Quando chegou a Portugal, em 2018, Julien Montbabut trazia na bagagem uma vida passada em Paris, na cidade e nos seus restaurantes. Nunca tinha conhecido outra realidade que não a da cidade onde existem mais de cem restaurantes com distinção do Guia Michelin.
Acabado de aterrar no Porto, pedia-se lhe que criasse uma carta para o restaurante de fine dining do Le Monumental, o grandioso hotel prestes a inaugurar na Avenida dos Aliados. “Não sabia sequer onde podia comprar uma colher, um prato”, recorda desses primeiros e atribulados meses.
Socorreu-se da carta que trazia no bolso e que, em Paris, o havia ajudado a segurar a estrela no seu anterior posto. “Não sabia onde comprar nada. Todas as semanas mandava vir de França um camião com produtos.”
Rapidamente percebeu que, além de não ser sustentável, essa forma de trabalhar não fazia sentido. O francês não queria viver isolado de tudo e todos, alheio ao que se passava à sua volta, às pessoas.
“Quando chegamos a um país, devemos abrir-nos a novas culturas, a novas pessoas. Como comprava tudo em França, pouco falava com portugueses. Não me sentia bem com essa forma de trabalhar.”
O sotaque do chef denuncia imediatamente as suas origens, embora exiba uma capacidade de compreensão e um vocabulário que surpreendem, dado que mora em Portugal apenas há quatro anos. E é neste português de bom nível que conversa com a NiT, dias antes de organizar um jantar Monumental, marcado para 23 de março.
Trata-se de uma festa que marca a atribuição da estrela Michelin, a primeira — um objetivo que, confessa, foi plenamente assumido desde o primeiro dia de abertura do Le Monument, o espaço de fine dining do Le Monumental Palace da francesa Maison Albar Hotels. Montbabut quer que seja também uma oportunidade para sublinhar a ligação entre os dois países, com a presença de um chef francês a trabalhar em França, Nicolas Fontaine, um chef português, Pedro Pena Bastos, e um chef francês a trabalhar em Portugal, Benoît Sinthon.
Já perfeitamente adaptado ao País, Montbabut — que foi um dos finalistas dos Prémios NiT, na categoria de Melhor Chef do Ano — explica que esta foi a sua primeira grande aventura profissional, ele que nunca ousou sair do rico ecossistema de Paris.
“Se eu vivesse numa parte de França onde houvesse poucos restaurantes, talvez tivesse sentido necessidade de sair de lá. Mas Paris tem mais de cem espaços com estrela, com estilos de cozinhas diferentes, com chefs estrangeiros com origens do Líbano ao Japão, muitas identidades. Foi por isso que nunca quis sair de lá”, conta. Afinal, era também a sua cidade-natal.
Cresceu numa família numerosa. Além dos pais, eram cinco irmãos. Julien era o mais velho e, a certa altura, deu por si a passar horas ao lado da mãe na cozinha. Primeiro a fazer-lhe companhia, depois a ajudar. “Era uma forma de estar um bocadinho com ela. Depois, aos 10 ou 11 anos, comecei a dar-lhe apoio”, conta. “Ela e a minha avó eram cozinheiras incríveis.”
Nunca lhe passou pela cabeça fazer outra coisa que não cozinhar. Ainda hoje teme pelo dia em que não o possa fazer. “Não faço ideia o que poderia fazer. Isto é uma coisa que me absorve”, confessa. Aos 15 anos, ainda na escola, sujeitou-se aos habituais testes vocacionais e tudo apontava para a cozinha. A inscrição na escola de hotelaria foi algo perfeitamente natural.
Era uma escola dura, recorda. Durante quatro anos, saltitou entre as aulas e a cozinha de um restaurante. Duas semanas num sítio, duas no outro. Começou cedo e, por isso, a adaptação teve que ser mais drástica — algo que, hoje, considera ter jogado a seu favor.
“Quanto mais cedo começas, mais moldável és. Adaptas-te mais facilmente. Hoje, quem começa com 20 ou 25, já só olha para a parte mediática da coisa; têm a ideia de que a cozinha é só a parte boa, empratar, criar pratos. Eu só empratei o meu primeiro prato ao fim de 15 anos”, conta.
