“Uma vaca feliz, outra vaca feliz. Uma ilha de vacas felizes”. Acordei em São Miguel com esta música na cabeça. Algo que seria bizarro se estivesse em casa, em Lisboa, mas perfeitamente normal para quem está nos Açores, terra de vacas felizes. Pelo menos sempre foi isso que eu ouvir dizer — e fiz questão de ir até lá confirmar.
Enquanto me despacho às sete da manhã para ir até às pastagens, sei que as vacas já estão na ordenha com o Eduardo. Sim, só assim: o Eduardo. Este é o senhor a quem pode ligar para descobrir as razões pelas quais as vacas aqui são tão felizes. De certeza que já viu o número em cartazes pela sua cidade e, acredite, vale a pena fazer a chamada. A esta hora é capaz de não atender o telefone, mas responde sempre com uma mensagem e um convite.
Quando cheguei ao pasto do Eduardo, nos Barreiros, freguesia da Maia, lá andava ele a passear junto das suas vacas. “Anda cá, Deitada”, repetia para um dos animais que se mantinha descontraidamente deitado na relva. Depois, levantou-se devagar e fez como lhe pediram. Esta vaca chama-se Deitada, lá está, mas as outras também têm nome: Branquinha, Rebeca, Gaivota ou Dondoca. E todas adoram ouvir música.
“Tenho 103 vacas e sei o nome de todas. Tal como nós aqui somos todos diferentes, elas também. Quando há dez anos fazia a ordenha à mão, elas só entravam quando chamava pelo nome. São como os outros animais, têm hábitos. À tarde, quando estão à espera da hora de tirar leite, estão todas viradas para o rádio. Gostam de ouvir a Antena 1. Quer dizer, eu gosto de ouvir e elas são obrigadas a ouvir”, explica José Eduardo Pereira, um dos 140 produtores de leite da Terra Nostra na ilha de São Miguel, nos Açores.
Hoje, o famoso Eduardo tem 56 anos mas desde miúdo que passa os seus dias junto destes animais. Aos sete, já ia com um dos irmãos (são doze e seis trabalham com vacas) ordenhar vacas de madrugada, antes até de irem para a escola. “Tenho muitas memórias felizes”.
Há 8 anos que faz parte do Programa Leite Vacas Felizes, por isso o açoriano reconhece o contributo desta iniciativa para o cuidado dos animais e da terra, mas também para as condições dos produtores — bem como do desenvolvimento do setor na ilha. Fazer o bem, bem feito é a missão da Terra Nostra.
Confirma-se: aqui, as vacas são mesmo livres e comem erva fresca 365 dias por ano. Não há estábulos e edifícios de cimento para ficarem presas durante dias a fio. É esta liberdade e bem-estar que contribui diretamente para serem tão saudáveis e felizes. Estas vacas chegam a viver, em média, mais quatro a cinco anos do que as outras.
“Uma vaca fechada em cimento, dói-lhe muito as unhas, ou os joelhos. São 600 ou 700 quilos em cima das patas. Na pastagem é mole. Não dá esses problemas. Conseguem ter uma melhor qualidade de vida e dão melhor leite. Se estiveres bem-disposta, fazes melhor o trabalho, não é? Empenhas-te mais. As vacas são iguais. É um leite sem stress”, explica-nos Eduardo, sempre com uma alegria contagiante.
O bem-estar dos animais é primeiro pilar deste programa, mas a terra é também essencial no processo. É por isso que Eduardo passa entre 12 a 16 horas a trabalhar diariamente. Sai de casa antes do sol nascer, mas nunca se esquece de ligar à mulher pelas oito da manhã a desejar-lhe um bom dia. Quando chega a casa, depois das oito ou nove da noite, vai quase direto para a cama. Está de rastos.
Além da ordenha, é preciso lavrar e cuidar do terreno, que é a garantia de um bom alimento para as vacas. É também, como sabemos, um contributo importante para o bem-estar do planeta. Como diz Eduardo, ninguém quer “que a terra vá parar ao mar”. E uma terra bem cuidada preserva um ecossistema cheio, evita possíveis deslizamentos e outros problemas que podem afetar o ambiente. Assim, o processo de mudança para a agricultura regenerativa já é uma realidade junto de cinco produtores selecionados pelo programa Leite de Vacas Felizes.
