acabei por deixar esse trabalho, porque, emocionalmente, não tinha capacidade para o gerir.
O que diz de nós a forma como comemos?
A forma como comemos é o espelho de como nós interagimos com os outros e é o espelho da nossa forma de estar na vida. Muitos dos meus clientes identificam-se com a forma de estar na vida do oito ou do 80: é o tudo ou o nada. Eu também era assim: de extremos. O meio termo não existia: ou eu estava, permanentemente, a fazer uma dieta (que podia durar seis meses, um ano, dois anos), ou então estava a recuperar o peso que tinha perdido. Por exemplo: eu casei-me com 58 quilos e quando vim de lua de mel já vinha com 60 e tal. Ou seja, eu engordei cerca de sete quilos em 15 dias. Nunca conseguia manter um peso: ou estava a emagrecer, ou a engordar. Agora (e há três anos) já mantenho um peso normal, saudável, que me permite andar com a roupa que quero e ter autoestima, que anda entre os 60 ou 62 quilos.
Algum dia achou que isso seria possível?
Eu pensava para mim: ‘Eu gosto tanto de comer. Como é que um dia eu vou conseguir ficar magra?”. Apesar de hoje comer de tudo, antes achava que isto era uma coisa impossível. Lembro-me de que quando ouvia aquelas pessoas dizerem: ‘Ah, eu como de tudo um pouco, mas com peso e medida, não me excedo, tenho as minhas regras’. O meu pensamento era: ‘Se tu vivesses dentro da minha cabeça, isso era impossível’. Os extremos eram de tal ordem, que se eu me permitisse comer, por exemplo, um bacalhau com natas, uma feijoada ou um arroz de marisco, comia um tacho inteiro. Se ia falhar, então ‘bora’ lá.
Em que outros campos da vida é que esta adição se refletia?
Eu não conseguia estar sozinha com os meus pensamentos e sentimentos. No fundo, com os meus próprios demónios. Eu tinha de ter sempre alguma coisa a acontecer: ou eu estava a planear algo, ou eu estava a pensar em algo que tinha acontecido. No momento, é que eu não podia estar. Eu tive que calar um bocado todo o barulho à minha volta, perceber porque é que eu era assim, perceber o que é que me levava a fazer as coisas da forma como eu fazia. No fundo, tive de fazer uma reprogramação a muitas coisas na minha vida. Eu costumo brincar e dizer que a única coisa na minha vida que é igual é o marido, porque de resto mudou tudo.
O que é que lhe dá prazer?
Gosto de apoiar os meus amigos, de sair, de sair sem ser para comer — para ir dar uma volta, por exemplo —, adoro ir ao cinema, ao teatro, adoro cozinhar (estou sempre a experimentar coisas novas) e adoro ir às compras, adoro maquilhagem, adoro ver séries. Eu não fiz nenhum transplante cerebral: eu continuo a gostar das coisas de que já gostava e por isso, continuo a adorar comer. Eu costumo dizer: comer é um dos maiores, senão o maior prazer que eu tenho na minha vida. Gosto muito de sexo, mas não sei se trocava comida por sexo.
As pessoas preocupam-se cada vez mais com a alimentação. Acha que se estão a ser demasiado severas com a comida?
Acho que sim. É algo com o qual eu trabalho diariamente com os meus clientes. Se um dia me apetecer um pão de deus da Padaria Portuguesa ou uma tosta do meu café preferido eu vou e como. De vez em quando também preciso de comer uma comida que não é tão saudável. Eu acho que é importante porque tudo o que é excessivo, a meu ver, não é bom. Não acredito em extremismos, sobretudo porque vivi com esse principio durante muitos anos e recuso-me a voltar lá. E acho que temos de aprender o que é que para nós faz sentido e o que é que é o nosso equilíbrio.
Acha que é possível olhar para a comida sem afeto, respondendo só ao estimula da fome?
Sim, há pessoas que só comem porque é preciso comer para sobreviver. Para pessoas como eu, que têm uma relação que vai para além do uso funcional da comida, não. É impossível. Eu vou ter sempre uma relação especial com a comida, que tem de ser trabalhada diariamente, de forma consciente, uns dias com mais, outros dias com menos dificuldade. Só assim é que pessoas como eu conseguem viver em paz com a comida.
Mas olhar para a comida ‘com afeto’ é mau?
Não. Pode ser bom. E eu sou muito apologista de que temos de olhar para a comida com afeto, desejo e prazer. Quando uma pessoa que sente esse prazer tenta eliminar essa relação emocional com a comida, isso vai durar pouco tempo. Nós não podemos mudar quem somos. Se alguém me disser que eu consigo ter uma relação simplesmente funcional com a comida e que não vou estar a pensar nela e que não vou desejar que chegue aquele dia para eu comer aquela coisa especial, eu digo que não. É impossível. Eu adoro comida. Amo comer.
