Gourmet e Vinhos

Rodrigo Castelo, o ribatejano apaixonado que pôs a sua terra no mapa das estrelas Michelin

Entrou tarde para a cozinha e preferiu a experiência real às salas de aula. Com o seu projeto de vida, o Ó Balcão, conquistou a distinção máxima da Michelin.
Onde Rodrigo gosta d estar.

Gosta de jogar xadrez, viajar, ler e passar tempo em família. Mas o tempo para se entregar aos passatempos não abunda, até porque conquistar uma estrela Michelin requer muito, mesmo muito trabalho. Também por isso Rodrigo Castelo, de 42 anos, está sempre no seu Ó Balcão, o projeto de vida que este ano ganhou a sua primeira condecoração do Guia Michelin, a que se juntou a estrela verde da distinção de espaço sustentável.

O gosto pela cozinha começou em casa. A mãe adorava cozinhar para a família. O pai ficava encarregue dos petiscos para os amigos. Rodrigo sempre esteve envolvido nos processo. E adorava fazê-lo. “Com o tempo passei também a cozinhar, sobretudo em convívios com amigos”, conta à NiT.

Quando teve de escolher o curso a seguir após terminar o secundário, não pensou duas vezes. Inscreveu-se na Escola Superior Agrária em Santarém para se formar em produção animal. Em simultâneo começou a trabalhar como distribuidor de gás e o dinheiro que ia caindo no bolso começou a tornar-se mais aliciante. Terminado o curso, teve a oportunidade de entrar na indústria farmacêutica. “Tirei um curso de suporte clínico da Johnson & Johnson e passava o dia no bloco [operatório], a assistir a cirurgias que usavam certos equipamentos que a empresa onde trabalhava vendia, mais ligados à saúde cardiovascular.”

Como “há azares que vêm por sorte”, Rodrigo foi despedido quando houve cortes salariais devido à crise financeira de 2011 e viu-se com uma “pequena” indemnização de 40 mil euros nas mãos. Em vez de procurar outro trabalho na área, decidiu usar o dinheiro para investir no sonho que mantinha guardado numa gaveta: abrir o seu próprio restaurante, sem qualquer formação ou experiência. Apenas munido de uma paixão.

Os peixes são todos curados.

O dinheiro não era muito, sobretudo para criar um espaço de raiz. Por isso pediu ajuda a alguns amigos e fez alguns créditos pessoais. De resto, tratou de tudo com as próprias mãos e o Ó Balcão nasceu então em outubro de 2013, no centro de Santarém. O objetivo inicial era claro: criar uma “cozinha de vivências”. Rodrigo Castelo criou um restaurante que, por incrível que pareça, agrada a todos, aos apaixonados pelos pratos típicos Ribatejo e aos que não dispensam um toque de modernidade. Das antigas tabernas ribatejanas trouxe a inspiração e depois juntou-lhe os melhores produtos da região, com o olho e o gosto de quem os conhece e respeita profundamente.

No entanto, após um par de meses percebeu que lhe faltavam as bases da cozinha. “Precisava de aprender algumas técnicas, os princípios dos caldos e dos molhos”, explica. Inscreveu-se num curso intensivo de nove semanas na Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal (ACCP). Mas não se ficou por ali. Convencido que precisava de aprender com os melhores, foi jantar com a mulher, Ana, ao Belcanto do chef José Avillez.

Nesse dia disse à minha mulher que um dia ia ganhar não uma, mas duas estrelas Michelin. Ela disse que era eu era tonto, tendo em conta que estava ainda a começar. Mas para chegar aos patamares de excelência é preciso sonhar, dedicação, muito esforço, técnica e aprender com os melhores”, nota.

Rodrigo Castelo não se ficou pelo sonho e decidiu contactar alguns dos chefes que admirava. Queria cozinhar com eles — e aprender pelo caminho. Começou pelo próprio José Avillez, porque conhecia o sous chef, Filipe Pina, que era seu conterrâneo. “Como ninguém me conhecia neste meio, tive de ser mais descarado. Agarrava no telefone e ligava-lhes. Conheci cozinheiros incríveis que me ajudaram muito e me abriram muitas portas”, revela.

Hoje, reconhece que a aprendizagem ainda não acabou. Nunca termina. “Esta profissão precisa de muita dedicação, muito conhecimento e muito tempo. Todas as semanas passo pela Escola Superior de Agrária, porque gosto de aprender de onde vem tudo o que comemos e estou envolvido em muitos projetos relacionados com o tema.”

O que mudou na última década

Tudo o que se faz no Ó Balcão é preparado de forma metódica, com precisão e muito saber. Características que trouxe do curso de produção agrária, do antigo emprego, dos amigos, da família e da própria infância onde via os pais a cozinharem. Se a vontade e paixão são as mesmas de há dez anos, o que sai da cozinha mudou muito de lá para cá. “Acredito muito nos produtos da minha terra, nas tradições e costumes. A carta inicial foi inspirada nas antigas tabernas ribatejanas e era composta maioritariamente por petiscos. Ou melhor, um exagero de petiscos. Tínhamos cerca de 60 opções, que a Maria Odete, a minha antiga cozinheira, me ajudou a desenvolver.”

