Enchidos, carne de porco, muita hortaliça e batata cozida. A receita parece simples, mas, ainda assim, há muitos segredos e técnicas capazes de elevar um cozido de um prato corriqueiro a um verdadeiro festim de sabores. E onde é que a especialidade alcança o patamar mais elevado? Não sabemos, mas os leitores da NiT sabem certamente. Durante a última semana, os leitores votaram e escolheram qual o melhor cozido de Lisboa.
A eleição, que foi bastante renhida, terminou na terça-feira, 28 de janeiro e contou com 5.469 votos. O primeiro lugar foi entregue ao cozido do Belmiro com 20,44 por cento dos votos. Em segundo, com uma margem mínima de 20,41 por cento ficou o prato do Forno da Calçada e em terceiro, com 18,27 por cento, ficou a popular proposta do chef Olivier no seu XXL.
Como a maioria dos pratos típicos, a origem do cozido à portuguesa é uma incógnita. Os registos apontam que tenha nascido, como o nome indica, em Portugal, sobretudo para enfrentar a pobreza e a escassez de alimentos. Em muitas casas, começaram a juntar-se as carnes que sobravam das matanças do porco e a cozê-las, porque era o método mais barato. Depois juntavam na panela “tudo o que havia”, desde legumes a banha. Belmiro aprendeu a fazê-lo ainda em Murça, no distrito de Vila Real, antes de vir para Lisboa com 16 anos, com a ajuda de uma das tias que o criu.
A grande diferença da sua versão está nos três passos que segue religiosamente: escolher produtos de qualidade e caseiros quando possíveis, servir tudo separado e o cozer as couves na água das carnes.
“Uso apenas carne de porco e depois cerca de seis enchidos. Gosto muito de juntar quando tenho um salpicão de uma senhora que vive a poucos quilómetros da terra onde nasci. Tem também de ter chouriça de sangue e as partes de salgadeira, desde o focinho, às orelhas, às unhas, às plumas, à costela, à barriga, pois tem lá uma barriga fumada também muito boa”, refere.
O cozido do Belmiro, como já é conhecido, demora cerca de duas horas e meia a ser preparado e só é servido às quartas-feiras. Nesse dia, o restaurante é invadido por uma enchente de clientes, entre desconhecidos e famosos, é o caso de caras habituais como Fernando Alvim ou o futebolista Bernardo Silva. “Servimos, em média, cerca de 50 doses ao almoço, mas há também quem peça para reservar ao jantar”, revela. Uma dose custa 16,95€ e vem com várias partes do porco, enchidos, cenoura, hortaliça, nabo e batata — tudo cozido, claro.

Perante a distinção da NiT, Belmiro mostra-se orgulhoso, feliz e preparado para continuar a aperfeiçoar a receita. “Não somos um espaço grande, mas gostamos de receber e de cozinhar, por isso, estamos prontos para que cá venham provar a especialidade”, diz.
E quem lá for, pode pedir para acompanhar o cozido com o vinho que mereceu o nome do chef. O Belmiro, nascido na Covilhã, traz “o melhor da Bairrada” e é vendido a copo por 4,95€ ou à garrafa por 25€. Quem preferir, o cozinheiro sugere ainda que provem o 7030 (30€ a garrafa), um branco velho de Pedro Martin, ou o OM Bone (25€), um tinto do mesmo produtor.
O toque final são as sobremesas feitas à base de ovos e muito açúcar. Belmiro sugere a sericaia de ameixa de Elvas, a encharcada de ovos ou o pudim de laranja.
A história inusitada de Belmiro
O chef nasceu de uma relação não consentida. A mãe, diagnosticada com uma deficiência mental, foi abusada por vários homens e acabaria por engravidar por três vezes. As outras duas filhas tiveram o mesmo destino da progenitora. Belmiro cresceu saudável e sem qualquer sequela.
“Cresci com os meus avós a quem sempre chamei pai e mãe, porque a minha mãe nem falar conseguia”, conta à NiT. Embora o começo de vida tenha sido atribulado, garante que sempre teve uma infância feliz. Comia tudo o que lhe punham no prato, até porque a família não tinha dinheiro para grandes luxos. “Tínhamos coelhos, galinhas e algum campo. Então tudo o que se cozinhava lá em casa vinha diretamente da terra. Era ótimo”, descreve o cozinheiro de 49 anos.
Aos 16 anos, após a morte da avó, mudou-se para Lisboa para a casa de uma tia. Interrompeu os estudos e no dia seguinte a chegar à capital já estava a trabalhar na Adega da Tia Matilde. O espaço ficava ao lado de casa e precisavam sempre de alguém para ajudar.
“Comecei por lavar pratos, limpar casas de banho e arrumar garrafas. Tudo o que era necessário. Quando saía ia jogar à bola. Sempre adorei futebol”, conta. Acabou por crescer no restaurante e passou de função em função até chegar a empregado de mesa. Era ágil, adorava conversar e nem tinha de pensar muito. Mas sempre que podia, refugiava-se na cozinha. “Ia par a lá ver o que estava a fazer. OS cozinheiros nem sempre gostavam. Assim que me viam por lá, perguntavam se não tinha ninguém para atender na sala”, recorda.
A certa altura, quando o cozinheiro estava de lua de mel, um dos clientes habituais pediu um prato de migas e carne de porco. Belmiro encheu-se de coragem e prontificou-se para o fazer. A aventura na cozinha correu bem e o cliente adorou.
Passou cerca de 30 anos a trabalhar como empregado de mesa. Mas em 2004 decidiu aventurar-se no mundo dos negócios e com o sócio José Duarte abriu o Salsa & Coentros, em Alvalade. A certa altura, depararam-se com um problema: a cozinheira que queriam ver na cozinha recusou o convite. Sem ninguém para preparar a carta, o amigo sugeriu que fosse o próprio Belmiro a assumir a tarefa. Sem qualquer outra opção teve de aceitar.
Em poucos meses o espaço tornou-se uma referência na gastronomia lisboeta. Pegou nas receitas das tias, deu-lhe um cunho pessoal e o Salsa & Coentros começou a ser conhecido pelo arroz de cabidela, feijoada, mão de vaca. Em 2014 decidiu que queria mais e abriu o Bel’Empada, na Avenida João XXI, onde se dedicava à especialidade. Depois decidiu vendê-lo e dias antes de a pandemia chegar a Portugal estreou-se a solo no restaurante homónimo.