Foi, durante três anos consecutivos, o melhor restaurante do mundo para a “The World’s 50 Best”. Durante uma década, nunca caiu abaixo dos cinco primeiros postos. O chef René Redzepi, à frente do espaço em Copenhaga, era exultado como um dos grandes inovadores da cozinha mundial. Um dia, decidiu fechar as portas.
A decisão “colocou tudo em risco”, afirmou o próprio chef que em 2017 decidiu encerrar o espaço para abrir um novo Noma, na sua versão 2.0, num novo local da capital dinamarquesa. “Quando mudas, perdes tudo. As estrelas Michelin desaparecem. Os rankings também. Tudo desaparece. Mas continuamos a ter a nossa criatividade”, revelou à “Bloomberg” a poucos dias da reabertura em 2018.
Dois anos depois, a aposta arriscada de Redzepi parece ter compensado. Não só saltou novamente para o segundo posto do “The World’s 50 Best”, como atingiu um feito que parecia impossível: a terceira estrela Michelin que inexplicavelmente lhe escapava há anos, mas que finalmente chegou.
O Guia Michelin para os países nórdicos, revelado a 13 de setembro, trouxe finalmente a Redzepi a distinção que lhe faltava. “Estou completamente atónito, honestamente surpreendido”, confessou depois de saber a novidade.
A viagem que começou em 2003 no pequeno edifício junto ao rio, no bairro de Christianhavn, é também uma janela para a história do chef filho de mãe dinamarquesa e pai imigrante macedónio. Chegou a viver na Macedónia, antes da guerra o forçar a trocar a vida e a casa no campo por um pequeno apartamento na Dinamarca.
Era uma família sem grandes recursos. O pai conduzia um táxi, a mãe trabalhava nas limpezas e como caixa de supermercado. A falta de dinheiro obrigava René e o irmão gémeo a trabalharem.
Confessa que sempre se sentiu excluído, por ser filho de um muçulmano, por ter pouco dinheiro. Foi quando decidiu deixar os estudos e dedicar-se à cozinha. Tinha apenas 15 anos.
O talento e a vontade de aprender levaram-no aos melhores restaurantes do mundo. Depois de um estágio num restaurante Michelin em Copenhaga, viajou para França, passou pela cozinha do icónico El Bulli, estagiou no prestigiado The French Laundry, nos Estados Unidos, e regressou em 2002 à sua cidade. Um convite de Claus Meyer, que viria a ser seu sócio no Noma, convenceu-o a abrir o espaço que se viria a transformar num templo da culinária nórdica.
Em poucos anos, a sua curiosidade, talento e paixão pela procura de alimentos e produtos novos transformou-o numa das figuras mais inspiradoras da culinária mundial. Prometia não só reinterpretar a cozinha nórdica como também lançar as bases para novas tendências noutros países.
O pai de Redzepi haveria de morrer sem ver a inauguração do Noma 2.0. A morte, a um par de meses da abertura, foi um choque. “Achei que estava preparado, mas não estava”, revelou à “Vanity Fair”. “Sinto-me zangado. Está tudo a voltar, o não me sentir incluído por ter um pai muçulmano, não poder celebrar o Fastelavn porque não tinha dinheiro para comprar um disfarce, ser expulso da escola no nono ano. Quando abrimos o Noma, queria mostrar a todos que nada se poderia meter no meu caminho. Agora sinto isso novamente.”
Na verdade, houve muita coisa que se atravessou no caminho de Redzepi. Em 2013, mais de 60 clientes sofreram uma intoxicação alimentar depois de uma refeição no Noma.
Nos dias que se seguiram, foram muitos os que apresentaram sintomas como vómitos e diarreia. Um cenário inédito num restaurante que tinha então um registo imaculado — e que era, à época, visto como o melhor restaurante do mundo.
Um relatório das autoridades dinamarquesas apontou o dedo a um dos empregados, que estaria infetado com um vírus e que, inadvertidamente, o terá espalhado no local de trabalho. Um percalço que acabou por não afetar a fama do Noma, que se manteve no topo e com as mesas cheias.
Sempre inquieto, Redzepi anunciou em 2014 que o Noma fecharia e, por dois meses, se estabeleceria no Japão, onde serviria pratos feitos com os melhores produtos locais. Mais uma oportunidade para Redzepi se atirar ao terreno e colher, ele próprio, os ingredientes.
Voltou a repetir a experiência em 2015, desta vez na Austrália, e depois em 2017, com a abertura do Noma Mexico em Tulum — onde serviu menus de degustação no valor de 511€.
O maior desafio estava para vir. “A rotina pode ser confortável, mas também tem o condão de matar toda a tua criatividade (…) Era tempo de mudar, não só o espaço físico mas toda a antiga rotina, mudar para algo novo, criar uma pequena quinta urbana”, revelava sobre a ambição de lançar o Noma 2.0.
René Redzepi é ambicioso e, em partes iguais, humano. E como tal, como todos nós, deixa-se apoderar pelo medo. “O meu maior medo é que as pessoas não achem [o Noma 2.0] suficientemente diferente do que existia antes”, confessou antes da inauguração.
A verdade é que a mudança demorou perto de um ano e praticamente levou o projeto à falência. “Temos que abrir a 15 de fevereiro ou acabou-se”, revelava o chef. “Não há mais dinheiro. Não há mais empréstimos. Não há mais nada.”
O novo Noma deveria ser tudo o que o antigo não era. Queria ser mais criativo, mais bonito, mais convidativo, mais inspirador. E tudo isso leva o seu tempo — e uma boa dose de loucura. A decisão de encerrar o espaço obrigava, por exemplo, a que os donos do Noma — o próprio Redzepi e Marc Blazer — mantivessem cerca de 90 trabalhadores com os salários em dia, sem quaisquer receitas, durante perto de um ano.
O plano foi anunciado por Redzepi logo em setembro de 2016, com um aviso: se o restaurante não reabrisse em dezembro, iria à falência. O primeiro atraso aconteceu logo no encerramento, com o Noma a fechar apenas em fevereiro. A construção atrasou-se e demorou quase um ano — com o custo final a derrapar para o dobro.
Os novos menus também não poderiam ser uma reinterpretação de pratos antigos. Tinham que ser novos, arrojados, com ingredientes inesperados. Para se preparar, Redzepi aproveitou a pausa para embarcar numa expedição de pesquisa pelos países nórdicos, um custo que se acumulou à já avultada fatura.
Mesmo no vermelho, o Noma abriu e repetiu o sucesso. Com as mesas sempre cheias, atingiu a meta improvável da terceira estrela Michelin, mesmo à custa de pratos tão ousados que chegam a chocar outros chefs. Foi o caso do cérebro de prato em tempura, servido no corpo do animal, adornado com o bico e com uma colher feita com a sua língua desidratada.
Apesar das críticas, o Noma defendeu-se e manteve-se fiel à sua ousadia que é, também, o motivo pela qual o Guia Michelin decidiu classificá-lo como um daqueles restaurantes que valem, por si só, a viagem, mesmo que tenha que ir ao outro canto do mundo. E nem o menu a 376€ parece desmotivar os potenciais clientes.
“Se acho que cometi um erro? Olhando para trás, talvez dissesse que sim”, revelou à “Vanity Fair” sobre a arriscada decisão. “De qualquer forma, precisávamos de um empurrão. Precisávamos de uma meta para nos focarmos.”