Algures entre as ruas íngremes e barulhentas da Mouraria, encontram-se os últimos resquícios de outra Lisboa. Há lojas centenárias, drogarias com história e, para o caso que nos concerne, a única leitaria que sobreviveu à passagem do tempo. Aos comandos está Celeste Santos, de 54 anos, que garante não trocar o “cantinho de encontros” por nada.
Durante o dia, a rua de São Cristóvão — que roubou o nome à igreja que lá existe e que resistiu heroicamente ao Terramoto de 1755 — é inundada por turistas que passeiam em tuk-tuks com guias que lhes mostram a cidade. Mas, fora das horas de ponta, bem cedo pela manhã e ao final do dia, os locais saem à rua e alimentam os poucos negócios locais que sobrevivem à onda avassaladora do turismo de massas.
A Leitaria Moderna está aberta desde 1924, numa altura em que o negócio se mantinha fiel à tradição e ao nome. Por lá, vendiam-se os frescos, o leite em garrafas de vidro, queijo e fiambre. A modernização tornou-se, com o passar das décadas, inevitável. Hoje é um pequeno café de bairro onde os negociantes se cruzam para tomar o pequeno-almoço antes da abertura de portas. E a partir das nove, “chegam os reformados do bairro para pôr a conversa em dia e comer a sua torrada com galão”.
Celeste Santos era uma cliente habitual que passou a patroa em 2012, quando decidiu comprar o espaço. “Moro aqui na zona e vinha sempre aqui tomar café. O Sr. Manuel e a D. Adelaide eram os proprietários quando vim viver para Lisboa, em 2004. Na altura vim morar com familiares aqui na Mouraria e conheci-os. Quando quis vender disse-me para pegar no negócio, mas eu ainda não tinha a vida organizada.”
Sabiam que Celeste adorava o bairro e confiavam nela para manter viva a essência da casa. À época, a minhota natural de Ponte de Barca tinha acabado se de mudar para a capital, após vários anos no Algarve. “Rumei a sul quando tinha 21 anos para trabalhar em hotelaria e tentar a minha sorte. Sempre foi o meu ramo e cheguei a ter uma marisqueira, chamada Filipe, com o meu ex-companheiro”, relata.
Com 34 anos e uma separação na mala, mudou-se para Lisboa, para a segurança da família. Foi viver com os tios e começou a trabalhar no restaurante da prima Olívia, o São Paio, em Campolide. Era lá que assumia funções na cozinha quando esbarrou com o novo dono da Leitaria Moderna, que comprou o negócio aos anteriores proprietários. Surgiu então novo convite para assumir as rédeas. Decidiu aceitar.
“Adorava o local, era ali que me sentia em casa. Aliás, o meu objetivo era manter essa essência da casa antiga, onde as pessoas do bairro se juntam para beber café, comer bolo caseiro ou provar uma sopa”, explica.
O objetivo passa por manter o local intocado, à medida que resiste aos novos negócios e exigências dos turistas. As paredes e os preços pouco ou nada mudaram e as cabeleireiras e os trabalhadores da construção civil continuam a ser “os primeiros a tomar o pequeno-almoço na Celeste”, cujo nome substituiu o verdadeiro nome da loja.
Os turistas também lá passam para conhecer a última leitaria à moda antiga de Lisboa. Pelo caminho, petiscam rissóis, bolinhos de bacalhau ou empanadas (todos a 1,50€) feitos pela amiga Beatriz, ou os bolos cozinhados pela prima Olívia (1,40€ a fatia). Quem lá vai à hora de almoço, já sabe que tem direito a uma das tostas da casa: com atum (4,20€), frango (4,20€) ou clássica mista (3€). A sopa do dia? Sai ao prato por apenas 1,5€.
“Todos os dias tenho opções de sopa caseira diferentes. Normalmente misturo vários legumes da época. Mas ao domingo é dia de canja e tenho sempre pelo menos 20 ou 30 clientes que passam por cá para aconchegar o estômago”, revela.
O fim do dia é pretexto para uma última imperial (1,20€) ou uma “tacinha de vinho”. É hora de dar o palco aos contadores de histórias do bairro e aos episódios de quando eram miúdos e corriam o bairro sem preocupações.
Celeste garante não viver agarrada ao passado ou fosse esta uma leitaria moderna, como indica o nome. E é por isso que, por altura dos Santos Populares, fecha o acesso ao interior e monta um balcão para a venda ao postigo. “São dias muito preenchidos, com muita folia. Vendo sempre cerveja, vinho verde, bifanas feitas no tacho, como manda a tradição minhota e, claro, caldo verde.” E no meio de tanta festa, os preços sobem um pouquinho “para aproveitar”.
O trabalho é muito, mas Celeste Santos não se cansa. “Adoro o que faço e adoro os clientes e as minhas velhinhas. Gosto tanto que até marco almoços para irmos todas juntas. Eu aqui não sou só a cozinheira ou a funcionária que tira cafés. Sou também a amiga que está sempre pronta a ouvi-los.”