É com um ar resignado que Miguel Rocha Vieira acolhe a questão que se impunha. “Sinceramente, nem sei bem o que é que aconteceu”, desabafa. O que aconteceu foi que ao fim de anos de sucesso a gerir duas estrelas Michelin no Costes, em Budapeste, disse adeus aos dois espaços que tinha na Hungria para agarrar o ambicioso projeto do Anfíbio. À NiT, revelara na altura que era “o projeto de uma vida”. Não foi bem isso que aconteceu.
Em novembro, ao fim de oito meses, anunciava-se a sua saída do projeto. O chef manteve-se em silêncio, até agora — e por bons motivos. Miguel Rocha Vieira surge como elemento de uma autêntica revolução no grupo de gestão hoteleira Ace Hospitality Management (AHM), responsável por oito unidades em Portugal, com mais umas quantas a caminho.
O plano é ambicioso: repensar os espaços de restauração e conceitos gastronómicos de todos os hotéis. O chef português não está sozinho nesta missão. O parisiense Pierre-Olivier Petit conhece bem Portugal, ou não tivesse sido já diretor de F&B nos hotéis The Oitavos e também no Intercontinental Lisbon. E conhece bem a realidade das cozinhas, por onde também passou como chef e conquistou até uma estrela Michelin em 2015. Por agora, está mais virado para o lado operacional, do qual ficará encarregue neste projeto.
A nova etapa promete ser desafiante e é nela que Miguel Rocha Vieira, também estrela de televisão no MasterChef Portugal, está empenhado, embora a mágoa permaneça. “Fomos todos apanhados de surpresa”, diz, sobre a saída do Anfíbio, que terá sido comunicada por email pelo grupo Lean Man, detentor do espaço. “Ninguém deu a cara. Estávamos a 20 e tal de dezembro e ainda não sabíamos o que ia acontecer. Nem ninguém do grupo Olivier [escolhidos para tomarem conta da gestão do Anfíbio] veio falar com a malta. Fomos ameaçados com insolvência, uma série de coisas”, conta.
“Achamos que as coisas não foram feitas da melhor forma. Não estávamos cheios todos os dias, ainda tínhamos coisas por explorar, mas estava a funcionar bem, o feedback era bom”, refere. “Deixei tudo lá fora, venho com a família, de malas às costas. Muitas pessoas despediram-se de onde estavam para vir trabalhar comigo. Apesar de ainda não saber bem o que se passou, assumo as responsabilidades naquilo que tenho que assumir, mas para mim, o que se passou não fez sentido nenhum.”
O que agora faz sentido é precisamente a nova missão. E o seu nome também fez todo o sentido para Mariano Faz, CEO do AHM. O seu e o de Pierre-Olivier Petit, as suas mentes por detrás desta renovação total. “É uma decisão estratégica dentro da organização. Temos hotéis, mas acreditamos que a restauração tem que ter também um peso importante. Queremos criar outros conceitos, um serviço, uma experiência muito diferente da que se tem habitualmente num hotel. Se seja, a experiência vivida no hotel não tem de ser igual à do restaurante”, diz o gestor, cuja estratégia passa sobretudo por quebrar a habitual barreira criada em torno dos espaços de restauração no interior de hotéis. Esbater a ideia de que são locais para hóspedes, mais inacessíveis.
Rocha Vieira simplifica ainda mais a ideia. “A ideia é que vás jantar três ou quatro vezes ao sítio e só à quarta é que te apercebes que estás num hotel. Queremos quebrar esse preconceito. Queremos abrir os espaços à rua. Dizer às pessoas que só por acaso é que somos um restaurante que está num hotel“, diz. “Se agora falarmos em dez restaurantes para irmos jantar hoje, provavelmente nenhum será num hotel. Queremos ser pioneiros nessa mudança de pensamento. O futuro desta indústria está aí.”

Quanto a conceitos, está tudo em cima da mesa. “Podemos apostar num rooftop, noutra linha podemos ir mais para o fine dining, ou eventualmente para um casual dining. Mas mesmo dentro desses espaços mais casuais, queremos criar vários conceitos”, refere o CEO, sem adiantar valores de investimento. “O investimento vai ser mais muito mais na qualidade do serviço, algumas mudanças a nível de design, também no marketing.”
A lista de candidatos é longa e vive, para já, sobretudo a norte. A empresa gere atualmente oito hotéis, num investimento de 167,3 milhões de euros. No Porto, o novíssimo Renaissance Porto Lapa Hotel, que se juntou ao Arts Hotel Porto, Casa da Companhia, Sé Catedral Hotel e Fontinha Hotel. Têm em carteira também o Four Points By Sheraton Matosinhos, a Casa Das Lérias em Amarante e o Hilton Garden Inn em Évora.
O primeiro a receber o toque de Rocha Vieira e Petit será o restaurante da Casa da Companhia, o hotel de luxo instalado num edifício do século XVIII em plena Rua das Flores, antiga casa da Real Companhia Velha. Os primeiros novos conceitos deverão ser anunciados entre março e abril.
O multitasking não será propriamente um problema para Miguel Rocha Vieira, que chegou a ter três restaurantes com estrela Michelin sob as suas ordens — ao mesmo tempo. “Embora seja uma pessoa bastante inquieta e que gosta de desafios, são muitas coisas para tratar. Há também o grande desafio de formar as equipas, sobretudo com o problema de falta de mão de obra”, comenta. “Obviamente, quando aparece uma proposta destas, vinda de uma empresa que quer mudar as coisas… Irá certamente haver um antes e depois em Portugal, sobretudo na forma de encarar o negócio.”
“Costumo estar associado a coisas mais pequenas, exclusivas. Mas estou muito entusiasmado por poder dar o cunho pessoal e ver marcas a serem criadas do zero, a nascerem e crescerem, de norte a sul do País. É daquelas oportunidades que só surgem uma vez.”

Se o português fica mais próximo da cozinha e das equipas, Pierre-Olivier Petit assumirá o lado logístico e financeiro das operações. Não se conheciam pessoalmente, mas conheciam bem os currículos um do outro. “Ele já foi chef, é um colega de cozinha e isso tem vantagens. Falamos a mesma linguagem”, diz Rocha Vieira.
“Há tanto trabalho que vamos ter que dividir as tarefas”, nota o francês de 47 anos, que além dos números, estará também atento “à atmosfera, à música, à decoração”. Um trabalho exaustivo que não quer descurar qualquer pormenor.
Se oito hotéis já pareciam ser trabalho de monta, a AHM prepara-se para gerir mais três, prestes a inaugurar, num investimento de 54 milhões de euros do grupo Mercan: um no Porto, na zona da Boavista; outro em Beja; e mais um em Évora.
E se a conversa com Miguel Rocha Vieira começou com uma pergunta óbvia, teria que terminar com outra ainda mais elementar: o fine dining e o regresso às estrelas. “Acho que vamos acabar por lá chegar, numa das unidades de cinco estrelas. Se calhar isso seria a cereja no topo do bolo, não é?”