Cozinhou para José Mourinho, Bobby Robson, Futre e Cristiano Ronaldo. Isto, para mencionar apenas alguns dos nomes mais conhecidos do “universo leonino” — e não só. A lista continua. Fora do meio do futebol poucos sabem, mas João Dinis trabalhou dez anos para o clube. “Ajudei muitos miúdos”, diz. E não se tratavam de desconhecidos. Ou melhor, na altura ainda o eram, mas deixaram de o ser. “O Litos, o Figo, o Quaresma…”, vai contando.
Quem passa pelo Forno da Calçada, um café restaurante da zona das Laranjeiras (em Lisboa), já deve ter ouvido uma das muitas histórias de João Dinis. “São muitos anos nesta vida. Tenho tantas histórias…”, diz a rir-se.
“Tinha jornais, entrevistas, muita coisa ligada ao clube e a esse tempo, mas em 1996 mudei de casa e perdi muita coisa”, conta. As fotografias que tirou com com Balakov (“um jogador fora de série”) e Paulo Carvalho (“um grande amigo”), no primeiro dia do futebolista no clube, são duas das recordações que mais lamenta ter perdido.
Sobra uma edição do jornal “Sporting”, de 1984, cuidadosamente guardada numa mica. As folhas amareladas, mas ainda em bom estado, revelam uma fotografia tirada no interior de um avião. Entre a comitiva de 20 jogadores, diretores, presidente e adeptos, lá está: “o senhor João do Forno”, como os mais novos agora o conhecem. Mas esta é uma alcunha recente. Afinal, será sempre “o senhor João da Churrasqueira”.

“A Churrasqueira de Campo Grande era a mais emblemática de Lisboa. Era a única da cidade com capacidade para 340 pessoas”, corrige logo a seguir. “Mais para o fim, quando era sócio gerente, fizemos um parque de estacionamento. Deixavam-me as chaves dos carros, pegava nelas, estacionava e depois volta a levá-los para a rua.”
João Dinis, de 67 anos, chegou ao restaurante em 1971. “Era um miúdo [tinha 15 anos]. Cresci ali, aprendi a fazer tudo. O Sporting era nosso cliente quando estavam em estágio. Todos os fins de semana, tínhamos a equipa lá”, desenvolve.
Em 1984, recebeu um convite que lhe iria mudar a vida. “Um diretor desportivo queixou-se que se comia pessimamente na Rússia. A seleção tinha ido lá jogar e um guarda-redes, que era do Benfica, levou quatro ou cinco golos. Culparam a fome, que era da fraqueza. Como já estavam habituados à minha comida, convidaram-me.
Não deixou o restraurante, mas passou a acompanhar a equipa nos jogos que aconteciam nos países de Leste. “O Sporting foi o primeiro a levar um cozinheiro para fora.” Quando chegava a terras lusas, voltava à Churrasqueira.
Canja, bife e leite-creme. Sempre servida às 11 horas, era a ementa do restaurante no dia dos jogos. “Todos os dias tínhamos duas panelas grandonas de canja e caldo verde. Havia pessoas que iam lá de propósito só para comer um prato.” Porém, os que mais gostavam da sopa com massa eram os jogadores. “Adoravam. Levava galinha desfiada, moela, fígado. Comiam isso e já ficavam alimentados. Depois ainda fazia o tornedó, um bife do lombo, com esparguete ou arroz. Para sobremesa, tinham leite-creme, que fazia muito bem.”
E se todos eram “bons de boca”, havia um mais exigente. “O Rui Jordão [jogador]. Se era carne, queria peixe. Se era peixe, queria carne. Num dia, o senhor Manuel Marques [massagista] veio ter comigo e disse-me: ‘Amigo João, veja se descobre o que o Rui quer comer, porque já não sei o que hei-de fazer’. Era um pisco. Olhei-o nos olhos e disse-lhe: ‘Rui, vais comer um bife feito por mim e vai-te saber bem’. Parti aquilo em escalopes, fiz um tempero nada prejudicial para o jogo e ele comeu”, continua.
