Aos 68 anos, José Batista recorda sem grande mágoa alguns episódios problemáticos ao longo de uma vida de trabalho numa das pastelarias mais emblemáticas da capital, a Versailles. “Há muito racismo. Já vivi situações discriminatórias”, confessa o cabo-verdiano que enverga o título de funcionário mais antigo da loja. “Ao fim de 50 anos a trabalhar com o público aprendi que a calma é a nossa melhor arma.”
Natural da ilha do Fogo, em Cabo-Verde, veio para Portugal quando atingiu a maioridade, sempre atrás da irmã mais velha que vivia em Lisboa. A decisão foi tomada de forma rápida e ponderada, face à pobreza que enfrentava na sua terra-natal e à impossibilidade de continuar os estudos. Assim que aterrou na capital começou à procura de trabalho e acabou ao balcão da Pastelaria Suíça, no Rossio.
Nunca tinha tirado um café, mas predispôs-se a aprender tudo e conseguiu um lugar como empregado de mesa. Passou lá “um par de anos”, quando soube por uma antiga colega que havia uma vaga no Apolo 70, na Avenida Júlio Diniz. Candidatou-se e ficou com o lugar.
“Aprendi a gostar desta profissão à medida que fui conhecendo a agora não me imagino a fazer outra coisa qualquer”, diz o funcionário, que acabou por estudar na Escola Hoteleira de Lisboa para aprender mais “algumas bases”. Entretanto, surgiu a oportunidade de mudar-se para a Versailles, a sua casa há 37 anos.
Aos mais novos, gosta de deixar um conselho: “Ter gosto pelo trabalho e uma boa dose de paciência”. Isto porque “trabalhar com o público é muito complicado, nunca se sabe com o que contar”.
Os conselhos que não se cansa de repetir são fruto de muitos anos de experiência de bandeja na mão, mas também por “ter um tom de pele diferente”. Uma lição que aprendeu ao longo do tempo.
“Lembro-me que quando comecei a trabalhar aqui, percebi que um dos clientes não ia com a minha cara, mas não me incomodava, desde que eu pudesse fazer o meu trabalho”, recorda. “A dada altura reparei que até trocava de mesa para não ficar na secção pela qual eu era responsável por atender. Tratava-se de um grande empresário e eu não queria problemas com ninguém, por isso ignorava.”
A certa altura, o empresário mudou radicalmente de atitude, ao ponto de se dirigir a José para se desculpar pelo seu comportamento. O que mudou? Uma viagem do empresário a Cabo Verde e uma imersão total na hospitalidade dos locais.
“Pediu-me um aperto de mão, eu dei-lhe e foi aí que me pediu desculpa. Explicou-me que esteve no meu país e ficou tocado pela forma acolhedora como foi tratado e pediu-me para a partir dali ser sempre atendido por mim. A uma altura veio-me buscar para almoçar e levou-me a conhecer a sua fábrica em Sintra. Ofereceu-me muita roupa e mostrou-me como podemos mudar mentalidades se nos dermos a conhecer”, refere.
Ainda assim, José confessa não se deixar iludir. O racismo “será sempre um problema” e não vê forma de acabar com o estigma. “As coisas mudam. Quando comecei a trabalhar na Versailles, a casa era diferente. Faziam fila à porta para se sentarem a lanchar e os clientes eram sempre de uma classe média-alta. Agora temos também muitos jovens e uma das coisas que não mudou foi o racismo. As pessoas de cor continuam a ser olhadas de lado. Mas o mundo é redondo e há pessoas boas e más em todo o lado”, esclarece.
Relembra um dos momentos mais tensos que viveu como empregado de mesa, quando um cliente se tornou agressivo com um colega, também negro, porque não ouviu o pedido. “Começou a gritar com ele, a perguntar se era surdo e com ofensas horríveis e sem fundamento ou necessidade”, lembra.
Passados todos estes anos, José já avista a reforma e prefere viajar pelas boas recordações. “Adoro acompanhar a mudança do tempo. Antes do 25 de abril mal falávamos para os clientes. Depois da revolução começamos a ter mais liberdade para falar e o público começou a mudar. Conversar e conhecer pessoas sempre foi a minha parte favorita deste trabalho, a par de ajudar os mais novos a apaixonarem-se pela área.”
Após mais de três décadas a trabalhar na Versailles, garante que foi o ambiente, os patrões e os colegas que o impediram sempre de trocar de local de trabalho. “Passo mais horas aqui do que em casa e eles sempre foram fundamentais para dar vontade de continuar”, refere.
Aos 68 anos, José continua a preferir fazer o turno da noite. Assim pode “dormir mais um pouco” e preparar-se para mais uma odisseia a servir café, croquetes, bolo-rei, éclaires e babás — algumas das especialidades da Versailles — e a trocar impressões com os clientes.
Quase cumprida que está a missão, sonha agora poder “ajudar a filha a licenciar-se em psicologia clínica”. Sobre o que irá fazer quando tiver mais tempo livre admite que não sabe, mas talvez leve a família a conhecer a terra-natal. “A minha mulher é portuguesa e nem ela, nem os nossos filhos tiveram oportunidade de ir a Cabo Verde. Desde que os meus pais morreram que deixei de lá ir. Pode ser que consiga ir lá em breve.”