Histórias de um amor pelas vacas (com nome)
Se chegou até aqui e ainda tem dúvidas sobre a felicidade destas vacas, saiba que o amor que têm por quem cuida delas chega ao ponto de haver crises de ciúmes nos pastos verdes da ilha.
“A Agulha e a Delfina foram criadas por mim desde bebés e, quando tinha tempo livre, brincava muito com elas. Acabei por perceber que quando brincava com a Delfina, a Agulha ia contra ela. E isso manteve-se para a vida. As duas vinham atrás de mim como cães, mas a Agulha tinha mesmo ciúmes”, conta-nos Eduardo.
Mas nem só de situações divertidas se faz a vida no pasto, visto que falamos de animais de grande porte e que, não sendo fáceis de desaparecer, são fáceis de se magoar. E também “desaparecem”. Aconteceu com a Aurora, quando, certo dia, Eduardo a perdeu de vista na sua exploração. Perguntou junto da vizinhança e procurou-a por horas, mas nem sinal do animal. Já ao terceiro dia, é que deu pelo som de barulho que reconheceu como sendo uma vaca, provavelmente em perigo.
“Fui ver e era a Aurora caída na ribeira. Chamei um funcionário para me ajudar mas ela virou-se a ele como um cão. Começou a lamber-me e lá conseguimos sair dali. A partir daí, tornou-se menos arisca, ficou mais mansa. Salvei-a da morte, depois de três dias sem comer”, relembra o produtor, que interrompe as suas histórias para atender o telemóvel.
“Tenho muito para fazer mas é importante tirar este bocadinho de tempo para vocês, para vos mostrar o que fazemos aqui na ilha. Mas agora Natália já me chamou para ir comer. Ela é que manda”, despede-se Eduardo, depois de desligar a chamada à mulher.
Se quiser ouvir ao vivo mais histórias do Eduardo, só tem de lhe ligar. Ele irá depois escolher as mensagens mais divertidas e os vencedores ganham uma viagem a São Miguel, no final de junho, para o conhecer, brincar com as suas vacas e descobrir os maiores segredos desta fantástica ilha, das paisagens à comida. Por exemplo, saiba que os vencedores vão ter uma incrível refeição (lapas incluídas) no famoso Bar da Caloura, mesmo encostado ao mar, podendo também dar um mergulho nas águas quentes das Furnas. Já vai ligar?
A caminho de uma agricultura regenerativa e da neutralidade carbónica
Com a ambição de ser a marca mais natural e sustentável de laticínios no mundo, o processo de passagem para agricultura biológica por parte de alguns produtores ligados à insígnia era indispensável. Mas a Terra Nostra quer ir mais além. Se demora dois anos a converter um pasto normal em biológico, as mudanças com a agricultura regenerativa levam pelo menos cinco a serem visíveis. E estas já começaram a ser feitas com cinco produtores-piloto do programa.
Um deles é o irmão de Eduardo, Luís Gonzaga Pereira. “Há três anos que já não uso nada de produtos de síntese ou químico com a agricultura biológica. Agora já comecei a melhorar também o desempenho do solo, que é parte do processo de mudança para a agricultura regenerativa”, conta à NiT.
Este método consiste num conjunto de técnicas, aplicadas em diferentes fases. Por isso, demora alguns anos até mostrar resultados. Por exemplo, sabia que, quando lavra a terra, está a destruir uma “cidade de minhocas”? Lavrar a terra não é errado, mas é importante garantir que não se levanta um solo rico em variedade de plantas e nutrientes e o mesmo é desperdiçado. Com a agricultura regenerativa, existem outras formas de permitir ao solo que se regenere, sem destruir aquilo que ainda tem para oferecer.
“Se tiver uma boa pastagem, bom planeamento, boa variedade de plantas que compõem uma alimentação melhor para os meus animais, com certeza eles vão produzir um leite de melhor qualidade”, acrescenta o produtor com o seu tablet na mão, onde acompanha diariamente os dados de cada uma das vacas e do solo.
A par deste passo, a Terra Nostra trabalha já arduamente para atingir a neutralidade carbónica — da pastagem às embalagens. E isto tudo acontece com o objetivo de dar mais lucro e benefícios aos produtores de leite da ilha. No fundo, é um ecossistema perfeito.