Gourmet e Vinhos

Este é um dos doces mais populares do País e nasceu das sobras dos conventos

Durante as festas de São Gonçalinho, em Aveiro, foram vendidas 15 toneladas de cavacas para arremessar do alto da igreja.

Ovos-moles, cornucópias, toucinho do céu e queijadas são alguns dos doces conventuais que, no século XV, foram criados pelas freiras que habitavam mosteiros e conventos em diversas regiões do País. Embora as receitas fossem variadas, duas constantes estavam sempre presentes: gemas de ovos e açúcar. O único problema é que a dada altura tiveram de descobrir que destino dar à quantidade exacerbada de claras de ovo que sobravam.

Segundo a história contada pelos populares de Aveiro, em alguns conventos recuperaram o hábito antigo de usar a clara como goma para engomar as batinas dos clérigos, enquanto outros decidiram aproveitá-las para criar doces mais simples. Começaram a misturar as claras que sobrara com óleo e farinha, levando a mistura ao forno. Rapidamente perceberam que precisavam de acrescentar um toque de doçura, e começaram a polvilhar açúcar sobre os bolos ainda quentes. O resultado foi um bolo mais compacto e oco por dentro, mas bastante saciante, que passaram a vender a um preço inferior, a que chamaram cavacas.

Com uma forma arredondada e achatada, e uma durabilidade superior a outros doces, as cavacas tornaram-se rapidamente populares entre os “remediados”. A receita acabou por ser transmitida de geração em geração, mas a sua notoriedade aumentou com a lenda de São Gonçalinho, em Aveiro.

Hoje em dia, as cavacas competem com os ovos-moles em termos de popularidade, especialmente durante a romaria em honra do padroeiro, quando batem recordes de vendas. Os pasteleiros da região passam vários dias a preparar as cavacas para que nunca faltem durante as festividades. A organização da festa precisa assegurar entre cinco a sete toneladas de doces para atender às reservas feitas pelos populares.

Cavacas pelo ar

A origem desta celebração, como muitas outras no País, é desconhecida. Contudo, a Mordomia de São Gonçalinho, responsável pela organização da festa, revela que um dos vários mitos associados à tradição continua a destacar-se ao longo dos anos. 

Segundo a lenda, São Gonçalo, originário de Amarante, deslocou-se a Aveiro para ajudar os pobres e doentes. Durante a Idade Média, a lepra afligia a Europa, incluindo Portugal. Temendo o contágio, o padre decidiu alimentar os doentes à distância, subindo ao alto da igreja para lhes atirar pão. O gesto transformou-se num ritual, que São Gonçalo repetia várias vezes ao ano.

Após a sua morte, outros clérigos seguiram o seu exemplo, continuando a alimentar os leprosos à distância. Quando a doença foi erradicada, os aveirenses mudaram o significado da tradição, passando a lançar pão para qualquer pessoa que quisesse apanhá-lo, como forma de devoção e cumprimento de promessas feitas ao santo. Muitos habitantes reuniam-se no adro da igreja segurando redes de pesca, à espera de apanhar o alimento que poderia sustentar as suas famílias durante dias ou semanas. Embora o ritual tenha perdurado, o pão foi substituído pelas cavacas, que são mais duras e têm uma maior durabilidade.

“As cavacas eram feitas com as claras que sobraram de fazer os ovos-moles. Levam farinha e óleo e são revestidas com açúcar logo após a cozedura, enquanto estão quentes. Muitos preferem usar forno a lenha e, para esta festa, costumam fazê-las mais duras para que não se partam ao atingirem o chão”, explica Bernardo Portas, um dos mordomos da festa, à NiT. 

Este ano, a celebração ocorreu entre 9 e 13 de janeiro, e foram lançadas cerca de 15 mil toneladas de bolos do alto da igreja. “Não há um número exato, pois cada pessoa lança quantas cavacas desejar, consoante a sua promessa. Há quem atire uma, duas ou até três sacas de cinco quilos”, acrescenta o aveirense.

Quem não tenha reservado cavacas pode adquiri-las nas pastelarias próximas da capela. Os doces são geralmente vendidos ao quilo, ao preço de 8€. Depois, os participantes podem optar por subir à capela e arremessar as cavacas, enquanto outros se juntam no adro da igreja para as apanhar. Com guarda-chuvas virados para cima, utensílios de pesca ou as mãos levantadas, todos colaboram na tarefa de recolher os doces, que depois são consumidos ou levados para casa.

Contudo, há quem prefira não lançar as cavacas, optando por colocá-las no altar como oferenda de uma promessa cumprida. “Durante a festa, temos de ir retirando as cavacas deixadas na igreja, pois chegam a ser várias dezenas, vindas de todos os lados”, refere.

Considerada a festa mais emblemática de Aveiro, foi recentemente incluída no inventário do Património Cultural Imaterial Nacional. A celebração, que se realiza há décadas, tem crescido ao longo dos anos, como explica Bernardo Portas. “É difícil estimar quantas pessoas visitam a festa, mas acreditamos que, durante o fim de semana, tenham sido mais de 100 mil, vindas de vários lugares. Atualmente, nota-se também um aumento no número de estrangeiros”, acrescenta.

A Mordomia de São Gonçalinho concluiu o seu mandato ao fim da festa. Agora, segundo o mordomo, o presidente atual terá de passar o testemunho a outra pessoa, escolhida por ele. O momento é marcado com a entrega de um ramo ao novo responsável, dando início a mais um ano de organização da emblemática celebração aveirense.

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