Não há nada melhor que viajar e encontrar algo que nos lembre o nosso País. Ouvir falar português numa carruagem de metro em Itália, encontrar uma bandeira portuguesa colocada numa janela na Holanda, ou comer um pastel de bacalhau no Brasil. É como reencontrar de um amigo de longa data — e, de forma quase imediata, caem as barreiras que podiam existir de timidez e embaraço.
Parece uma ideia contraditória, sabemos. Quando decidimos fazer uma viagem queremos deixar para trás o que conhecemos, e afastarmo-nos de tudo o que nos recorde Portugal. No entanto, poucas sensações nos fazem sentir tão confortáveis como encontrar um detalhe nacional nos locais mais inusitados.
Afinal, quem imaginaria passar por uma rua em Kampot, no Camboja, numa bicicleta e ouvir Ana Moura? Diríamos que a probabilidade de tal acontecer seria muito baixa. Pelos menos, assim pensávamos. Mas foi precisamente o que aconteceu a Carolina Jorge e Miguel Afonso na passagem de ano de 2018 para 2019.
“Há quatro anos e meio estávamos de viagem pelo sudeste asiático, pelo Camboja, e às tantas, numa rua de uma província que nem era a capital, ouvimos Ana Moura a cantar. Estranhámos e decidimos ir ver. O som vinha de um restaurante que parecia português, e adivinhem: era mesmo. Estavam lá portugueses”, começam por contar à NiT.
O casal entrou no Tertúlia, e sem saber, acabavam de traçar um novo capítulo nas suas vidas. Porquê? Porque em menos de seis meses estariam a fazer as malas e a ficar à frente do projeto. Sim, a nada mais, nada menos, do que 11.108,53 quilómetros de casa — e fizeram dele um espaço com uma equipa cada vez maior e um público rendido à comida portuguesa. Mas já lá vamos.
Ele gestor de eventos, ela de gestão e a trabalhar em marketing da McDonald’s. Numa viagem ao sudeste asiático, lá decidem entrar no Tertúlia, um restaurante português aberto por Filipe Duarte e Pedro Lima, em 2015. Após uma troca de ideias e algumas reviravoltas do destino, surgiu a oportunidade de adquirirem o restaurante. O que começou como um devaneio durante as férias, rapidamente tornou-se uma mudança de vida. Com pouca experiência no ramo da restauração, Carolina e Miguel abraçaram o desafio e mergulharam de cabeça nessa nova aventura.
“Conhecemos os antigos donos, e eles contaram-nos que queriam voltar para Portugal. Passado uma hora à conversa, disseram que queriam vender. Mas nós estávamos de férias, tínhamos a nossa vida organizada. Às tantas, pensámos ‘Porque não’? É isso que respondemos quando nos perguntam porque viemos: ‘Porque não?'”, explica Miguel.
“Na época, eles planeavam voltar para o nosso País. E eu e o Miguel ficámos com esta vontade — mesmo após regressarmos. Podia ser interessante, sermos nós a pegar no negócio. Voltámos a Portugal, mas, passado uns tempos, eles contactaram-nos e começámos a equacionar seriamente essa possibilidade.” Poucos meses depois, fecharam negócio e decidiram mudar as vidas.
Na altura, com 37 e 32 anos (agora têm 41 e 37) sem nunca terem trabalhado na área da restauração, tornaram-se donos de um restaurante. Ainda por cima, num país no qual não falavam o idioma e onde conheciam pouco. Uma verdadeira aventura.
“A ideia de ir viver para o outro lado do mundo era interessante para nós”, justificam. Acabaram por se mudar mais depressa do que estavam à espera. Os antigos proprietários do restaurante queriam regressar dali a pouco tempo. “Foi tipo penso rápido, para não termos muito tempo para pensar”, diz Carolina a rir. Mas a família não achou assim tanta graça. “Tiveram a reação normal ao ouvir que dois malucos iam para o outro lado do mundo”, acrescenta Miguel. “Foi um choque, mas também nem lhes demos muito para refletir, Quando perceberam, já cá estávamos.”
A adaptação não foi fácil. Tudo aconteceu de forma rápida, sim, mas, ao mesmo tempo, faseada. “O Miguel veio primeiro e eu ainda fiquei duas semanas em Portugal a acabar um projeto. Viemos para cá três meses, passar o verão, e depois voltámos para fechar tudo, colocar o apartamento a arrendar, e esse tipo de coisas. Chegámos apenas com duas malas de roupa, depois é que fomos buscar o resto.”
Os primeiros tempos foram complicados, recordam. Já conheciam a região, mas ali tiveram de recomeçar do zero. “Estávamos conscientes de que tínhamos de aprender tudo.” Por ser um apaixonado por cozinha, Miguel ficou responsável por essa parte. Já Carolina dedicou-se à gestão.