Sentiu na pele a “exigência e rigor” que diz ser necessária para vingar na gastronomia, abdicou muito das saídas à noite com os amigos, de parte da adolescência. “É difícil deixares amigos, teres que trabalhar à noite, num ritmo completamente diferente das outras pessoas. Depois há a pressão, estamos sempre de pé, quase sempre sem luz natural. É preciso ter caráter para gostar disto”, diz. “É um pouco como ir para as forças armadas, há uma hierarquia muito bem definida, cada um com a sua responsabilidade.”
É um trabalho que, ainda hoje, não se dá a horários. Os pratos imaginam-se a todas as horas, visitam-se fornecedores nos dias de folga. E, na cozinha, a pressão é sempre a mesma.
O peso sobre os ombros não era tão grande quando, em 2005, entrou pela primeira vez no Le Restaurant, em Paris. Foi contratado como sous chef para a inauguração do espaço e dois anos depois, celebrava a conquista da estrela Michelin. Saiu em 2008 e, três anos depois, recebia convite para regressar, agora como chef executivo, a primeira vez que agarrava o cargo principal.
“Manter a estrela é diferente, sobretudo em Paris. Quando não tens nenhuma, não há tanta pressão. Diria que foi mais difícil manter essa do que ganhar esta última”, conta. “E quando és sous chef, a responsabilidade e a glória é do chef. Quando passei eu a chef, tens toda a pressão, se ganhamos ou se perdemos.”
Em 2018, sentiu que já tinha esgotado Paris e que era tempo de finalmente de partir à aventura. Quando lhe foi apresentado o projeto pela primeira vez, não lhe foi dito qual o destino. Sabia apenas que era algures na Península Ibérica. “Quando me disseram que seria no Porto, fiquei contente porque me lembrada da experiência que tinha tido na cidade.”
Portugal não lhe era um país completamente desconhecido. Passara duas semanas de férias no País em 2012: uma semana no Porto, outra em Lisboa. E não viria sozinho.
Em Paris conheceu a sua atual esposa, Joana Montbabut, chef pasteleira mas que, curiosamente, não conheceu nos corredores das cozinhas. Acabaram por trabalhar juntos e ambos disseram sim à mudança, apesar de Joana estar grávida.
“Não foi uma altura fácil. Eu vim e ela ficou lá, grávida, com o nosso outro filho. Só vieram depois de a minha filha nascer, já tinha ela dois meses”, recorda. “Não foi o melhor momento para a mudança, mas quando surgem oportunidades destas, é preciso agarrá-las. Gosto muito de Paris, deu-me tudo, mas percebi que ou me mudava rapidamente, ou acabaria por ficar lá para sempre. E eu queria viajar, sempre tive esse sonho de trabalhar fora.”
Hoje, Julien e Joana trabalham na cozinha do Le Monument, algo que não belisca o dia a dia de marido e mulher. “Não acho que seja um problema. É até o oposto. Se não trabalhássemos juntos, nunca nos víamos. Passamos mais tempo no trabalho do que em casa.”
Apesar da fase difícil de adaptação, Montbabut ultrapassou-a com a ajuda de uma pandemia inesperada. Além de ter forçado a sua equipa a falar sempre em português — foi “mais difícil para eles”, nota o chef —, obrigou-se a conhecer Portugal e os portugueses. A pausa motivada pelos confinamentos levaram-no a repensar o conceito da carta.
Pegou no carro e, enquanto não tinha que servir clientes, aproveitou para “conhecer os produtores, o terroir, o produto, as formas de cultivar, de comer, de temperar”. “Quando reabrimos o restaurante, deixamos de lado a importação de produtos e focamo-nos na valorização do que é português, sobretudo do que é do norte, embora não nos fechemos a outras regiões. Fizemos outro menu com outra experiência para o cliente.”
A ajuda dos outros chefs foi também preciosa. Quando chegou, um contacto adivinhou-se como prioritário: o chef Benoît Sinthon, seu compatriota e chef estrelado no Il Gallo d’Oro, no Funchal, que lhe deu “dicas de fornecedores e de outras coisas básicas”. Montbabut refere que foi “muito bem acolhido” no restrito círculo de chefs estrelados em território nacional, um conjunto “pequeno, mas com cozinheiros quase todos da mesma geração”.
Aos poucos, Montbabut foi percebendo o que poderia trazer de diferente ao cenário nacional. “A minha cozinha é muito clássica, baseia-se na cozinha francesa clássica. Talvez não tenha passado pelo Noma ou pelo El Bulli, mas sempre procurei reforçar aquilo que gosto de comer e de fazer”, explica, antes de dar a sua visão do panorama geral da gastronomia atual.