“Preocupado, o senhor Marques veio ter comigo e perguntou-me o que lhe tinha dado. Quando lhe contei, exclamou: ‘Todos os burros comem palha. Só é preciso saber como a dar’. Tinha coisas fantásticas, o senhor Manuel Marques. Foi dos melhores massagistas que Portugal teve. Também trabalhou para a Seleção, mas nunca saiu do Sporting. Até teve convites para ir para o Bayern.”
Sempre que viajava com o clube, João Dinis não se limitiva a fazer a mala. “Levava tudo daqui. Peixe, carne — o que fazia falta. Lá, só precisava de panelas e água, mais nada.” E ainda bem que assim era. Alguns dos destinos, explica, “não tinham condições nenhumas”.

“O presidente da Seleção portuguesa de futebol [Fernando Gomes] ia à churrasqueira todas as sextas-feiras comer bacalhau. Num dos dias estivemos a falar sobre a derrota de Portugal contra a Albânia — um a zero — e contei-lhe sobre a minha viagem ao país. Pobre, pobre, pobre. Dentro de Tirana só vi um automóvel, e era do governo. O resto era tudo carroças puxadas por cavalos e bicicletas.”
O cozinheiro acompanhou José Mourinho e Bobby Robson à Aústria, e na Turquia partilhou hotel com o Manchester United. A Rússia não o deixou convencido. “Pensei que ia para um país super desenvolvido. Afinal, não era nada daquilo que pensei. As pessoas que andavam a pregar o comunismo em Portugal, deviam de lá ir, na altura, que era para verem o que era.”
A cada viagem, as histórias acumulavam-se. Algumas já contou mais do que uma vez, outras nunca revelou. “Sei muitas coisas, mas são confidenciais. Isto de fazer parte da comitiva do Sporting, uma pessoa faz tudo. Até de roupeiro. Ouve várias coisas que não se podem contar. Vou revelar só uma. Já não sei se foi na Turquia ou na Áustria. O presidente era o Sousa Sintra. A equipa estava a levar um banho de bola … cuidado. E ele veio do camarote e diz assim para o doutor Fernando Ferreira: ‘Doutor, é uma merda. Estes gajos para correrem é o caraças’. E o médico respondeu-lhe: ‘Se o senhor se responsabilizar, assine aqui que eu dou’.”
Se já se desconfiava, o chef confirma. “Ninguém confessa, mas ali todos tomam uma pastilha ou qualquer coisa”, assegura. “Mas não posso revelar mais nada. Já tive problemas à conta disso”, reforça. João refere-se a uma entrevista onde desvendou o segredo das vitórias do Porto. Não repetiu a história à NiT, mas em 2019 contou tudo ao “Mais Futebol”.
“Lembrei-me de uma outra história, com o Jaime Pacheco. A Churrasqueira fechava ao domingo à noite e convidei-o e à namorada para ir comer um cabrito à minha casa. Nós gostávamos do vinho Solar das Bolsas. Já bem bebidos, tive coragem de lhe perguntar sobre a força do Porto no futebol português. E ele disse-me, há uns 30 anos hein?!, disse-me isto: ‘João, vou contar-te, não digas a ninguém: quando o delegado ao jogo entrava no balneário do árbitro, entregava as fichas dos jogadores titulares e uma nota de 100 dólares.'”, lê-se no jornal desportivo.
“Quando a entrevista foi publicada, chamaram-me mentiroso e estava ver o caso mal parado. Mas como já se tinham passado 30 e tal anos, a coisa passou à frente”, diz agora à NiT.

E os relatos não se ficam pelas viagens que fez com clube. Também na Churrasqueira passou por vários momentos que lhe ficaram na memória. “O Aurélio Pereira, o olheiro número um, que descobriu todos os talentos do Sporting e dos melhores jogadores do mundo, ia lá muito. Foi ele quem os descobriu a todos. O Figo, o Futre, …Veja a amizade que ele tem comigo — foram 50 anos ali a lidar com eles —, quando soube que tinha ido para o Forno da Calçada, foi lá almoçar, só para me cumprimentar e falar um bocadinho comigo.”
