Este ano, Joachim Koerper não pôde fazer o que era habitual: comer uma dose de sardinhas num restaurante. Com dois bypass e açúcar elevado, optou por se resguardar nos meses antes da reabertura do Eleven, o restaurante com uma estrela Michelin em Lisboa. Foi buscar uma dose à Valenciana. O take-away foi também algo que adotou no próprio espaço, já que acredita que “há muitas pessoas com medo de ir a restaurantes”.
O Eleven preparou-se para o regresso com todas as medidas de segurança. Ainda antes de voltar a receber clientes, a 17 de junho, tinha estreado o tal serviço de take-away e delivery, as cestas de comida e também os piqueniques no jardim e com vista para o parque Eduardo VII.
O regresso fez-se com uma grande novidade: o terraço. Estava fechado há 15 anos e passa a estar disponível para almoços e jantares. Era apenas usado para os eventos que ali se realizavam. “Esta é uma das coisas boas desta pandemia, que podemos fazer coisas novas, pôr o cliente mais seguro, mais à vontade”, explicou em entrevista à NiT.
Não queria estar na pele do chef José Avillez, que teve de fechar seis restaurantes, mas acredita que dentro de dois anos tudo poderá voltar ao normal, ou ao novo normal. “Todo o mundo gostava como vivíamos antes. Quando tivermos uma vacina também tudo irá melhorar.”
A reabertura do Eleven fez-se a 17 de junho. Como é que foi voltar a receber clientes e voltar à cozinha? Como foi este regresso?
Este regresso fez-se com muita ansiedade. Não sabíamos o que se ia passar, mas já tínhamos vindo a cumprir algumas medidas de segurança, como todos. O álcool-gel, as máscaras, as mesas não com tantas coisas em cima, as cartas diferentes, plastificadas e também uma aplicação no telemóvel. Organizámos tudo e no dia de abertura já estavam testadas.
E com sentiu o regresso dos clientes?
Percebemos que os clientes neste tempo de pandemia gostam mais de almoçar nos espaços ao ar livre. Lá em cima temos um terraço fantástico com uma vista sobre Lisboa e sobre o Tejo. Ativamos este espaço e foi muito bem recebido pelo cliente.
Antes não tinham a funcionar esta área do terraço?
Há 15 anos que não estava aberto. Estava fechado para os almoços e jantares do restaurante. As coisas más ás vezes dão para pensar e reinventamos coisas novas. Esta é uma das coisas boas desta pandemia, que podemos fazer coisas novas, que nos podemos reinventar, pôr o cliente mais seguro, mais à vontade.
O que fizeram no Eleven durante o tempo em que não receberam clientes?
Reinventámos aqui três coisas. Primeiro, fizemos um delivery, estilo Eleven, estrela Michelin, bem feito. Este delivery somos nós mesmos que o levamos. Não é qualquer empresa, como um moto boy, nada. Nós mesmos com um carro, com frio, levámos ao cliente com toda a segurança. Explicando sempre como tinha de fazer.
Segundo, preparámos umas cestas de comida pré cozinhada, em vácuo, com toda a explicação como se deve regenerar em casa. Muitos clientes tinham medo de ir às compras. Ligavam para aqui, viam o menu, e recebiam o produto em vácuo, com vinho e até com flores.
A terceira coisa que inventámos, que foi sensacional, foram os piqueniques. Olha esta relva, olha esta vista. 70€ para duas pessoas com uma garrafa de vinho, branco ou tinto. Servimos as coisas típicas de piquenique: uma quiche, pataniscas, pastéis de bacalhau, melão com presunto, rosbife com aipo, gaspacho, salmão marinado e curado por nós, três tipos de mão, manteiga, tarte tatin e água. Foi um sucesso que nos ajudou bastante a sobreviver estes três meses e que vão ficar. O cliente gosta muito e têm tido muita procura.
Todas essas mudanças foram por necessidade, era preciso o restaurante continuar a faturar? Foi pensado para isso? Não era de todo possível estarem sem receber alguma faturação?
Claro, não só por não receber, mas também para manter vivo o Eleven. Para ficar na mente das pessoas. Também para faturar alguma coisa. Ficámos muito contentes e felizes que nesta fase tivemos estas ajudas.
E correram bem? Acredito que em termos de faturação não tenha sido o mesmo, mas de certa forma deu para conseguirem aguentar estes meses?
Sim, conseguimos aguentar, graças e Deus. E ficámos muito felizes que os clientes tenham aceito as nossas propostas.
É possível replicar uma experiência Michelin em casa, com este take-way e delivery?
Em termos de comida sim, o serviço não. Havia clientes que pegavam na comida e montavam num prato mais ou menos como aqui. Depois tiravam fotografia e mandavam para mim: ‘olha, parece que estamos no Eleven’. Isto faz-nos felizes, é bonito ver o cliente assim.
Se não tivesse sido esta pandemia, estas novidades que nos falou, era algo que poderiam avançar de alguma forma, ou não?
