Brasil, 2012. Gio Zignoni sabe situar quase ao momento exato o dia em que provou pela primeira vez café de especialidade. Terminada a refeição em casa de um cliente, o anfitrião ausentou-se para ir buscar os cafés. “Demorou imenso tempo. Achei um exagero, ali a pesar doses, a colocar no moinho”, recorda o italo-português de 40 anos, que questionou aquilo que lhe parecia “ser uma estupidez”.
Com toda a amabilidade, o anfitrião notou que se tratava de um café especial. “Ainda hoje carrego a cruz da resposta estúpida que dei, a mais portuguesa possível: ‘É especial? Especial de corrida?’”, atirou. Hoje, a uma década de distância, reconhece que a incompreensão tinha origem na falta de conhecimento — e qualquer dúvida que houvesse dissipou-se com o primeiro trago no tal café especial.
“Lá bebi o bendito café e é aquela experiência que não se esquece. Ainda hoje me recordo do sabor.” A curiosidade estava despertada, até porque Zignoni trabalhava com produtos gastronómicos, de vinhos a gelados, que distribuía em diversos países. Mais cedo do que tarde, toda a sua atenção estaria virada para o café, como um dos rostos da Senzu Coffee Roasters, um dos nomes fortes da torrefação de café de especialidade em Portugal.
Em apenas dez anos, o mercado do café de especialidade em Portugal passou do absoluto zero para uma tendência em crescimento franco. Só em 2023, o mercado nacional aumentou em mais de oito por cento, num crescimento sustentado aqui e um pouco por todo o mundo. Especialistas apontam para um crescimento de 13 por cento ao ano no mercado europeu até 2030. E, números à parte, basta passear pelas ruas de Lisboa e Porto para esbarrar facilmente numa coffee shop.
Caso o faça no Porto, é bem provável que uma delas pertença a João Vilar, um de três sócios da SO Coffee Roasters, que desde 2019 e com uma pandemia pelo meio, cresceu até aos quatro espaços — um deles em Lisboa. O advogado de 43 anos também teve o primeiro encontro com este tipo de café fora de Portugal, há mais de uma década.
Assumido fã de café, João chegou ao novo continente à procura de algo que não encontrou. “Pelo contrário, havia todo um outro tipo de oferta de cafés, no estilo, na forma de torrar. Habituei-me e acabei por deixar o café tradicional”, conta. Quando regressou, em 2015, acabaria por investir na área e eventualmente chegar à criação da SO Coffee Roasters, depois de algumas experiências noutros projetos.
O que é certo é que a tendência chega a Portugal com atraso, comparativamente com outros países europeus, um caso estranho tendo em conta a tradição existente no País. “Realmente, cá ou em Itália, o café comercial médio é melhor do que o que se serve em Espanha ou França”, nota Zignoni, que fecha aí a janela dos elogios. “Esta é uma generalização, mas o sabor que sentimos nesses cafés já não é a torra, já é queimado de tão intenso que é. Se fizermos uma prova cega dos cafés comerciais, identificamos madeira, terra, cinza. Tudo o que vem da torra e não da origem.”
Esse hábito tem uma consequência evidente, concordam ambos: passar do espresso bebido ao balcão, feito com café comercial, para um café de especialidade nem sempre é um caminho fácil. “Se já o beberem sem açúcar, a transição é mais fácil. Se estão habituados a beber o café com cinco ou seis gramas de açúcar, é complicado.”
Para o co-fundador da SO, essa é uma questão menos evidente nas gerações mais novas. “Estamos a falar de pessoas que estão há 20 ou 30 anos a beber o mesmo tipo de café com aquele sabor amargo, a queimado, a borracha”, explica. “Os mais novos, dos 20 aos 30, já têm uma abordagem diferente, viajam mais, experimentaram em Londres, em Madrid, em Barcelona. Nesse aspeto, o Starbucks, embora não seja exemplo, ajudou um bocadinho.”
Fazer nascer a tendência
Ligados ao café de especialidade há mais de dez anos, participaram nos projetos pioneiros que decidiram fazer diferente em Portugal. Zignoni começou na Vernazza — que foi o primeiro torrador e distribuidor deste café no País — e acabou a fundar a Senzu com Diogo Amorim e David Coelho. Hoje são um nome incontornável na cena do café de especialidade e além de servirem as suas criações no pequeno espaço na rua do Rosário, no Porto, correm o País em eventos — e distribuem também os seus grãos por outros espaços, de cafés a — cada vez mais — restaurantes que apostam em mais um fator diferenciador.
