Gourmet e Vinhos

Dorli Muhr e a luta das mulheres na enologia: “Queremos que nos respeitem”

A produtora austríaca, que viveu em Portugal, conta como se impôs num setor dominado por homens. Este sábado, é uma das oradoras do TEDxLisboa.
Tem 60 anos e é uma das responsáveis pelo sucesso dos vinhos austríacos.

Ser mulher num mundo dominado por homens continua a ser um desafio. Dorli Muhr, austríaca de 60 anos, sabe-o bem. Produtora de vinhos e empresária, confessa que ainda é difícil ser respeitada e reconhecida na indústria, mas não desiste. Muhr será uma das oradoras da próxima edição da TEDxLisboa, que acontece já este sábado, 15 de março, na Culturgest.

A paixão pelos vinhos nasceu durante uma viagem a França, enquanto terminava a licenciatura em tradução. Conheceu uma nova forma de olhar para a enologia e, quando regressou a casa, decidiu recuperar as vinhas herdadas da avó, no sopé dos montes Cárpatos. Foi aí que começou a investir na produção de vinho. Reconhecendo o grande potencial da região, em particular da colina Spitzerberg, passou os anos seguintes a comprar e a alugar terrenos antigos e abandonados, replantando e revitalizando-os com novas videiras.

Enquanto isso, viveu em Portugal, onde descobriu o valor dos vinhos antigos, e criou uma agência de relações-públicas que trabalha com produtores, restaurantes e marcas do setor.

Dorli é reconhecida pelos pares como uma das pioneiras na região do oeste da Áustria. Em 2015 converteu a sua propriedade de 12 hectares para ter o mínimo de intervenção tecnológica. Para a empresária, quando menos recursos a tecnologias e meios digitais, melhor. Aliás, é precisamente sobre o impacto da vida fora das redes sociais que Dorli Muhr vai falar na próxima edição da TedX Lisboa.

A produtora e empresária vai subir ao palco por volta das 13 horas, para alertar sobre o impacto da “analogia” e dos vinhos nas relações e na felicidade.

Como é que começou a sua história com o vinho?
Eu sou tradutora de francês e espanhol de formação e durante os meus estudos fiz uma viagem por França, de bicicleta, com um amigo. E foi durante esses dias que me apaixonei pela bebida, que naquela região era tão diferente do que eu conhecia como vinho. Eu sempre cresci ao lado das vinhas da minha família, mas era diferente. No me país temos o hábito de misturar o vinho com água e em França descobri hábitos completamente diferentes.

O que é que era diferente?
Em França falavam-se das vinhas, das castas, do ano das colheitas. Contavam-nos uma história quando nos apresentavam um vinho e eu comecei a perceber que havia muito mais para conhecer, pesquisar, descobrir. Nunca mais consegui parar de ler sobre o assunto.

E nessa altura surgiu a sua empresa…
Sim, ainda durante a licenciatura me tradução comecei a mudar o meu rumo e criei uma empresa de relações-públicas, chamada Wine and Partners, que mantenho até hoje. Desenvolvemos estratégias de marketing e comunicação para empresas relacionadas com a área, desde produtoras, distribuidoras a restaurantes e mesmo regiões ou produtos culinários para todo o mundo. Um dos nossos clientes mais importantes é um grupo português, o Duro Boys. Trabalhamos com eles há 20 anos, desde a altura em que vivia em Portugal.

Durante quanto tempo viveu em Portugal?
Durante sete anos, de 2000 até 2007, vivi no Porto com o meu ex-marido. Ele era espanhol e ligado ao mundo dos vinhos. A relação não funcionou e eu regressei à Áustria, mas temos uma filha, com 21 anos, a Anna, que também adora esta área e está a estudar enologia, por isso no futuro deve assumir as minhas empresas, ou as do pai, ou ambas. Veremos.

Como é que começa na produção de vinho?
Portugal teve, por acaso, muita influência nisso. Após encontrar a associação Douro Boys, percebi que não se faziam bons vinhos apenas em Itália e França. No Douro, por exemplo, fazem-se ótimas referências elegante e frescas num clima seco e quente. Foi também nessa região que percebi que queria trabalhar também com vinhos antigos. Não há nenhuma região no mundo com vinhos tão antigos e incríveis como em Portugal. Decidi voltar para a Áustria, para a zona oeste onde a minha avó tinha deixado as vinhas à nossa família.

E acabou por inovar numa das áreas de produção.
Bem, não foi bem inovar, simplesmente decidi voltar ao passado e recuperar uma técnica muito muito antiga. Construí uma adega que não é subterrânea, com paredes em pedra, com cerca de 80 centímetros de espessura e muito escuras, quase como de uma igreja. Isto ajuda a que a temperatura seja mantida de forma natural, sem qualquer recurso a ar condicionado. Como acontece nos castelos e fortalezas, no verão torna-se muito fresco e no inverno mais quente. Quero evitar ao máximo usar eletricidade.

