“Aquilo foi o pânico e o terror. Foi muito forte.” Afonso Pereira, um dos proprietários do Junior Jacques Destiladores, um projeto vocacionado para a produção de destilados de alta qualidade, é apenas uma das pessoas que sentiu estar a viver um pesadelo. Na tarde de segunda-feira, 7 de agosto, viu as chamas aproximarem-se da propriedade que tanto se esforçou por construir. De um dia para o outro, perdeu (quase) tudo devido ao incêndio que deflagrou no sábado à tarde (5 de agosto), na freguesia de S. Teotónio, em Odemira, no distrito de Beja.
“Após a tragédia que atacou em cheio a nossa comunidade, no coração da Costa Vicentina, no sudoeste Alentejano, ficámos temporariamente sem capacidade para receber novas encomendas. Apesar de a nossa destilaria estar bem, o nosso bar e algumas zonas de armazenamento foram atingidas pelas chamas. Estamos de cabeça erguida a recuperar do incêndio de Odemira e vamos com certeza regressar mais fortes do que nunca para continuar a partilhar a herança cultural do #MedronhonaAlma”, lê-se no site.
À NiT, Afonso mostra-se emocionado, triste, mas também esperançoso. “Sente-se uma grande vulnerabilidade, uma grande tristeza, medo. Foi uma situação pela qual nunca tinha passado, e gostava que ninguém tivesse de passar. Sentimos que temos as nossas casas a arder, aquilo que nos custou tanto a cosntruir. A natureza está ferida. Estamos preocupados com os nossos amigos que estão na linha do fogo. Foi realmente um inferno da terra e não há palavras para descrever uma situação dessas.”
O empreendedor conta que tudo começou dias antes, no sábado, 5 de agosto, quando estava “tranquilo” na praia com a família. “Começámos a ver fumo vindo do nosso lado e os vizinhos não demoraram a ligar. ‘Está um fogo a arder’, Há um incêndio’, diziam. Nesse dia, o vento soprava de nordeste e as chamas foram aproximando-se da nossa propriedade. Saí a correr da praia e fui diretamente para casa. Quando lá cheguei, vejo esta situação preocupante, assustadora.”
É quando o fogo rasteiro entra na propriedade da família que chegam algumas pessoas da comunidade — “inclusivamente, o presidente da Junta de Freguesia de S. Teotónio”. “Juntos, conseguimos abafá-lo. Foi mesmo muito emocionante”, confessa.
No mesmo dia, o incêndio é projetado para o outro lado da montanha, o que deixou Afonso mais tranquilo. “Fiquei de prevenção durante a noite, mas já estava mais descansado porque pensava que o pior tinha passado.” Infelizmente, estava enganado.
“No domingo à noite, essa frente continuava a queimar, a lavrar. Não me compete a mim fazer comentários sobre a estratégia dos bombeiros, mas a verdade é que se percebia que a estratégia era deixar queimar, deixar queimar, deixar queimar”, acrescenta.
Na segunda-feira, o vento mudou. Passou a soprar de sudeste e o incêndio voltou a dirigir-se para a quinta de Afonso. “O vento soprava com muita força. Aí, sim. Foi o pânico e o terror. O fogo estava a ameaçar aldeias inteiras e, naturalmente, os bombeiros tiveram de largar tudo o que estavam a fazer — casas, quintas, propriedades — para ir socorrê-las. Se não o tivessem feito, teria sido uma catástrofe ainda maior.”
O abandono, porém, fez com que os vários hectares da propriedade Junior Jacques Destiladores ficassem desprotegidos. “Aqui ardeu tudo livremente, sem qualquer tipo de combate. Nesse dia, fomos evacuados e não pudemos estar ali a defender. Nem fazia sentido, porque seria algo muito perigoso. Foi muito forte, não foi como no primeiro dia em que o fogo entrou rasteiro. Não. Neste dia entrou altíssimo, fortíssimo — e o que as autoridades puderam fazer foi evacuar toda a gente, a bem ou a mal.”
