Cafés e Bares

Promotores acusam MoMe de racismo: “Não quero um evento africano”

Em carta aberta, o DJ e produtor Boddhi Satva revelou alegadas mensagens do dono da discoteca lisboeta.
O espaço abriu em 2017

Foram dias atribulados os que viveram os promotores da Clandestinos, um evento que tinha estreia prevista em Lisboa para esta sexta-feira, 7 de abril. Uma festa “inspirada na cultura africana”, imaginada por Boddhi Satva, DJ e produtor nascido na República Centro-Africana e que há seis anos vive em Portugal. “Queríamos oferecer a Lisboa uma experiência de música soulful, mais quente, mais melódica.”

Após um cancelamento abrupto a uma semana do evento, marcado inicialmente para o Go A Lisboa, encontraram alternativa de última hora no MoMe, a discoteca lisboeta que aceitou receber o evento — até que a administração mudou de ideias. Foi com espanto que o agente e promotor Nuno Valente, parceiro de Satva no conceito, recebeu as notícias de que o MoMe pretendia cancelar o evento que faria a sua estreia nesta sexta-feira santa.

Procuraram, naturalmente, justificação. Acabariam por receber a imagem de uma mensagem alegadamente enviada por José Magalhães, administrador do Grupo Flow, dono da MoMe, da Bliss Vilamoura e de outros espaços de diversão.

“Eu não sabia que este evento era africano. Eu não quero”, pode ler-se na mensagem partilhada internamente. “Pensava que era uma coisa normal. Não quero mesmo.”

A justificação foi recebida com total estupefação pela parte dos organizadores da festa. Maior do que a frustração de ver o seu evento cancelado em cima da hora pela segunda vez consecutiva, foi a escolha das alegadas palavras por parte do dono da MoMe.

Acabariam por decidir partilhar publicamente a situação numa carta aberta divulgada através da revista “Bantumen”, mas que também fizeram questão de enviar ao presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas.

“Apesar dos nossos esforços para responder a todos os requisitos, fomos informados pelo proprietário do MÖME que não poderíamos realizar o nosso evento no seu espaço. Foi um choque”, revelam na carta aberta. “Infelizmente, a falta de profissionalismo demonstrada pela equipa do MÖME e do seu proprietário, João Magalhães, teve impacto e prejuízos materiais, num projeto que nasce essencialmente de boas energias, e não negativas.”

A história acendeu um rastilho nas redes sociais e levou a que muitas figuras públicas manifestassem o seu repúdio com a atitude da discoteca lisboeta. Rita Pereira foi uma delas, ao replicar ironicamente a frase “pensava que era uma coisa normal”. Também o artista Djodje partilhou a carta aberta.

Coréon Du, artista angolano e filho de José Eduardo dos Santos foi outro dos comentadores. “As pessoas em Portugal normalizaram este tipo de comportamentos discriminatórios, tratam as pessoas de cor, sobretudo negros, como acessórios para lhes dar um ‘cool factor’ que os tornam mais inclusivos e progressivos do que realmente são.”

Aos 40 anos, Boddhi Satva é um dos pais do afro house, um artista internacionalmente reconhecido que cresceu na Bélgica e se instalou em Portugal, país onde diz que se sente “um português adotado”. “Sinto-me em casa”, explica, enquanto explica o que o motivou a criar o conceito Clandestinos.

 

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“É um evento inspirado na cultura africana. Somos da música house e a house é muito inclusiva”, diz. Imaginou a festa como um conceito pequeno, para “não mais de 200 pessoas” dos 25 aos 50. Até por esse “caráter multigeracional”, imaginaram que seria um evento tranquilo, ligado à música, curto, até às três da manhã. “Queremos um evento saudável, para pessoas mais adultas, que já não estão para ficar até às sete da manhã”, nota Nuno Valente, também ele um homem sempre ligado à música. Hoje é agente, mas já foi DJ, cantor, teve programas de rádio.

O primeiro destino da Clandestinos era o Go A Lisboa, que recebeu “com agrado” a proposta. “Houve alguns problemas pelo caminho, relacionados com a venda de bilhetes, e depois acabaram por nos avisar no sábado que iam cancelar o evento. Sem aviso prévio nenhum.”

