“A distância mais curta entre duas pessoas é um sorriso”, uma frase do pianista e comediante Victor Borge que me veio ao pensamento quando ontem [domingo, 19 de março] soube da notícia da morte de Rui Nabeiro. Trabalhei cinco anos no departamento de Marketing e Comunicação do Grupo Nabeiro, antes de decidir mudar de vida, em 2017, e dedicar-me às lides artísticas. Durante esse período, tive o privilégio de privar algumas vezes com o homem que a maioria chama de Comendador Rui Nabeiro, mas que eu e todos os colaboradores da empresa chamamos de “senhor Rui”.
Para alguém que se habituou a vê-lo através dos meios de comunicação, ao lado das principais figuras do mundo empresarial e político, foi-me muito estranho interiorizar esta forma de tratamento tão ligeira para o dono de uma das maiores empresas de Portugal. Até o conhecer. O senhor Rui era o espelho dos valores que queria que a sua organização transmitisse dentro e fora de portas: verdade, integridade, humildade. Uma presença serena que ainda assim enchia uma sala e um verdadeiro contraste porque esta simplicidade tornava-o maior. Maior como a sua terra, um pedaço de Campo no Alentejo que hoje é uma vila vibrante e próspera como o seu legado.
Aprendi várias coisas durante o meu tempo na Delta, mas uma delas foi o próprio senhor Rui que me ensinou nos primeiros tempos em que estava na empresa. Durante um almoço com um grupo pequeno, quando chegou o café à mesa, segui um hábito antigo lá de casa e deitei um pacote de açúcar na chávena. “O café é melhor sem aditivos, senão não sabe a café, sabe a açúcar,” disse-me o senhor Rui num tom simpático mas de clara desaprovação. Eu — contente por não ter sido despedido na hora — respondi que ia fazer um esforço e bebi o meu cafézinho a sentir-me um verdadeiro ignorante. O senhor Rui sorriu e acrescentou: “Mas cada um bebe como quer”.
Rui Nabeiro era também este sorriso. Um sorriso que ele próprio gostava de oferecer aos outros mas que fazia por gerar nos outros, sempre que possível. Lembro-me bem de o ouvir discursar, por várias vezes em salas cheias, e de ficar impressionado com a forma como conseguia equilibrar as mensagens sérias com piadas que faziam a audiência gargalhar, num timing excecional digno de qualquer bom comediante. Foi numa dessas ocasiões que o ouvi fazer o seguinte apelo: “Não vos peço que trabalhem mais, peço que trabalhem melhor. Quero que venham felizes para o trabalho e que regressem felizes a casa”.
Uma mensagem poderosa e incomum na medida em que há dez anos quase ninguém falava sobre o tema da felicidade no local de trabalho e muito menos empresários portugueses de grandes grupos económicos. Mas Rui Nabeiro era e sempre foi uma exceção à regra. No verão quente de 1975, quando toda a gente regressava de Angola, fez o percurso inverso e comprou todo o café que conseguiu. Mais tarde houve falta de café, mas o empresário de Campo Maior tinha o armazém cheio. Houve muitos a querer comprar-lhe este stock, com grande margem, mas ele não vendeu e aproveitou essa vantagem para impulsionar a Delta Cafés no mercado.
Há quem chame espírito empreendedor, há quem diga que é visão empresarial, todas noções válidas para representar o ímpeto deste homem singular. Eu, puxando a brasa à minha sardinha, gosto de pensar que era também uma alma de artista que habitava em Rui Nabeiro, porque só alguém com esta veia pode ter tanta garra para superar obstáculos e ao mesmo tempo criatividade para tornar pequenos sonhos em extraordinários feitos.
Quando decidi que ia sair do Grupo Nabeiro para me dedicar à vida artística fui ao gabinete do senhor Rui anunciar a minha decisão e despedir-me. Nessa breve conversa houve duas frases que me marcaram. A primeira foi “tenho boa impressão de ti e por isso já sabes que tens estas portas sempre abertas”. E até hoje assim foi. A segunda foi um tanto mais surpreendente: “Espero que te tenham tratado bem e lamento se houve alguma coisa menos boa.”
Por um lado, este foi um gesto de gentileza extraordinário e por outro percebi que, de certa maneira, aquele líder histórico que diariamente fazia tudo para que a sua empresa fosse a melhor, de uma forma totalmente legítima, não compreendia porque é que alguém tomaria uma decisão como a minha, receando que talvez a empresa não tivesse cumprido com as expetativas. Na altura não soube exprimir o que queria ter dito naquela conversa, mas hoje escrevo-o. A minha escolha estava tomada porque eu, tal como o senhor Rui, queria seguir o meu sonho: ser líder do meu projeto pessoal e fazer rir o maior número possível de pessoas e nem a melhor empresa do mundo conseguiria mudar a minha decisão. Eu sei isso porque estava na melhor empresa do mundo.
Com a sua partida, perde-se um homem bom, mas fica também uma lição de vida. Rui Nabeiro ensinou-nos que o sucesso não se mede apenas pelos lucros, mas muito pela forma como tratamos as pessoas com quem nos cruzamos. Hoje eu levanto a minha chávena em homenagem ao senhor Rui, e bebo o café sem açúcar porque, tal como ele, quando algo é bom não precisa de aditivos.