“A cozinha está a mudar. Estamos a passar de uma cozinha nacional, identitária, como pode ser a portuguesa, francesa ou italiana, cada uma com as suas especificidades, para uma cozinha mais mundial. Viajamos mais, temos as redes sociais, sabemos sempre o que todos os outros estão a fazer. Hoje é muito mais difícil olhar para um prato e dizermos qual é a sua origem.”
Naturalmente, o seu percurso marca muito daquilo que faz na cozinha. “A minha mãe e a minha avó eram cozinheiras incríveis. Guardo tudo desses sabores, dos pratos familiares, do convívio, é isso que estou a fazer, sempre com base nesses sabores.”
Vai recordando o pâté creusois que a sua mãe servia, um “estufado de carne servido em massa folhada”, memórias que vão inspirando coisas como o molho de carne no qual tem empenhado todos os esforços. “Passa três dias a cozinhar para, de 30 quilos de ossos e carne de novilho, tirarmos apenas dois litros de molho. É um concentrado de sabor”, conta.
Foi tudo isso que tentou unir à sua vivência portuguesa. O seu Portugal não é o Portugal do portuense, do lisboeta, do alentejano. É a sua interpretação do que cá vê, sente, cheira e prova. Exemplo? Um dos primeiros pratos da carta que lançou a sua nova visão daquilo que é hoje o Le Monument.
“Quando cheguei cá, fiquei maravilhado com o mar. Em Paris não há praia. Ia uma semana por ano ver o mar. Para vocês é banal, é como a Torre Eiffel para um parisiense…”, explica. Esse fascínio fê-lo inscrever-se em aulas de surf, onde passava mais tempo a engolir água do que em cima da prancha.
“Um dia disse ao professor que ia fazer um prato com esse sabor das aulas de surf. E fiz.” Com água do mar, algas, amêijoas e berbigão de Aveiro criou um prato “com história, com experiência, com ligação”. “Era isso que faltava ao restaurante, essa ligação perfeita entre a identidade francesa, a minha cozinha e o País, Portugal. Essa ligação é o fio condutor do restaurante”, nota. “Agora já não preciso de mandar vir nada num camião de França (risos).”
Montbabut foi sempre honesto. Sempre disse que o objetivo, no Le Monument, era o de ganhar a estrela. Cada ano que isso não acontecia “era uma deceção”, mas reconhece hoje que talvez ainda não houvesse “maturidade suficiente”. Hoje, com a estrela na mão, admite que foi preciso “amadurecer a cozinha”.
Foi um momento marcante. Mais marcante do que a estrela mantida em Paris. “Encarei as duas de forma completamente diferente. Aqui estava fora do meu meio, foi um começo do zero. Não falava português, não tinha uma rede pessoal, íamos abrir um hotel, um conceito grande com três restaurantes e 35 cozinheiros. Os desafios eram muitos.”
“Mesmo para quem é de cá, tem rede pessoal, conhece o País, é difícil… Para mim foi um passo muito grande. Foi uma recompensa pela dedicação e por todo o trabalho.”
Com o objetivo na mão, o chef francês foca-se agora no jantar celebratório que tem pela frente. “Vamos ter oito pratos — dois cozinhados por cada chef — e três sobremesas. A ideia é haver uma ligação entre eles, no conceito do restaurante. O Benoît vai trabalhar o carabineiro e o maracujá, produtos da Madeira, mas com um bisque francês. Vamos trabalhar ostras nacionais, de grande tradição francesa. Queremos que haja essa ligação, nos chefs e nos pratos.”
Na cozinha, ao lado de Julien, estará Nicolas Fontaine, do restaurante francês com duas estrelas Le Duende, em Nimes; Pedro Pena Bastos, chef do estrelado do lisboeta Cura; e Benoît Sinthon, do duas estrelas madeirense. O jantar, que requer reserva antecipada, acontece na quinta-feira, 23 de março, a partir das 19 horas e tem um custo de 290€ por pessoa. Será acompanhado com um wine pairing desenhado pelo sommelier Diogo Sanches Pereira e pelo parceiro do jantar, a Niepoort.
Para o chef, agora é hora de trabalhar e de desfrutar. E se a primeira estrela era um ponto de honra, a segunda está longe de ser uma obsessão. “Não é um objetivo como a primeira”, diz com a honestidade que lhe é habitual. “Vamos trabalhar por isso, claro, mas vamos fazê-lo com muito menos stress.”