Os vinhos Dorli Muhr têm recebidos vários prémios internacionais. O que os torna especiais?
A forma como os produzimos. Aqui tento evitar ao máximo a tecnologia e regressar ao passado, em que tudo levava o seu tempo. Gostamos de fazer tudo manualmente e o armazenamento nos locais com paredes em pedra, ajudam. O conjunto de processos faz com que surjam vinhos elegantes e muito intensos, cheios de aromas e sabores, sem ser pesado. Geralmente até comparo os nossos vinhos com uma bailarina que dança e faz piruetas, porque tem muitos músculos, muita tença, força, concentração e nem uma área de gordura. É elegante.

Sentiu que algum desses reconhecimentos demorou mais a chegar por ser mulher?
Temos algumas vantagens por ser mulher, sobretudo quando somos jovens e bonitas. Mas quando envelhecemos, perdemos essa vantagem. Aconselho todas as mulheres a não potencializarem o exterior, o vestido bonito. O importante é que nos respeitem e nos levem a sério. Essa é uma luta que ainda temos de continuar a travar. Temos de continuar a provar, constantemente, o quão profissionais somos no que fazemos.

É uma mulher, produtora de vinhos, na Áustria. Como é que vê o posicionamento dos vinhos austríacos a nível internacional?
Fizemos um ótimo trabalho nos últimos tempos, tendo em conta que há 30 anos vivemos tempos muito difíceis na produção, após um escândalo que afetou todo o País e envolveu uma adulteração ilegal que fez com que os vinhos da época ganhassem todas as competições existentes. Assim que foi descoberto, a indústria foi afetada. Tivemos de refazer o nosso trabalho, tanto na produção, como no marketing, sem imitar ninguém. Resultou e agora somos muito respeitos a nível mundial neste mundo dos vinhos.

Dorli é feliz neste meio.

Qual é o papel do marketing nesta área?
Quando era miúda achava que só o vinho francês era bom, porque tinha reputação. Depois aprendi que podemos fazer o melhor vinho do mundo, mas que isso não basta. A comunicação, divulgação e o storytelling são fundamentais para o sucesso da bebida. É isso que vai fazer a diferença. Na hora de comprar um vinho, os clientes vão decidir com base na emoção e não de forma racional. Temos de apelar às emoções e isso é possível porque contamos a história por trás daquele rótulo, de onde veio, como foi feito. Se as pessoas se identificarem vão comprá-lo. É parte do sucesso.

A Murli faz as duas coisas, a estratégia e a produção. Como é que concilia as duas empresas?
Ando sempre a correr. De reunião em reunião, de cidade em cidade. Tenho uma vida muito intensa e adoro. Se tiver dois dias de descanso, certamente acordo em ambos com dezenas de ideias. Não sou nada uma pessoa de me sentar, relaxar e não pensar em nada. Quero estar sempre a desenvolver a fazer coisas e divido a minha entre a agência e as vinhas. De domingo a terça-feira estou dedicada à agência e os restantes dias à adega.

Vai discursar este sábado na TEDxLisboa. Como é que foi receber este convite?
Entusiasmante. Escrevi um texto, mas ainda nem tive tempo para o estudar. Estou curiosa e intrigada com o que vai acontecer, mas nem tenho muito tempo para pensar porque estava na Alemanha, voei para Lisboa e depois volto para a Alemanha novamente e depois para a Áustria.

O que vai apresentar?
Comecei neste meio antes das redes sociais, antes das tecnologias tomarem conta das nossas vidas. Na altura a máquina mais progressiva era a de efeitos. A pandemia fez-me voltar a pensar nesses tempos. Apesar de termos todas as ferramentas necessárias para trabalharmos a partir de casa, faltava algo. Senti que faltava conexão, vida real. E isso prolonga-se aos dias de hoje porque os meios digitais tornam tudo mais rápido e governam-nos. Apercebo-me, tanto em provas na vinha, como em jantares e festas, que as pessoas adoram os momentos analógicos, longe das redes e tecnologias.

Experiências analógicas. Qual é o impacto na nossa vida?
Tenho feito várias pesquisas nesse sentido e estas experiências têm impacto na nossa felicidade. Encontrei várias provas que mostram que os nossos cérebros reagem a discussões e conversas com outras pessoas. Chama-se sincronização e faz com que o nosso produza a hormona da felicidade. Então, não é uma invenção quando achamos que nos sentimos melhor quando estamos sentados à mesa, todos juntos, a beber vinho. Os nossos corpos reagem e sentimo-nos mais felizes, relaxados, equilibrados.

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