Gourmet e Vinhos

A história da família que criou a Nutella (e os Ferrero Rocher, Kinder e Mon Chéri)

Criaram a fórmula secreta durante a guerra e fabricaram chocolate em fábricas de mísseis nazis. Os bombons que produzem são icónicos.
Michele Ferrero internacionalizou o negócio do pai

Michele Ferrero era um indivíduo elusivo. Nunca deu entrevistas. Rejeitava toda e qualquer distinção. Por causa de um problema ocular, surgia quase sempre escondido por trás de um par de óculos escuros. Era um católico devoto que todos os anos visitava o Santuário da Nossa Senhora de Lourdes e atribuía o seu sucesso à bênção de Deus, tanto que fazia questão de ter uma estátua da Virgem em todas as fábricas da Ferrero.

Na verdade, o sucesso do empresário italiano devia-se mais à sua obstinação do que propriamente a uma dádiva divina. Foi pelas suas mãos que a Ferrero se transformou numa multinacional e é das suas fábricas que saem alguns dos chocolates mais famosos do mundo: Nutella, Ferrero Rocher, Mon Chéri, Kinder. Michele, que morreu em 2015 aos 89 anos, tornou-se numa espécie de Willy Wonka, mas esta história começa muitos anos antes.

Nascido em 1856, Pietro Ferrero sofria do “síndrome do inventor”, explica o bisneto à “Forbes”, hoje CEO da empresa. “Acordava a qualquer hora, ia para o laboratório e a meio da noite acordava a mulher para provar o que fazia.”

Antes de se apaixonar pelos doces e chocolates, combateu na I Guerra Mundial, até que terminado o conflito, abriu uma pequena pastelaria em Dogliani, no nordeste italiano. Com outra guerra mundial à espreita, e à medida que Benito Mussolini enviava tropas para África, teve uma ideia: viajar até ao norte de África, onde combatiam milhares de italianos, para fazer negócio a vender biscoitos.

O negócio fracassou e Pietro, juntamente com a sua mulher e o filho Michele, procuraram refúgio na zona rural de Alba, onde em conjunto com o irmão Giovanni começou a desenvolver novos doces. Entre as muitas ideias, a necessidade exigiu que encontrassem uma alternativa ao chocolate, demasiado caro para comprar e vender em tempos de guerra.

Socorreu-se então de uma velha receita dos tempos das guerras napoleónicas. Quando Napoleão ilegalizou as importações britânicas, a região italiana de Piemonte, então a maior fabricante de chocolates do mundo, sofreu com a falta de cacau vindo das Américas. Isso levou a que se encontrasse uma alternativa viável, usando menos doses de cacau. Como substituto, moeram-se avelãs e a mistura ganhou o nome de gianduia, uma pasta que se tornou famosa no norte de Itália.

Ora a escassez da II Guerra Mundial levou a que Pietro e Giovanni voltassem a apostar no doce que foi rebatizado de Giandujot e vendido porta a porta, numa mistura de melaço, óleo de avelã, manteiga de coco e cacau. O sucesso foi instantâneo e, em 1946, os dois irmãos criavam a empresa: a Ferrero.

Quando se preparavam para a expansão, o coração frágil dos Ferrero fez das suas. Pietro morreu de ataque cardíaco em 1949, tinha apenas 51 anos. Coube a Giovanni tomar conta das operações e levar avante a mistura milagrosa que passou a ser apelidada de Supercrema.

A mudança trouxe também outra abordagem: a mistura de avelã e cacau passou a ser vendida em frascos, diretamente às lojas. Mas oito anos depois, também Giovanni não resistia a um enfarte. Tinha 52 anos.

O seu sobrinho, filho de Pietro, tinha já 33 anos e ficou encarregue de gerir a empresa, mas fez muito mais do que isso. Ao fim de mais de quatro décadas, a Ferrero tinha-se tornado numa multinacional com receitas a ultrapassarem os 4,8 mil milhões de euros. Hoje, o volume de vendas ascende aos 13 mil milhões, o que a coloca no pódio das maiores produtoras de doces em todo o mundo.

A influência de Michele fez-se sentir ainda antes da morte do pai e do tio. Já envolvido na atividade da empresa, foi dele a ideia de tentar entrar no mercado alemão. Foi assim que várias fábricas que outrora produziam os mísseis que alimentavam a máquina de guerra nazi, foram reformuladas para produzir doçaria.

Depois, em 1956, surge outro grande êxito para rivalizar com o Supercrema, o icónico Mon Chéri, bombons recheados com licor de cereja que abriu as portas da Ferrero ao resto da Europa. Seguiu-se a Bélgica, Áustria, França.