O piquenique já há alguns anos que tivemos a ideia, mas nunca foi aceite. O delivery nunca pensámos. Agora com os vários restaurantes abertos já recuámos um pouco com as entregas, é normal. Mas ainda há muitas pessoas que têm medo de ir aos restaurantes.
E vão continuar agora?
Temos ideia de continuar a fazer, sim. Ainda há muitas pessoas que não querem ir a restaurantes. Fizemos os preços a pensar no cliente português, com um preço muito acessível.
Não se associaram a nenhuma plataforma de delivery. Isso foi uma opção, ou houve a ideia de se associarem? O serviço feito por uma empresa que não fossem vocês poderia de alguma forma fazer com que o produto não chegar nas devidas condições?
Eu não quero que um moto boy faça um rally por Lisboa. Não queremos isso. Queremos que chegue certinho ao cliente, igual como o montamos na cozinha. Assim que o cliente o abre em casa tem de ser tudo igual. Não uma batata ao lado, a carne não sei onde e o molho sem existir. Essa opção nunca foi pensada por nós.
O fluxo de estrangeiros e o turismo pode retomar, ainda não se sabe em que condições. Aqui no Eleven que percentagem tinham de estrangeiros?
A percentagem de estrangeiros era muito grande. Também temos muitos hotéis aqui à volta que estão fechados ainda. Estão a abrir pouco a pouco. Sabemos que não vai haver estrangeiros, mas não nos podemos esquecer que há muitos residentes estrangeiros em Lisboa. Tínhamos muitos brasileiros, franceses, alemães e chineses.
Estas mudanças no menu, como a redução da carta, foram a pensar na chamada de um público português e que não estava tão habituado a vir ao Eleven?
Sim, claro. Aos almoços temos 35€ por um menu executivo. Com duas entradas, peixe e carne, queijo e fruta. E fizemos também um menu para a noite, também a 35€ com os mesmos pratos, para chamar esse público português. Pensámos em tudo. Um restaurante Michelin com menu a 35€, com três pratos, é fantástico. Com a vista, com parque, com tudo.
Têm tido mais almoços ou jantares? Como tem sido a média também por dias da semana?
Quinta e sexta-feira são mais jantares e o principio da semana são mais almoços. Muitos ao ar livre, o cliente agradece e procura isso. E vem aqui sem reserva porque é um lugar fantástico, como há poucos em Lisboa.
Se existir uma segunda vaga, se tivermos de fazer outra vez um lockdown, o restaurante está a preparar-se para isso, ou não está a ser pensado?
Nunca sabemos se poderá haver uma segunda vaga. Melbourne fechou tudo outra vez durante seis semanas. Pouco mais se pode fazer. Voltaremos a fazer o mesmo, o que já está testado. Deixamos o restaurante fechado, fazemos o delivery, o piquenique o take-away.
É possível manter esse esquema durante algum tempo, sobreviver dessa forma, com o take-away, o delivery e os piqueniques?
Eu digo que sobreviver sim, mas com algum sofrimento de capital próprio. Só com isso. Uma estrutura como o Eleven é complicado fazer números positivos. Ajuda e teríamos mais prejuízo se não fossem estas coisas.
Tiveram de entrar em lay-off?
Sim, claro, entrámos em lay-off. Primeiro todos e depois com o delivery, o take-away e tudo isso, tirámos algumas pessoas do lay-off.
E ainda continuam?
Parte ainda está em lay-off. Como ainda não há estrangeiros, há poucos clientes ainda como estávamos acostumados. Não é preciso 15 cozinheiros para fazer quatro jantares. Seria uma irresponsabilidade ter toda a equipa a trabalhar.
O que achou das medidas que foram dadas pelo governo ao setor da restauração? Muitos chefs e grupos de empresários disseram que os apoios foram poucos. O que acha o chef.
Não me quero meter na política. Acho que António Costa é uma pessoa extraordinária. Mas, por exemplo, na Alemanha o IVA foi reduzido para os restaurantes. Aqui ainda não baixaram, não custava nada darem uma ajuda, pelo menos até dezembro. Acho que neste caso, não foi o suficiente o que fizeram pela restauração. Acho também que os proprietários deviam baixar as rendas. Devia haver um decreto do governo neste tempo complicado, isto tem de acontecer com a ajuda da lei. Podiam fazer um pouco mais.
Esta falta de apoio poderá ter significado a falência de alguns restaurantes também?
Sim, claro, tudo conta. Cada grão é importante.
Estávamos num período com um turismo muito elevado. A restauração também estava num bom período em Portugal, com vários projetos a abrir. Acha que com esta pandemia podemos ver o oposto, com muitos espaços a fechar?
Acho que já aconteceu mesmo. Em Lisboa alguns já fecharam, que não contavam. Acho que é normal. Lamento muito, é chato para quem toca, mas é a lei da vida, não se pode fazer nada. Temos de esperar outra vez tempos melhores. Estes espaços seguramente que terão outra oportunidade para funcionar outra vez.
