Cafés e Bares

Rui Nabeiro, o socialista milionário que era o melhor amigo dos trabalhadores

O comendador deixa um legado de histórias de generosidade, contadas na primeira pessoa por quem trabalhou sob as suas ordens.
Morreu aos 91 anos

Como todas as empresas um pouco por todo o mundo, a Delta também tremeu com a chegada de uma pandemia inesperada que abalou os mercados. As vendas travaram. Os trabalhadores foram para casa. A crise era iminente.

Sem receitas, Rui Nabeiro reuniu-se com o gabinete de crise da sua empresa e tomou uma decisão: não iria pedir quaisquer ajudas ao Estado. “Quando veio esta desgraça, pensámos, numa reunião da administração, sobre o que faríamos. Não vendíamos, parou tudo… E tínhamos de pagar [aos trabalhadores].”

“Não fomos ao lay-off para dizer está aqui o dinheiro, não, esse dinheiro era mais lento e diferente. Pensámos que íamos pagar do nosso bolso, porque ainda havia meios suficientes para o fazer”, revelou numa entrevista de 2021 ao “Jornal de Negócios” o comendador que morreu aos 91 anos este domingo, 19 de março.

Essa demonstração “de força” tinha também um objetivo. “Quando chegasse o momento de não podermos mais, aí tínhamos o direito de os nossos governantes repararem que não fomos a correr a buscar lá o dinheiro, fomos buscar primeiro o nosso dinheiro.”

Para o comendador, essa era uma visão muito própria de como as empresas devem funcionar. De não recorrerem sempre aos mesmos expedientes, sobretudo o recurso às ajudas do Estado. “Podem e devem [fazer diferente]. Nesse aspeto, sou sempre um sonhador do bem-fazer. Não sei se é um defeito ou uma virtude, mas não abuso dela… Vivo-a, sinto-a e sei o caminho que tenho de percorrer.”

Nasceu numa família pobre, ligada ao contrabando. A subida foi feita a pulso desde jovem, à medida que ia gerindo a torrefação da família que transformou numa das maiores e poderosas empresas nacionais.

Além de ter nascido pobre, o alentejano confessa também que nasceu socialista. “O meu pai era um homem que trabalhava tudo e não ganhava nada — e queria que houvesse mudança. Não digo que fosse socialista, mas ouvia-o dizer à minha mãe que não tinha visto os filhos naquele mês, e que estava cansado de ficar em casa com aquele senhor com problemas psiquiátricos. Isto era uma terra muito pobre, tão pobre como qualquer terra do Alentejo. É daí que sou socialista”, revelou o natural de Campo Maior numa entrevista ao “Expresso” em 2016.

Filiou-se no Partido Socialista logo após o 25 de abril, uma opção que o afastou do Partido Comunista Português, apesar de lhe ter simpatia. “Eu defendia mais o ideal do PS do que do PC. Mas no PC também tenho amigos. (…) Eu sinto quem está carente, tenho dor de quem sofre na saúde e nos custos. Vivo para fazer o melhor e isso dá-me uma leitura de esquerda. Há pessoas boas na direita? Há. Mas eu vim para o PS, estou no PS e jamais pensei sair.”

Essa leitura que lhe permite perceber quem sofre moldou a sua forma de fazer negócio, de gerir a empresa e quem a faz, quem gera os lucros: os trabalhadores. Desde sempre que deu prioridade ao transporte e aos alojamentos para os funcionários da Delta. Organizava convívios.

Nos primeiros anos, a Delta foi construída à força de reformados que “recebiam uma miséria de reforma, à volta de duzentos e poucos escudos” e por isso em vez de irem para o campo trabalhar, foram trabalhar às ordens de Rui Nabeiro.

Nabeiro fundou a Delta Cafés

Hoje, a Delta tem mais de três mil trabalhadores e o grupo alargou-se a diversos negócios, dos vinhos ao imobiliário e hotelaria. Mas Nabeiro quis que a filosofia se mantivesse inalterada ao longo dos mais de 60 anos. “Ninguém faz nada sozinho”, recordou à “Notícias Magazine”. “Emprego dou, porque quando chega para mim, chega para os outros.”

O coração mole e vontade de sempre ajudar levou a que tivesse mais funcionários do que aqueles que efetivamente necessitava. “É natural que sim. Mas até hoje também não tive dificuldades em lhes pagar, e isso é uma grande vantagem”, admitiu em 2016. “Encaro [isso como uma responsabilidade social] porque, no regresso, quem semeia colhe e quem distribui recebe. E eu faço muito isso.”

Nos anos de crise, fez sempre questão de não despedir. E, ocasionalmente, até aumentar salários. “Foram anos mais trabalhosos. Na nossa casa, o termo crise não tinha lugar. Mesmo em reuniões. Falávamos, sim, em como íamos trabalhar melhor.”