“Mostrar a ligação que o café pode ter com a parte gastronómica é algo que queremos fazer”, sublinha. “Vais fazer uma refeição de 200€ num fine dining, com wine pairing, e depois terminas tudo com um café de cápsula que podes beber em casa ou no café da esquina. Isso não faz muito sentido.” Os chefs concordam e a Senzu conta já com parcerias com espaços com estrela Michelin, casos do Euskalduna Studio, no Porto, e o Cura, em Lisboa.
É, contudo, uma opção ainda rara. “Começam a aperceber-se, por exemplo nos hotéis, que não podem ser um sítio de cinco estrelas e servir café igual ao que se serve do outro lado da rua”, nota antes de apontar para o caso dos Estados Unidos, que “durante anos não foi, de todo, uma referência no consumo de café”. “Hoje, até os hotéis de autoestrada de lá já servem café de especialidade. Na restauração a mesma coisa.”
Em 2014, quando João Silva regressou ao País vindo dos Estados Unidos, deparou-se com uma realidade completamente distinta. “Não havia nada de café de especialidade. Foi também aí que vi a oportunidade, sobretudo por causa do desenvolvimento em termos turísticos”, conta. Lançou-se com mais dois sócios com a Combi, uma carrinha que correu a cidade, depois passou para a 7G Roasters até chegar, em 2019, à sua SO Coffee Roasters.
“Os clientes eram sobretudo estrangeiros, até porque os portugueses tinham sempre uma reação negativa relativamente ao preço. Também por isso sempre lutamos para ter café a um euro — e mesmo assim achavam caro”, recorda. “E depois provavam e nem todos gostavam. Havia esse choque de sabor.”
Poder-se-ia pensar que vender café num País que se diz amante de café — embora esteja longe dos lugares cimeiros no consumo per capita — não seria uma tarefa super complicada. Acontece que o salto de um café comercial para o de especialidade é quase como se se tratasse de um novo produto. “É um processo. Se vem alguém que quer experimentar, tenho que ter sensibilidade. Bebe sem açúcar ou com açúcar? Se beber sem açúcar, já ajuda”, nota. “Talvez escolher um perfil de corpo mais intenso, mais cremoso, com notas de avelã e fruto seco, chocolate preto; e fugir um pouco dos single origins mais ousados, com notas super frutadas, mais ácidas e complexas, porque esse estará mais longe do ponto de conforto.”
Zignoni encontra paralelos noutras áreas que cortam com a tradição e procuram desbravar novos sabores, aromas e métodos — tudo novidades que inevitavelmente esbarram no lado mais tradicionalista e conservador dos consumidores. “Estamos a fazer o mesmo caminho que a malta das cervejas artesanais tem feito; ou mesmo o pessoal das padarias de fermentação natural”, diz, enquanto assegura que a tarefa está nas suas mãos e não nas do consumidor. São eles que têm que indicar o caminho. “Temos que ganhar a confiança das pessoas, levá-las a um ponto de conforto e depois ir puxando um bocadinho, arriscando. É um processo.”
O que é o café de especialidade?
“Tecnicamente, o café de especialidade é um café que foi avaliado por um q-grader [um profissional certificado especializado no grão] e que tem mais de 80 pontos [na escala de zero a 100]. E a conversa termina aí”, explica. A definição está formalmente correta, mas basta mergulhar uns minutos no mundo do café de especialidade para perceber que há rituais, receitas e uma obsessão com a perfeição e consistência que não encontram paralelo nos hábitos de consumo do português médio.
Ambos prosseguem com cautela e evitam a velha discussão do que é café bom e café mau. “É injusto colocar as coisas nesses termos, até porque são dois produtos completamente diferentes. Têm leques de aromas distintos”, refere João Silva, que aponta uma diferença crucial: o café comercial, o mais comum de encontrar nos supermercados e cafés, usa a espécie arábica, menos aromática e com mais teor de cafeína; no sentido oposto, o de especialidade é quase sempre robusta.
“A arábica é cultivada em altitude, em terrenos rurais, muitas vezes colhido à mão, por oposição aos grandes campos de robusta, ao nível do mar e colhidos com meios mecânicos”, aponta. “O Vietname há uns anos não produzia café e hoje é um dos maiores produtores de robusta do mundo. Depois vão as máquinas abanar as árvores para caírem os grãos, estejam eles verdes, maduros, com ou sem defeito. É muito diferente das produções onde cada grão é apanhado à mão.”
