A paixão pela cozinha começava a despontar na cabeça de José Avillez. Seria um percurso incomum e, também por isso, havia alguma relutância em confessar o desejo trocar os livros pelos tachos. Confessou-se primeiro à mãe, mas o conselho decisivo viria de outro lado.
“A Maria de Lourdes Modesto tinha trabalhado com o meu tio-avô e, nessa altura em que eu estava a decidir de seguia ou não cozinha, ele falou com ela para ver se podia conversar comigo”, recorda à NiT o chef português. “Ela recebeu-me em sua casa e acho que foi amor à primeira vista.”
Ainda assim, a primeira reação foi algo “séria”. “Ela achava que eu era apenas um mau aluno que queria ir para a cozinha para fugir à escola. Depois percebeu que eu era bom aluno e incentivou-me”, conta. “Foi a pessoa que meu deu mais força para agarrar a profissão. Até quando fui convidado para ir para o Tavares, e toda a gente dizia que eu era maluco, foi ela que me incentivou.”
A morte da gastrónoma e figura ímpar da cozinha portuguesa comoveu o chef, que precisou de tempo para processar a notícia. Maria de Lourdes Modesto morreu esta terça-feira, 19 de julho, aos 92 anos, mas fica para a história como autora de um dos mais relevantes compêndios da culinária portuguesa. Acarinhou e inspirou várias gerações de chefs que hoje elevam a cozinha portuguesa a nível internacional e a enchem de elogios. Para uns, é uma inspiração. Para outros, uma amiga.
Para José Avillez, Maria de Lourdes Modesto era algo mais. “Tive a sorte de me intitular como o neto emprestado dela e acho que ela também assumiu o papel de avó emprestada”, conta. Foi patrona da sua tese de licenciatura, escreveu o prefácio do seu primeiro livro. “Tínhamos uma relação de amizade, de grande respeito, primeiro numa só direção, depois acho que se tornou mútuo”.
O chef do Belcanto, que esta semana assegurou o lugar na lista dos 50 melhores restaurantes do mundo, sublinha a “herança única” de “alguém que investigou, escreveu e divulgou a cozinha portuguesa como ninguém”. Descreve-a como uma “figura incontornável da gastronomia mundial” e que vai “ficar sempre presente nos corações de quem teve a oportunidade de a conhecer”, mas também de “todos os que pegarem nos seus livros nas próximas décadas”.
“Nasceu no Dia da Criança e tinha essa alegria de viver, alguma infantilidade até. Fez uma vida dedicada a causas, da gastronomia, da saúde, a escrever sem parar, a trabalhar muito, mesmo quando já não precisava de o fazer”, recorda.
Por data do seu 91.º aniversário, Maria de Lourdes Modesto já evitava sair de casa. Mas isso não foi impeditivo de celebrar o dia, neste caso com um jantar caseiro preparado pelo próprio “neto emprestado”. “Foi, de certa forma, um carinho por eu, nestes últimos tempos, não ter conseguido estar tantas vezes com ela quanto deveria”, recorda.
Sempre “muito crítica”, ate porque “sabia bem do que gostava”, Maria de Lourdes Modesto nunca se retraiu nas críticas. “Ajudou-me a crescer, a melhorar.”
Também por isso, Avillez caprichou nessa ementa e apostou nos pratos que sabia que iam fazer sucesso junto do gosto requintado da gastrónoma. Começou com uma sopa de peixe “bem tradicional”, um bacalhau à Brás — um dos seus pratos favoritos — e terminou com a conhecida e gulosa sobremesa do chef, Avelã ao Cubo. “Ela gostava muito. Era muito gulosa.”
A inspiração feminina
“Não tenhas medo, vai para o meio deles e mostra a tua cozinha, o teu talento.” A mensagem chegou de forma privada, depois de um fórum de cozinheiros onde a chef Marlene Vieira era uma das participantes.
Entre chefs, críticos e gastrónomos, estava a maior delas todas, Maria de Lourdes Modesto, que reparou na jovem chef entre tantos homens. “Ela fazia parte do grupo e na altura enviou-me essa mensagem privada, deu-me conselhos e incentivou-me a não desistir”, recorda à NiT a chef, que é hoje um nome no feminino, num painel onde está quase sempre rodeada de homens. A gastrónoma sabia bem o que isso significava.
As palavras não ficaram esquecidas. “Ela marcou-me muito pelo orgulho que tinha na gastronomia portuguesa, pela forma como lutava por manter vivas as nossas receitas, sem qualquer vergonha por serem aparentemente mais rústica”, explica. “Hoje perdemos alguém muito inspirador e, sobretudo, alguém que representa muito a mulher portuguesa, cuidadora, forte, determinada e sem papas na língua.”
Uma referência para todas as gerações
Miguel Castro e Silva é de outra geração. A atingir as três décadas de carreira, recorda-se bem dos tempos em que, ao lado de outros chefs como Joaquim Figueiredo e Vítor Sobral, agitavam a cena gastronómica nacional. “Quebrávamos algumas das regras da cozinha da altura e a Maria de Lourdes Modesto até dizia na brincadeira que éramos os ‘seus três meninos’”, recorda.
Conheceu-a quase no início da sua carreira, quando regressava de vários anos na Alemanha e procurava voltar a redescobrir a cozinha portuguesa. “A cozinha portuguesa era muito maltratada na altura, mas é riquíssima e a Maria de Lourdes Modesto e os seus livros ajudaram-me a descobrir toda essa amplitude.” O “Cozinha Tradicional Portuguesa” transformou-se na sua bíblica. Um livro que, de tanto folhear, já teve que arranjar uma segunda cópia.
“Ela sempre foi uma grande fonte de inspiração e, também por isso, escreveu o prefácio do meu último livro”, nota. “É um livro que é uma referência para qualquer cozinheiro. Folheio-o muitas vezes, por vezes ia a procura de referências de um prato, noutras ocasiões ia fazendo descobertas.”
Recorda “uma pessoa muito especial” e “com um carinho incrível”. Nos últimos anos, os problemas de saúde foram-na retirando do espaço público. “A última vez que estive com ela foi para lhe mostrar o protótipo do meu último livro e ela disse com alguma piada: ‘Só faço o prefácio se tu no teu texto fizeres referência à importância da música na tua vida’.”
Nas paredes de casa, guarda também com carinho um desenho e uma mensagem deixada por Maria de Lourdes Modesto. “Eu não estava lá, mas ela foi almoçar com umas amigas ao De Castro Elias. No final, deixaram-me um desenho e uma mensagem: ‘Que hajam muitas estrelas, sejam continentais ou Michelin’”, recorda. “Está emoldurado em minha casa.”