Sem parar e com o comércio do cacau já normalizado, Michele Ferrero decidiu reinventar o Supercrema e potenciar a receita com mais sabor a chocolate. O sabor tornou-se ainda mais viciante, mas numa época em que qualquer produto era vendido sob a capa dos “benefícios para a saúde”, as autoridades começaram a apertar o cerco.

Michele Ferrero assumiu o controlo da empresa em 1957

O governo italiano começou a limitar o tipo de publicidade feita a estes produtos e Michele optou por criar uma nova marca. Em 1964, lançava a nova versão do Supercrema, a Nutella. E foi às costas deste chocolate que a Ferrero foi ainda mais longe, até novos continentes.

O portefólio da empresa continuou a crescer. Em 1968 foi criada a Kinder e, um ano depois, as pastilhas Tic Tac. Em 1982, nasce outro êxito, os Ferrero Rocher.

Pelo caminho, Michele Ferrero tornou-se também no homem mais rico de Itália e um herói para os seus milhares de funcionários. Durante o seu reinado, o quartel-general da Ferrero manteve-se sempre na região italiana de Alba. Os muitos trabalhadores, das aldeias vizinhas, eram recolhidos e levados a casa pelos veículos da empresa. Tinham direito a seguros de saúde e outras vantagens. Havia até uma música dedicada a “monsu Michele”, ou senhor Michele.

Segundo o “The Guardian”, durante o seu reinado, nunca os trabalhadores entraram em greve — ao contrário do que aconteceu, por exemplo, em 2019, com uma greve que afetou gravemente a produção da Ferrero. “Prometo dedicar todo o meu esforço e atividade a esta empresa”, escreveu numa carta aos funcionários após a morte do tio Pietro, em 1957. “Garanto-vos que só estarei satisfeito quando conseguir, com resultados concretos, garantir que vós e os vossos filhos tenham um futuro seguro e tranquilo.”

Apesar do caráter elusivo, Michele é citado como tendo afirmado que “praticava o socialismo”. Isto apesar de ter deixado Itália no final da década de 70, numa altura em que as Brigadas Vermelhas raptavam figuras públicas a troco de resgates. Encontrou refúgio no Mónaco, onde viveu até ao fim da vida e onde beneficiou das vantagens fiscais do principado.

Aos 71 anos, em 1997, decidiu afastar-se e entregar o negócio aos seus dois filhos, Giovanni e Pietro. Ao contrário do pai, que não tinha qualquer tipo de educação superior, as duas crianças foram educadas num colégio interno belga.

A distância cumpria dois objetivos: o de os salvaguardar dos raptos das Brigadas Vermelhas; e a possibilidade de uma educação europeia, numa altura em que se preparava a criação de um mercado aberto europeu.

“Era a primeira era história da Ferrero como empresa europeia. Bruxelas, à época, comandava o processo de integração europeia”, conta Giovanni à “Forbes”. “A [nossa] vida pessoal estava sempre subordinada à empresa.”

Hoje, com 58 anos, Giovanni Ferrero é o presidente-executivo da Ferrero e homem mais rico de Itália. Em 2017, deixou o cargo de CEO, entregue pela primeira vez a alguém fora da família.

Durante duas décadas, partilhou os comandos da empresa com o irmão Pietro. Ele era um homem do marketing, formado nos Estados Unidos; o irmão ficara responsável pelas operações. Mas a maldição dos Ferrero voltou em 2011 para outro episódio trágico.

Pietro e Giovanni Ferrero, os filhos de Michele

Pietro haveria de morrer na África do Sul, vítima de um ataque cardíaco, quatro anos antes da morte do pai. Foram anos turbulentos na Ferrero, com a empresa a ser dividida pelos herdeiros, apesar de Giovanni ter mantido a sua posição maioritária, responsabilidade que acumulou com o cargo de presidente e de CEO.

Hoje, Giovanni é responsável pela criação de um novo império. À boleia dos milhões que a empresa arrecada todos os anos, tem comprado várias outras marcas, que agora fazem parte do universo Ferrero.

Comprou a Fannie May e a Ferrara, além de ter investido forte na aquisição do negócio dos chocolates da Nestlé em território norte-americano — uma compra que ascendeu a mais de dois mil milhões de euros. A tática empresarial é distinta da do seu pai Michele e tem motivado várias críticas. Mas o mundo continua a querer mais e mais frascos de Nutella,.

Entretanto, a Ferrero está presente em mais de 160 países e tem mais de 40 mil trabalhadores. Produz, por ano, 365 mil toneladas de Nutella, o que significa que a empresa adquire, anualmente, um terço de toda a produção de avelãs em todo o mundo.

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