Para Afonso essa opção é discutível, mas não avança muito na teoria. Só mais tarde, com a mulher e os filhos a salvo, conseguiu voltar à quinta.
“Têm de me deixar passar. Tenho ali uma destilaria e, se o fogo ainda não chegou lá, temos de o controlar. Se aquilo arde é o descalabro.” Com esta premissa, lá foi conseguindo passar os pontos de controlo que bloqueavam as estradas. “É que, às vezes, o fogo passa e não arde tudo, mas depois pode rebentar tudo. Temos aqui barracões que não arderam nesse dia fatídico, segunda-feira, e que depois vieram a arder na terça-feira porque houve algo que inflamou ou cinza que o espoletou”, explica à NiT.
“Vou eu e vocês têm de vir comigo, porque é muito perigoso. Tenho milhares de litros armazenados ali. Além do prejuízo, é um risco gigante”, continuava Afonso a tentar convencer os bombeiros. Com todo o cuidado, o empreendedor lá conseguiu chegar a São Miguel e voltar a entrar na propriedade.
“Esse momento foi muito emotivo, porque não sabia o que ia encontrar. As pessoas tinham-me dito que a destilaria tinha ardido. Encontrei um cenário muito, muito triste. Nunca imaginei ver a minha propriedade assim. O terreno estava limpo, organizado — e ardeu tudo. É uma imagem muito triste.”
Ainda assim, diz-nos, “foi animador” ver a casa estava intacta, e em frente, havia uma parte da floresta que não chegou a arder, “Há uma mancha verde no meio deste caos.” A destilaria, o pilar do negócio, também se mantinha intacta. “Dentro deste pesadelo todo, isso trouxe-nos alguma esperança: perceber que nem tudo estava perdido.”
Uma semana depois, diz-nos que já consegue ver as coisas de outra maneira. “Neste momento, sinto energia e uma vontade de reerguer das cinzas, mais fortes e melhores. É isso que tenho na minha cabeça.”
A ajuda que tem surgido é um dos motivos para se manter positivo. “No outro dia, tinha pessoas aqui à porta da destilaria para comprar medronho. Só me ri e perguntei se não sabiam que isto tinha ardido tudo. Responderam que sim, mas que queriam ajudar. E isto dá um grande alento de continuar. Significa que as pessoas se importam com o nosso projeto e é aí que estou a conseguir encontrar a força para dar a volta.”
Agora, diz, é o momento de fazer a avaliação dos estragos, perceber de que forma os seguros podem ajudar — “e isso é sempre uma batalha” e perceber, junto das autoridades, que apoios podem receber. Para Afonso, é preciso olhar para o cenário como uma oportunidade de reconstruir e seguir em frente.”
“A nossa operação foi afetada, ferida. Perdemos um contentor, onde tínhamos um stock com mais de 500 garrafas e com todo o apoio à venda, embalagens, etc. Isso desapareceu. Mas tínhamos algum stock na adega que permite satisfazer as vendas que já tínhamos. Quanto às vendas online, essas, estão ainda suspensas, naturalmente. É ir priorizando, passo a passo, cada etapa.”
Arranjar o sistema de rega dos medronheiros é o mais importante. “Hoje o meu dia foi tentar restabelecer esse sistema, para ver se consigo dar água às plantas o mais rápido possível. O fogo passou por elas, e estão com um aspeto, de facto, seco. Algumas estão mesmo queimadas. Mas acredito que o medronheiro tem essa capacidade de regeneração.
A esperança é que, no próximo ano, possam chegar onde estavam antes do incêndio. “É o que digo, não vamos ter de refazer do zero. Já adquirimos conhecimento e há muitas infraestruturas que estão aparentemente destruídas, mas não a 100 por cento. A marca não está destruída, segue de pé, as pessoas confiam em nós, no nosso produto.
E para quem quer ajudar a comunidade, o fundador da Junior Jacques Destiladores deixa uma mensagem.