Ainda há dias difíceis?
Há muitos dias difíceis. Muitos. Eu faço questão de nunca mentir aos meus clientes. E faço questão de ser o mais verdadeira possível com a minha própria história e com a minha batalha com a comida. Posso dizer que hoje vivo muito em paz com ela e com muito à vontade. Mas sim, ainda tenho dias muito complicados com a comida ainda, sobretudo nas alturas em que estou mais triste, frustrada ou com mais sentimento de impotência perante alguma situação.
O meu pai faleceu há sete meses e foi algo completamente inesperado e violentíssimo — um cancro na tiróide muito raro e agressivo. Do diagnóstico até à morte passaram dois meses. O facto de eu hoje estar exatamente com o mesmo peso que estava antes de o meu pai ter sido diagnosticado é a maior prova de como este processo verdadeiramente funciona. Nunca, em tempo algum, pensaria, que, atravessando uma situação destas muito complicada e de profunda tristeza, isto fosse possível. Eu consegui aplicar os princípios da psicologia alimentar à minha própria tristeza e desconforto.
Qual é o intuito do livro “Vencer a Batalha com a Comida”?
A intenção com a qual eu escrevi este livro foi porque eu vivi um filme de terror com a comida durante anos. Hoje em dia, vivo uma comédia romântica. Se eu conseguir transmitir, de alguma forma, que isso é possível a pessoas que estão a sofrer algo semelhante àquilo que eu estava a sofrer, então o meu trabalho já está feito. Acho que é importante que as pessoas não se recriminem, que não se sintam as únicas, porque há milhares de pessoas a sofrerem do mesmo. A ideia é ajudar as pessoas a identificarem o problema, algumas emoções ou situações. Se isso for o suficiente, fantástico. Se não for, podem consultar um especialista, que posso ser eu, ou outro especialista.
Este é mesmo um distúrbio como a anorexia ou bulimia?
É. Chama-se ‘binge eating disorder’. Interiorizar que eu tinha um distúrbio alimentar foi algo com qual me tive de debater muito. Este distúrbio tem sintomas tão visíveis como a anorexia e bulimia: o excesso de peso também é um sintoma. Eu lembro-me de como era tratada na rua quando tinha mais de cem quilos. As pessoas chamavam-me descontrolada, preguiçosa. É horrível. É uma descriminação brutal, sobretudo porque as pessoas não encaram este problema como um distúrbio. Há pessoas que vêem à minha consulta e não conseguem aceitar que isto é uma doença. E assim é muito mais difícil recuperar.
Há outra coisa que também é muito importante referir: o sofrimento com este tipo de comportamento com a comida não é obrigatoriamente proporcional ao excesso de peso ou à falta de peso. Pode haver pessoas com um peso normalíssimo, mas que estão constantemente a batalhar com um ou dois quilos e não conseguem viver em paz com a comida.
Este método de consulta com coach de psicologia alimentar resulta?
Tive uma cliente que chorou à minha frente porque não engordou no Natal e no ano novo. É a primeira vez que não engorda quatro ou cinco quilos naqueles quinze dias de festa. Tenho pessoas que, pela primeira vez, não estão com medo da chegada do verão, de ter de irem buscar a roupa de verão à arrecadação e de mostrarem os braços ou as pernas. Mas no fundo, sentem-se, sobretudo, felizes por acreditarem que não vão voltar àquilo que eram. É como no meu caso: sinto confiança de que não vou voltar engordar. Só posso contar com o dia de hoje, claro, e não posso ser demasiado confiante quando tenho a minha cabeça, mas se eu passei pela morte do meu pai e não engordei, então já posso dizer que tenho algum domínio. E é isso que as minhas clientes estão a sentir.
Também sentia pânico do verão?
Era um terror. Lembro-me de que, durante algum tempo, eu só encontrava calças na H&M porque há tamanhos maiores. Eu cheguei a ter o mesmo modelo da HM em 36, 38, 40, 42 e 44. Eu tinha cinco pares iguais de tamanhos diferentes. Ia passando de umas para outras. E eu vesti-as, a todas, várias vezes. Estava permanentemente a experimentar roupas. Era horrível. E agora só tenho um número. E serve sempre.
Todo o seu sofrimento teve um final muito feliz.
Sim. E de certa forma sinto-me grata pelo meu sofrimento porque, de outra forma, seria pouco provável ter um trabalho no qual me sentisse tão realizada como me sinto hoje. Portanto, de certa forma, ainda bem que isso me aconteceu.