Castelo admite que o tempo que passou na cozinha foi equivalente a “uma licenciatura com mestrado incluído”. E, naturalmente, as coisas foram mudando. Atualmente, mantém a intensidade que o caracteriza, mas na cozinha escolhe trabalhar com produtos regionais e confeciona espécies invasoras para conseguir um equilíbrio no ecossistema. Foi precisamente essa atenção que lhe valeu a conquista da estrela verde no Guia Michelin Portugal 2024.

Aliás, no Ó Balcão são trabalhados produtos locais que muitos outros espaços do Ribatejo não costumam utilizar. Os peixes são todos de rio, com o cuidado de usar espécies invasores ou predadoras, como a perca ou o siluro — alguns são mesmo pescados pelo chef. “Depois são todos curados para ganharem uma textura e uma salinidade diferente. E, assim, também tiramos aquele sabor a água salobra”, refere. 

As carnes também passa por este critério de escolha, consoante a sazonalidade e o papel que a espécie tem no ambiente. “Temos, por exemplo, o javali, porque é uma peste enorme. Os restantes são os que vêm da caça, mas garantimos que são sempre adultos e selvagens”, esclarece.

Se a matéria-prima se manteve inalterada, as técnicas, essas foram sendo aprimoradas. vai mudando. “Vivo o dia a dia com a ambição de ser um bocadinho melhor. E tenho a bênção de trabalhar com uma equipa que interpreta bem aquilo que quero”, diz.

A equipa do restaurante Ó Balcão.

Não tenho um prato de eleição”, atira de forma rápida à questão da praxe. “Na hora de provar alguma coisa só peço que tenha sabor. Quando é para cozinhar também não consigo escolher porque sou apaixonado pelo processo.”

O feedback dos clientes é semelhante ao do próprio chef. Normalmente escolhem o meu de degustação com cerca de 20 pratos — e que custa 97,50€ por pessoa. “Assim provam de tudo e esquecem qualquer ceticismo que possa existir quanto à cozinha de autor”, explica. “O género de pratos que faço podem parecer diferentes e deixam alguns pouco convencidos. Mas quando provam, normalmente adoram, sobretudo quem é de cá [do Ribatejo], porque reconhecem os sabores de infância nestes pratos mais modernos”, continua.

A genialidade do processo

Quando pensámos restaurante com estrela Michelin, imaginámos uma cozinha caótica, com pratos que demoraram certamente meses a serem planeados. No Ó Balcão não é assim. “Os menus começam a ser pensados de forma natural, consoante a época de cada proteína. O facto de termos uma horta no restaurante também ajuda a que possamos trabalhar os pratos com os produtos sazonais no seu expoente máximo. Temos as nossas próprias tabelas de sazonalidade e há pratos que até mantemos o ano inteiro, porque fazem sentido, enquanto há outros que só ficam dois meses. Depende”, explica o chef.

Quem lá for nunca sabe bem o que pode encontrar no menu, que está “constante mudança”, mas há coisas nunca mudam. O ambiente, por exemplo, é uma das características que os clientes elogiam no restaurante de Rodrigo Castelo. O Ó Balcão faz lembrar aquelas antigas tabernas portuguesas, salpicadas com um toque de contemporaneidade, graças aos azulejos vistosos. Já os pratos surpreendem pelo requinte e cuidado na apresentação. No entanto, é pela sustentabilidade que se distinguem e que até o levou a uma dupla distinção na Gala Michelin que aconteceu a 27 de fevereiro, em Albufeira.

A primeira estrela que o restaurante ganhou há uma semana já se sente o seu efeito. “Recebemos imensas visitas, tanto de clientes habituais, como de outros que nunca cá vieram e quiseram provar. Todos nos deram os parabéns porque é um orgulho para o Ribatejo e para Santarém.” Quanto à parte negativa que muitos cozinheiros atribuem ao peso do reconhecimento, Rodrigo não o vê dessa forma. “Nem ponho em causa perder a estrela, porque eu queria mesmo muito ganhá-la, era um grande objetivo e agora quero continua a trabalhar para cimentar o valor que nos foi dado e quem sabe depois pensar na segunda, ou na terceira”, assume. 

É um feito conseguido por poucos chefs, isto é, deslocalizar as estrelas dos grandes centros urbanos: há uma em Bragança, outra em Viseu e mais duas no interior alentejano. “Sempre admirei o guia, adorava o mistério e, claro, o reconhecimento. E o facto de não estar em Lisboa não me assustava, sabia apenas que tinha de trabalhar muito para chegar àquele nível. E foi isso que sempre fiz. Subi a muito custo, com muito trabalho e a pulso, com o apoio de uma equipa igualmente intensa”, afirma.

Nos próximos dias vai tentar voltar à rotina e aos miúdos, mas a cozinha, essa nunca pára. Aliás, a filha mais nova, a Mimi, de 9 anos, diz que quer ser cozinheira e sempre que pode esgueira-se para ajudar o pai. “O mais velho começou agora a interessar-se mais, talvez porque também vê a irmã”, conta à NiT. Porém, espera que nenhum lhe siga as pisadas: “É uma área incrível, mas dura”.

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