Segundo Satva, a carta aberta teve o condão de lhe fazer chegar inúmeros relatos “de colegas, muitos negros” que “já passaram por esta experiência com o Go A Lisboa”. “Estou a falar de duas pessoas que tentaram fazer eventos lá e passaram pelo mesmo processo. Diziam que gostavam da ideia, mas depois ninguém respondia mais às mensagens.”

A partir daí, procuraram uma alternativa rápida. Surgiu o nome de João Magalhães, do MoMe. Ao telefone, falaram sobre o conceito e receberam o ok do proprietário. Partiram para um encontro pessoal na discoteca com um dos gerentes. “Foi tudo muito fluído, muito confortável. Explicamos detalhadamente o que era o evento”, explica Satva. Já Nuno Valente aclara que surgiram algumas questões, como as “casas de banho que não estavam arranjadas”, mas que isso “nunca foi obstáculo”.

Refizeram toda a comunicação do evento e, num só dia, voltaram a colocar os bilhetes à venda. “Recebemos emails de clientes que não ficaram agradados com a mudança para o MoMe, diziam muitas coisas negativas do espaço, mas conseguimos convencê-los. Dissemos que ia ser no rooftop, que teríamos uma entrada ao lado, separada da principal”, explica o DJ e produtor.

Estavam mais de 60 bilhetes vendidos após o anúncio do novo local do evento quando chega a mensagem que deitou tudo pelo chão. Chocados com as subsequentes revelações da alegada mensagem de João Magalhães, confrontaram a empresa diretamente.

“Foi um choque ver alguém a falar assim. Sobretudo alguém que recebe muito dinheiro de muitos clientes negros”, confessa Satva, preocupado com o impacto na sua reputação e no seu trabalho. “Era um evento que ia trazer pessoas de fora do País. Eram mais de três dezenas, umas chegaram ontem, outras chegam amanhã. E agora?”

“Quem escreve noite africana, assim sem pensar, é o quê? O que é que as pessoas interpretam? ‘Pensava que era uma coisa normal.’ Então o que é uma noite africana, uma noite anormal?”, reclama Valente. “Não fizeram uma comunicação digna a dizer se foi lapso, um mal-entendido, a assumir o que fizeram, a assumir que erraram.”

Para o DJ e produtor nascido na República Centro-Africana, o que aconteceu foi “uma chapada na cara”. “Em 23 anos isto nunca me aconteceu. É inaceitável”, diz, antes de revelar que após a carta aberta, foram muitos os colegas artistas e promotores que lhe prestaram relatos de situações semelhantes.

“Há muitos promotores de origem negra, africana, que não têm acesso às maiores casas pelo facto de trazerem muitos negros. E os donos dessas casas falam assim, livremente. Há discriminação”, assegura. “Eu nem sou negro, sou filho de pai negro e mãe branca. A minha pele é branca. Toco para todos, negros, brancos, mestiços. Todos.”

Na carta aberta falam numa “tendência perturbadora de discriminação contra promotores negros e africanos” em Lisboa. Embora admitam que “alguns promotores” apresentam falta de profissionalismo que, por vezes permite que se gerem “confusões e problemas nos locais onde se produzem os eventos”, referem que “não é incomum os proprietários desses clubes referirem-se a promotores africanos de forma racista”. “Muitas vozes de artistas, promotores e DJ foram silenciadas ou calaram-se por medo de terem as suas atuações canceladas ou por se fecharem portas nesses clubes e não poderem trabalhar.”

Valente confirma o panorama na noite portuguesa e fala de “atitudes racistas” e “discriminação racial” latente nos espaços noturnos. “Distinguem as noites pelo estilo musical, pela identidade musical ou pela cor da pele das pessoas que frequentam a noite?”

“Isto não é um incentivo ao ódio. Estamos apenas a transmitir o que acontece”, explica. “Pelo amor de Deus. Estamos no século XXI. Isto é um perigo. Hoje são os negros, amanhã os chineses… Temos que parar com isto. É racismo. É xenofobia. É isto que estamos a combater.”

A NiT tentou contactar o Grupo Flow no sentido de obter um comentário às acusações que são feitas. O departamento de comunicação revelou que João Magalhães está fora do País e só falará sobre o tema aquando o seu regresso.

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