Nos espaços da SO Coffee Roasters, a escolha vem sempre acompanhada de um pequeno postal que conta a história de cada café, a sua origem e o seu produtor. Depois há os detalhes “mais geeks” como a altitude, o varietal e o método de processamento — tudo detalhes que influenciam os aromas que se irão sentir no produto final.
Tudo começa na planta, que demora três a quatro anos a dar fruto, até serem colhidas quando atingem o ponto de maturação ideal. A colheita é depois feita à mão, num processo moroso e detalhado. A partir daí, existem inúmeras formas de trabalhar o fruto até chegar ao grão verde, que depois chega às mãos destes torrefatores. Pelo caminho há quem opte por métodos de secagem ao sol, de lavagem, uns tiram polpa, outros deixam-na assentar em macerações carbónicas e fermentações mais ou menos longas. O experimentalismo é cada vez maior, mesmo contra as vozes mais tradicionalistas.
A rastreabilidade e negócio ético é também um dos eixos do negócio. “Não conseguimos ir a todos os produtores, mas trabalhamos com cafés de fazenda. O Diogo ainda há dois meses esteve na Colômbia a visitar um projeto. E é assim que consegues perceber o que se passa no terreno”, explica Zignoni, apesar de confessar que nem sempre é possível fazer as viagens, daí que trabalhem com vários intermediários de confiança. No entanto, a origem é sempre detalhada ao máximo. “Enviam-nos amostras para podermos fazer os cuppings [sessões de prova de café].”
“Há um espírito de seed to cup, como na restauração há o farm to table. O café comercial, por exemplo, está cotado em bolsa a dois ou três euros por quilo, e fazendo as contas até chegar ao produtor, ele recebe uma miséria. O café de especialidade está no ponto oposto: nós pagamos pela qualidade que é apresentada, não pelo valor em bolsa”, nota. “É preciso manter esse estímulo. São pessoas com um conhecimento ancestral, com uma elevada sensibilidade, e temos que garantir que têm uma vida decente em vez de viverem na pura miséria.”
Feito o trabalho do produtor, a responsabilidade cai nas mãos de quem vai torrar os grãos. E ambos concordam que a regra é “não estragar” o que já vem bem feito de origem. “Nós não queremos disfarçar nada ou dar-lhe determinadas características. Eu quero mostrar o que o produtor fez e não aquilo que nós somos capazes de fazer.”
E o que fazem pode ser provado de várias formas. Para lá da barreira já falada, é também preciso levar aos portugueses outros cafés para lá do amado espresso. Há quem prefira a suavidade do café de filtro, outros da versão com mais corpo feita na prensa francesa e até a peculiaridade da aeropress.
Quem preferir, pode trocar as cápsulas de casa pelo grão vendido inteiro, em saco. Mas onde termina a escolha pelo tipo de café, começa outro tipo de obsessão: a das receitas, dos métodos e da consistência, das temperaturas, dosagens e moagens caseiras. Tudo para chegar a uma palete de aromas impensáveis de descortinar numa chávena de café tradicional: ananás, ameixa, laranja, pêssego, chá preto, caramelo, massapão, melaço, mel, amêndoa. O céu é o limite.
A última e talvez mais complicada barreira para seduzir o público português é o preço. Os espressos custam dois a três euros. Os grãos, em saco, começam nos 14 a 16 euros por saco de 250 gramas, aproximadamente 56 euros por quilo.
“Antigamente havia cafés por todo o lado, havia aquele hábito de ir ao café da esquina beber um cafezinho e acabava-se a beber seis ou sete por dia. Hoje isso mudou, esse hábito mudou. O mercado mudou. As pessoas prestam mais atenção ao que estão a consumir”, nota Zignoni. “Há um café histórico à porta de minha casa, que cobra 80 cêntimos por um espresso com café comercial que sabe Deus o que é aquilo e que cafés leva o lote — não se sabe. E ali o café até é bem tirado, as máquinas são limpas. E nós cobramos por um de especialidade 1,5€. A diferença não é assim tão grande. Claro que em termos absolutos, quem beba dois ou três cafés por dia, torna-se incomportável.”
Mais uma vez, a chave poderá estar nos hábitos de consumo: menos frequente, com mais qualidade. “Acontece no vinho, na cerveja artesanal, nas padarias. Se calhar no dia a dia vamos ao supermercado comprar o pão; e ao fim de semana gastamos três ou quatro euros num de fermentação natural. Mas só o faço uma vez por semana”, frisa, apesar de saber que é uma luta constante, mas não perdida. “É um trabalho contra a história, contra hábitos e conceitos enraizados.”