“O Futre, no dia em que foi vendido para outro clube, foi levado da churrasqueira. Depois queriam levar o Litos e o Manel Fernandes. Quando via o Domingos Pereira, o braço direito do Pinto da Costa, já lhe perguntava ´Então, quem é que vai levar hoje`. Enganaram bem o Futre. Deram-lhe um apartamento ou dois. Agora é tudo milhões, mas antigamente, os jogadores não ganhavam assim muito bem — tirando um ou outro. Agora não. Futebolista é que está a dar”, menciona com ironia.
Entre os clientes assíduos da casa havia outros nomes de peso. Afinal, a Churrasqueira de Campo Grande era um dos melhores restaurante da cidade — “top, mesmo” — e era frequentado por várias figuras emblemáticas.
“O Belmiro de Azevedo estava sempre na brincadeira comigo. Era meu cliente no Campo Grande duas ou três vezes por semana. Quando vinha a Lisboa ia sempre lá jantar ou almoçar. Ele era portista, e eu sportinguista. Estava sempre a picar-me. Dizia-me assim: ´Olhe lá, tem de dizer aí aos diretores do Sporting para fazer aqui uma sucursal do Porto.` E eu respondia-lhe: ´Então, já somos, senhor engenheiro. O Sporting já manda os jogadores bons para o Porto e vai lá buscar a fruta do chão`”, ri-se.
Futebolices à parte, a Churrasqueira foi também espaço de outro tipo de discussões.“Olhe, posso adiantar que o Sá Carneiro, todas as quintas-feiras, em 74, ia lá sempre almoçar. O Pinto Balsemão, Magalhães Mota, várias figuras do PPD, atual PSD. Penso que ali é que começou a ser feito o partido.”
O próprio Marcelo Rebelo de Sousa é um “amigo do peito”. “No Natal, a secretária dele telefonava-me a dizer que o professor queria lá ir com umas 50 pessoas, ou 70. Depois passava ali a tarde com os alunos. Comiam sempre caldo verde, frango e pudim, que fazia e que era muito bom.” Mas isso chegou ao fim.
Em 2019, a Churrasqueira do Campo Grande foi comprada pelo Chimarrão. “Deram cabo do restaurante. Rebentaram-no todo, e eu saí. Chorei muito, porque cresci ali. Trabalhei ali de 1971 a 2019. Estive dois anos sem passar lá à porta. Entretanto, já me mentalizei de que tudo nasce e tudo morre. Não vale a pena chatear-me. Fiquei muito magoado, mas agora já estou bem.”
Antes de se vir embora do espaço a que chamou casa durante tanto tempo, porém, teve direito a um jantar de despedida. “Foi o Futre, o Rui Tovar, o José Manuel Freitas, e alguns jogadores que cresceram na formação do Sporting. Estou a falar do Rui Correia, que foi guarda-redes da equipa, por exemplo. Era para ir também o Nani. Convidaram também o Quaresma, mas com esse não se pode contar”.
Todos se queriam despedir do senhor João da Churrasqueira. Ao fim ao cabo, foi ele quem, durante décadas, os acompanhou. “Antigamente, antes de fazerem as obras que fizeram, o estádio velho, ficava a três minutos da Churrasqueira. Como tinha livre trânsito para entrar em todo o lado lá no campo, ia sempre assistir sempre aos juvenis e juniores. Ia mais cedo, deixava as coisas todas preparadas no restaurante e lá os acompanhava a todos.”
É caso para dizer que João Dinis é uma espécie de Cristiano Ronaldo da restauração. “Não sou tão conhecido como ele, mas a verdade é que milhares de pessoas me conhecem da churrasqueira”, nota. E o próprio craque, conhece? “Claro que sim. Desde miúdo, quando veio lá da Madeira, com aqueles dentes tortinhos.”
Ainda tentámos, mas sobre o internacional nada mais disse. Deixou apenas uma garantia no ar: “os imbróglios não terminam aqui”. Resta-nos aguardar por uma próxima visita ao Forno da Calçada, onde João Dinis trabalha agora, para ouvir mais histórias.