Rui Nabeiro trazia sempre duzentos euros no bolso. Era o mínimo que achava necessário carregar consigo. “Dá para muitos dias. Se vou ao restaurante pago com o meu cartão, que é da empresa. Mas não vou a restaurantes assim de qualquer maneira”, contou ao “Expresso”.

A mesma atitude aplicava na empresa, onde sempre recusou usar a banca como ferramenta do dia a dia. “Quando é necessário [recorrer], sim. Agora, comprar coisas, com o dinheiro da banca para ter rendimento, nem pensar.”

A sua fama precedia-o e isso levava a que todos lhe fizessem pedidos de ajuda. Sabiam que ele, podendo, ajudava. “Todos os dias [recebia pedidos de ajuda]. Não posso dizer a todos que sim. Onde há esperança, também temos de dar esperança. Não digo a ninguém que não. Muitas vezes afirmo: ‘O lugar tu é que o vais conquistar’ — e quem o quer conquistar tem de trabalhar para ele. Por isso é que digo que não é o dar, é o distribuir. Quando uma pessoa diz que não, também fica comprometida, um pouco menos saudável.”

O ídolo dos trabalhadores

Um desses pedidos de ajuda chegou de uma funcionária que, em 2006, viu a sua mãe ser diagnosticada com um linfoma. Precisava de fazer um exame para levar a uma consulta e não havia tempo. Recorreu ao seu patrão da Delta, que aceitou.

“Pedi ao senhor Rui se conseguiria fazer alguma coisa e ele conseguiu. Uma semana depois tínhamos o resultado e se a minha mãe cá está hoje creio que o devo, em parte, a ele. Mais tarde, o meu segundo filho teve uma pneumonia e eu fiquei 15 dias com ele em casa.” Descontos, chamadas de atenção? Nada. “Nunca. É um patrão como não há”, contou Cristina Lourenço, em declarações ao “Correio da Manhã”.

Outro relato chega de um dos mais antigos trabalhadores da empresa, Adelino Cardoso, que lá foi empregado desde os 17 anos. Um dia decidiu sair, experimentar a profissão de guarda fiscal. “[Rui Nabeiro] pôs-me a mão no ombro e disse: ‘Tu vais mas se quiseres, e quando quiseres, tens aqui a porta aberta'”, contou. Acabaria por se despedir e querer voltar à Delta. “Quando voltei, recebeu-me de braços abertos. Devo tudo ao senhor comendador e à esposa, dona Alice.”

Valia a pena trabalhar na Delta. Os relatos falam de progressões na carreira, de trabalhadores que começavam na posição mais baixa e naturalmente ascendiam aos cargos de topo. Dizia-se que Rui Nabeiro sabia o nome de todos os trabalhadores, que conversava com eles, lhes perguntava pela vida fora do trabalho.

“Por saber de onde venho também sei quem sou e quem quero ser.”

“Um dia, em 2001, a minha mulher foi fazer um exame de rotina e detectaram-lhe um quisto no fígado. Fiquei numa aflição, como se imagina. O senhor Rui e a esposa foram incansáveis. Graças a eles, consultámos os melhores médicos, a minha mulher fez todos os exames e mais alguns. Um deles teve de ser feito em Coimbra e o senhor Rui tratou do alojamento, para que nada nos faltasse. Isto marcou-me muito. Faltei algumas vezes, nessa altura, e nunca nenhum dia me foi descontado. Não temos palavras para agradecer o carinho, a humanidade. É por isso que eu digo: é Deus no céu e o senhor Rui cá na terra”, acrescentou o trabalhador.

Nos primeiros anos da empresa, era Rui Nabeiro quem pagava as férias aos funcionários. Organizava excursões com tudo pago, das Canárias ao sul de Espanha. A iniciativa parou quando o número de trabalhadores tornou essa benesse incomportável.

“É importante que os trabalhadores se sintam satisfeitos. Quem não faz isso desde o início da empresa pode não o conseguir mais tarde. Tenho orgulho nos meus trabalhadores. Aqui há felicidade no trabalho”, afirmava Rui Nabeiro. “Não lhes peço que trabalhem mais, peço que trabalhem melhor. Quero que eles venham felizes para o trabalho e que voltem felizes para casa”.

Questionado sobre se se considerava um bom patrão, atirava sempre ao lado. “Os meus funcionários é que podem dizer. Eu sei que nasci nesta maneira de ser, de respeitar, de cuidar, de dar consideração a quem está a trabalhar connosco, de quem dá tudo para nós. Eu vi como era a vida dos meus avós, que viviam no meu quarto e do meu irmão. Eram pobrezinhos, pobrezinhos. E por saber de onde venho também sei quem sou e quem quero ser. Quando a pessoa semeia, colhe. E eu tenho colhido, na ligação com o meu pessoal. Gosto do bem. Acho que é isso.”

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