“A comunidade ficou muito afetada e temos de voltar o mais rapidamente à normalidade. Esta é uma zona de turismo muito bonita. As praias não foram afetadas. A melhor ajuda que as pessoas podem dar é continuar a visitar a nossa região, continuar a consumir os nossos produtos, dentro da normalidade. Temos de manter esta mensagem de esperança e de confiança de que, sim, fomos afetados, mas nem tudo está perdido. É uma catástrofe, sim, vamos ter muita dificuldade a levantar-nos, mas essa é a melhor ajuda que nos podem dar.”
A história da Junior Jacques Destiladores
O projeto começou a ser concebido em 2015, quando Afonso Pereira (40 anos) e a mulher, Marieke Devillé, (de 38) compraram a quinta no sudoeste alentejano, na Costa Vicentina, em Odeceixe, São Miguel.
Após vários anos a trabalhar nos sectores da hotelaria e do desenvolvimento comunitário e empreendedorismo, em “contextos extremamente desafiantes”, como África ou na America Latina, Afonso e Marieke decidiram criar uma base permanente em Portugal, num lugar onde pudessem contribuir para o desenvolvimento local e a valorização de produtos tradicionais. Sem saber bem o que ali poderiam fazer, escolheram a propriedade da pequena vila.
“Não conhecia o medronho, sou lisboeta. Ao falar com alguns consultores sobre o que se poderia desenvolver na quinta, surgiram várias possibilidades. A determinada altura, estávamos a passear pelo terreno com uma consultora e perguntei que árvore era aquela que tinha tanto pela quinta e que era tão bonita. Ela explicou que era medronheiro e que era uma espécie muito interessante, que estava a ser estudada pela Universidade de Coimbra, e que era um fruto com um alto valor energético. Percebi que, a partir dele, faz-se aguardente. Vimos que era mesmo aquilo que queríamos. Não havia dúvidas”
Afonso começou por fazer uma recolha dos frutos do terreno e, durante dois anos, levava-os a destilarias da zona. “Mas depois percebi que o processo de destilação não era assim tão complexo e que até poderia melhorá-lo, com base naquilo que aprendi com a investigação da Universidade.”
Determinados a avançar com o projeto, e já com uma plantação de cinco hectares de medronheiro, em 2018 começaram a construir a destilaria e puseram-na a funcionar.
“As pessoas não conhecem o medronho. Acham que é uma bebida fortíssima, para os velhos. E, já na altura, dizia que não. Quando é bem destilado, é uma aguardente de muito boa qualidade. E é feita exclusivamente com um fruto selvagem. Tem esta vertente de sustentabilidade.”
Além de produzir aguardente, o Junior Jacques Destiladores — cujo nome é uma homenagem aos avós dos fundadores, Albano Pereira Júnior e Jacques Joaquim Guedes — conta também a história da bebida. Passado seis anos, e com uma marca fortalecida e definida, chegaram ao ponto em que são “um dos maiores produtores do concelho de Odemira”. “A nível nacional estamos também no top 10, mas a nível daquilo que é o conceito de marca e de promoção e divulgação do medronho, somos a principal referência daquilo que é o medronho e o medronheiro.”
Têm a loja online, fazem distribuição — uma concentrada sobretudo no sul do País — e organizam visitas turísticas à destilaria. “Fazemos uma breve apresentação sobre o que é o fruto do medronheiro, como é que se desenvolve, onde é que cresce, quais são as etapas de maturação e crescimento. Depois falamos sobre a apanha, quando é que acontece, passando para a fermentação. O visitante tem a oportunidade de conhecer todo o processo, desde à apanha, à fermentação, passando depois pela fermentação.”
“Estamos a destilar cerca de sete, oito meses por ano, portanto, é muito normal que o visitante esteja a ver a operação a funcionar. Tínhamos também um bar onde as pessoas eram convidadas a provar as aguardentes e depois, por marcação, fazíamos uma degustação de cocktails, acompanhado com alguma comida regional. Essa foi a parte mais afetada. Era um bar de madeira, com um deck, todo bonito, que desapareceu tudo. Temporariamente não vamos estar a fazer essa parte e vamos ter um período longo até recuperar essa vertente o projeto.”
A seguir, carregue na galeria para conhecer o antes e o depois da quinta.