Restaurantes

Entre versos e pratos: Luís é o famoso empregado-poeta do Solar dos Presuntos

A escrita começou como terapia para lidar com memórias difíceis da guerra do Ultramar. Hoje é um autor publicado.
Luís Coelho trabalha no Solar dos Presuntos.

Luís Coelho nasceu em Angola durante os duros dias da Guerra Colonial. Ao lado dos pais, regressou a Cascais no pós-25 de abril, com apenas 11 anos, mas as memórias dos terrores vistos e vividos nunca se apagaram — e levaram a um esgotamento nervoso. Encontrou consolo de papel e caneta na mão, a conselho de um psicólogo.

“Uma das perguntas que o psicólogo que me acompanhava me fez, foi se gostava de ler e escrever. Respondi prontamente que sim, a ambos. Então uma das ferramentas que me passou, para me ajudar a exorcizar o que sentia, foi escrever. Passei a escrever sobre tudo o que via, sentia, as minhas vivências”, recorda. Hoje, aos 60 anos, é um autor publicado e uma das mais familiares faces de um dos icónicos restaurantes de Lisboa, o Solar dos Presuntos.

Luís é um poeta que serve às mesas. Os clientes conhecem-no pela boa disposição e destreza com que serve refeições, embora nem todos saibam que, fora de portas, a poesia é o que lhe ocupa o tempo. Uma história que teve início nos conturbados tempos vividos na década de 60 em Angola, para onde os pais foram para trabalhar nas finanças locais.

Haveria de nascer no meio do conflito, que tornou a vida em Angola impossível. Com 11 anos, acompanhou os pais no regresso atribulado a Portugal. Ao fim de cinco a viver em Cascais, os pesadelos acordavam-no de noite e a inquietação acompanhava-o durante o dia. Os pais levaram-nos ao psicólogo e foi diagnosticado com um esgotamento nervoso. Um mal que o profissional de saúde procurou atenuar com um exorcismo artístico.

Já em criança era um ávido leitor. Uma das primeiras obras que leu, com apenas sete anos, foi “Moby-Dick”, de Herman Melville, oferecido pelo pai e depois o “Não Matem a Cotovia”, de Harper Lee. Nunca mais se interessou por literatura juvenil. Depois foi a sua vez de pegar na caneta, mas nunca quis seguir a linha destes autores.

Luís é uma das caras conhecidas do Solar dos Presuntos

Como miúdo que gostava de sair à noite, sobretudo sozinho, descrevia vários momentos que apanhava pelas horas da madrugada em Lisboa. Normalmente fazia-o em poesia, mas chegou também a tentar a prosa. Enviou mesmo um dos textos para o Correio Jovem em 1982, um suplemento publicado aos domingos pelo “Correio da Manhã”, onde “falava sobre como era ter 18 anos e as coisas engraçadas da idade”. O artigo foi publicado, mas a prosa não deixou saudades.

A poesia impôs-se e foi-se tornando cada vez mais sombria, à medida que funcionava como veículo para as memórias de Angola. Percebeu, eventualmente, que precisava de mudar. Tentou um registo mais romântico e começou aí “a jornada de cura”. “Eu tinha stress pós-traumático, causado pelo que vi em miúdo e a escrita foi a minha salvação. Atualmente recordo-me apenas de algumas coisas, tenho uma memória seletiva, o que me protege. Além disso, tive a sorte de ter amigos que sempre me escutaram, sem julgar.”

Ao fim de 36 anos, a escrita continua a ser o melhor escape, mas não o único. Confessa adorar o que faz, até porque “quando está a trabalhar, não pensa em mais nada”, mas a carreira na restauração começou “por acidente”. “Quando tinha 18 anos fui trabalhar para um restaurante de um pai de amigo no Estoril, para ganhar uns trocados para ir de férias e não pedir dinheiro aos meus pais. Acabei por gostar e deixei o curso de eletricidade que estava a tirar para continuar nesta área”, justifica.

Passou por vários restaurantes lisboetas, mas há 12 anos que é no Solar dos Presuntos que passa os seus dias. Mesmo no meio do frenesim caraterístico de um dos mais movimentados espaços da capital, aproveita sempre para escrever qualquer coisa nas pausas.

“Às vezes tenho uma ideia na cabeça a cozinhar o dia inteiro. Assim que posso, escrevo e sai naturalmente. E podem ser de situações que vivi, de coisas que penso, ou de algo que vi à minha volta. A inspiração vem de todo o lado e a poesia é uma coisa instantânea.”

Solar dos Presuntos
O livro que publicou chama-se “De Mim”

As vivências, como refere, são o mote para os versos que eternizou no livro “De Mim” publicado pela Chiado Books, em 2019. Uma oportunidade surgiu através do irmão, que conhecia um editor que visitava com frequência o Solar dos Presuntos e comentou o talento de Luís. Inicialmente apreensivo, — porque nunca escreveu com o intuito das suas memórias serem lidas por outros —, rapidamente mudou de ideias e decidiu avançar.

“Fiz uma recolha de 50 poemas que escrevi durante um ano, sobre um período mais difícil que atravessei no meu casamento e deixei transparecer tudo através da escrita. Quando a minha mulher [Fernanda Lopes] leu o livro, disse-me que não imaginava o que se passava na minha cabeça. Sabia que andava meio desligado, mas que não tinha ideia que tinha sofrido tanto. No final acabou tudo bem.”

A família e os filhos, Tomás e Carolina, reconhecem os desabafos do pai nas páginas e acompanham tudo. Será a ambos que Luís quer deixar todo o espólio. “Tenho tudo guardado e digo-lhes que aquilo é a minha herança”, revela. Mas até lá , conta escrever mais páginas e publicar mais livros. O próximo está a ser preparado para 2025.

“Vai ser algo num tom mais positivo e talvez mais íntimo e pessoal. Um dos momentos que vou incluir é dos poucos que por acaso está relacionado com o trabalho. Trata-se de uma surpresa que recebi no restaurante de um cliente que conheci na barriga da mãe e depois apareceu-me para jantar com a mulher e as três filhas. A passagem do tempo e esta relação deixou-me emocionado e inspirado”, revela.

Embora esteja a caminho de ter duas obras publicadas, nunca pensou em deixar a restauração. Só pensa sair quando se reformar. E também já tem planos para a reforma. “Quero escrever um romance. Já tenho algumas ideias, apontamentos, mas ainda está na prateleira.”

 
 
 
 
 
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