Todos em Lisboa precisamos de restaurantes. Uma boa concorrência é sempre melhor. Nas estrelas Michelin, por exemplo, existe sempre um turismo. Quem vem aqui [a Lisboa] não vem só ao Avillez, ao João Rodrigues ou ao Eleven. Vão também a outros.
Não falando dos Michelin, mas de um outro tipo de restaurantes, acha que havia alguma saturação em Lisboa, muitos conceitos que com esta pandemia facilmente também chegaram ao fim?
Não quis estar a dizer isso, mas concordo completamente, havia demais.
O próprio chef José Avillez teve de reestruturar todo o grupo.
Eu não queria estar na pele dele. É muito forte o que se passou aí. E não só na restauração. Vejo a TAP, por exemplo. Havia demais. Porquê cinco aviões por dia de São Paulo, porquê? Acho que havia demais, com tudo, não só os restaurantes.
E também nos hotéis, por exemplo.
Mas Lisboa vai estar novamente na moda. Temos de ter paciência. Em 2021 e 2022 espero que estejamos aqui a fazer outra entrevista a falar do contrário.
Em relação ao Guia Michelin, no início da pandemia falou-se que haveria tempo para os inspetores continuarem a fazer o trabalho, outros achavam que o Guia deste ano estaria em risco. Foram contactados pela Michelin, para saberem quando estariam abertos?
Acho que para todos os restaurantes Michelin no mundo foi enviado o mesmo email. Achei muito correto da parte deles. Não só a perguntar quando abrimos, mas também o que estamos a fazer para o cliente. Nesta altura, neste tempo difícil, eles entendem que um restaurante como o nosso faça delivery. Se o Alain Cucasse faz delivery, porquê nós não? Bem feito, sempre. Avisaram para ficarmos com calma. A primeira visita que vão fazer é apenas de contacto, a ver se estamos bem. Não é uma visitar para dar ou tirar pontos. É só para informação.
Acha que vai haver Guia?
Sim, guia vai haver. Pode ser que não se mexa em nada. Como foi um ano muito complicado e difícil. Aí falamos de bom senso.
Pode haver guia em que se mantém tudo, sem entrada e retirada de estrelas?
Sim, dou um exemplo. Em 1945, na guerra mundial, o Guia Michelin apareceu. Porque é que num ano de pandemia não vai aparecer?
Não teme que este novo normal possa interferir nas avaliações, ou é algo que os inspetores têm de perceber, que estas mudanças fazem parte?
Acho que eles sabem que alguns restaurantes precisam disto para sobreviver. Acho que não vêm testar o piquenique e o delivery. Vêm ver se temos toda a segurança para o cliente.
Estas mudanças que o chef fez, de mexida de carta, de retirar de pratos, isso pode influenciar de alguma forma uma futura avaliação?
Eu acho que não. Tudo o que fizemos comunicamos no email. A Michelin não dá valor se tens mais ou menos pratos. É a qualidade que os dá. Acho que estamos num bom caminho para o momento.
Como é que o chef viveu pessoalmente esta pandemia?
Faço parte do grupo de risco, tenho dois bypass, tenho açúcar elevado. Nos primeiros três meses fiquei em casa. Andei todos dias na passadeira, perdi uns quilos, o que é bom. Por isso digo que nem tido vem sempre por mal. Só a partir do meio de maio é que comecei a sair e vir algumas vezes aqui. Fazer viagens nem pensar.
Foi a algum restaurante durante os últimos meses?
Não fui. Fui duas ou três vezes à Malhadinha Nova, onde sou consultor há mais de 10 anos. Mas ir a um restaurante em Lisboa ainda não fui. Gosto muito de comer sardinhas. Fui à Valência comprar uma dose e comi em casa. Fui assim que comi sardinhas este ano.
Fizeram testes de Covid-19 aqui no restaurante?
Não fizemos testes, mas quando houve um pequeno caso, de alguém suspeito. Mandámos esta pessoa fazer teste. Foi negativo, mas por precaução ficou mais tempo e mandámos outra vez em lay-off. Não se pode brincar com estas coisas. Temos de ter uma responsabilidade muito grande.
Quando acha que tudo poderá voltar a um normal?
Não sei se haverá um normal no futuro. Quando os aviões também voltarem, talvez. Lisboa é uma cidade uma bonita, muito gira, muito histórica. Faltam os turistas, os eventos lá em cima que precisamos para sobreviver. Está a zero.
Acha que este é um ano completamente perdido?
Completamente perdido não. Mas grande parte sim.
Irá ter repercussões nos próximos anos?
Claro. Vai ser uma restruturação, que é normal. Só vai sobreviver quem é forte. Não só financeiramente, também mentalmente. Estou muito ansioso e acho que irá tudo ficar como dantes, ou seguro disso. Todo o mundo gostava como vivíamos antes. Quando tivermos uma vacina também tudo irá melhorar.