“A cozinha que fazemos é muito inspirada na portuguesa, um pouco daquilo que o Miguel já fazia em Portugal, mas cozinhar num restaurante é muito diferente de fazê-lo em casa. Pesquisámos muito essa parte, mas relativamente ao serviço foi tentativa-erro.” Tiveram também uma pequena ajuda.
“Somos malucos, mas não tanto. Comprámos o negócio com tudo incluído. Portanto, aprendemos a fazer as coisas por fases. O chef que lá estava, e que era português, ficou connosco durante uns tempos. O primeiro menu, aliás, foi criado ainda com o apoio dele”, confessam. Decoração, carta, e conceito. Nos primeiros meses não fizeram quaisquer alterações. As mudanças começaram a ser introduzidas mais tarde, aos poucos.
Tudo corria bem quando, em janeiro de 2020, o Camboja fechou as fronteiras devido à Covid-19. “Kampot era uma cidade muito sazonal, que vivia muito a época alta e baixa”, contam. Mas nem tudo foi mau.
“Como se deixou de poder viajar para fora, passaram a fazer mais movimentações internas. Mudámos o paradigma, e passámos a ter mais clientes regulares, que não estavam na cidade habitualmente.” Rapidamente, os dois perceberam que tinham muitos clientes que iam lá aos fins de semana e “agarraram-nos”.
Em pouco tempo, o restaurante tornou-se um ponto de encontro para amantes de boa gastronomia. Com um cardápio que celebra tanto a culinária portuguesa quanto os ingredientes locais, no Tertúlia encontram-se pratos de marisco, bife à portuguesa, peixinhos-da-horta e sobremesas tradicionais portuguesas. A cataplana é já um dos bestsellers.
“Temos a sorte de ter ameijoas, camarões, lulas. E são muito semelhantes aos nossos. Kampot é uma cidade muito perto do mar, portanto, todos os dias chega cá marisco fresco.” O mais difícil é encontrar bacalhau — “porque é muito caro” —, mas, na falta dele, fazem-se pasteis de peixe. “Os sabores portugueses estão cá todos.”
É essa mistura de sabores e culturas que faz com que o restaurante se destaque no cenário gastronómico local. “O Tertúlia é o único restaurante português no Camboja. A oferta é diferente de tudo o que existe”, destaca Carolina. Vinhos portugueses, temperos típicos e pratos emblemáticos da culinária lusa conquistaram os clientes locais e os turistas que agora procuram essa experiência única.
A decoração também reflete o espírito lusitano. Quadros com cenários portugueses e a coleção de sardinhas do Bordallo Pinheiro adicionam um toque de Portugal ao ambiente. “Fizemos muitas alterações na iluminação, na apresentação dos menus. Muito ao nosso gosto”, partilha Miguel.
Apesar dos desafios, o Tertúlia rapidamente conquistou o seu espaço, e acabou mesmo por transformar-se numa paragem obrigatória para quem visita Kampot. Com um conceito que vai além da comida, este restaurante representa a coragem de dois jovens empreendedores que levaram o melhor da tradição portuguesa para o coração do Camboja.
Hoje Miguel diz que já nem tem de estar da cozinha — ainda que goste muito dessa área. “Temos uma equipa formada, o Miguel já não precisa de cozinhar, mas todas as introduções no menu são desenvolvidas por ele”, assegura a mulher.
Até já conseguem ausentar-se com mais regularidade e aproveitar para viajar como tanto gostam. O mais difícil é ter uma conversa fluente com os khmer (cambojanos). “Ainda não somos 100 por cento fluentes, mas sabemos os termos técnicos. É uma língua muito difícil.”
E se para os khmer falar de dinheiro e comida é natural, o casal diz ter bastante cuidado para não arranjar conflitos. “São um povo muito averso ao conflito. Tudo tem de ser feito com cuidado. É um ponto muito diferente da Europa. Mas viver aqui é muito fácil. O sol nasce às cinco da manhã e põe-se às cinco, seis da tarde todos os dias. É muito rotineiro, e são todos muito tranquilos”, garantem.
Como lá chegar
Par visitar o Tertúlia terá de voar até Phnom Penh (PNH). Se partir de Lisboa encontra bilhetes de ida e volta, com escalas, por dois mil euros. Depois pode alugar um carro e percorrer 139 quilómetros ou apanhar um autocarro até ao edifício colonial, no número 724a, no centro de Kampot — “uma das melhores localizações da cidade”, asseguram. O espaço está aberto de quinta a segunda-feira das 12 às 15 horas e das 16h30 às 21h30.
A seguir, carregue na galeria para conhecer o Tertúlia, restaurante português no Camboja com capacidade para 40 clientes.