Todos sabemos que o segredo é fundamental para qualquer projeto. Por isso, só podemos imaginar o que teria acontecido se o guião de “Rabo de Peixe” tivesse ficado esquecido precisamente em Rabo de Peixe. Pois bem, foi exatamente isso que aconteceu há cerca de um ano, quando a produtora Ukbar Filmes estava nessa localidade da ilha de São Miguel, nos Açores, para gravar a série da Netflix que estreou no passado dia 26 de maio e que tem sido um sucesso mundial na plataforma.
Rúben Pacheco Correia, cozinheiro açoriano e natural dessa localidade, recorda à NiT esse momento e como todo o staff da série ficou “de cabelos em pé”. “Os atores quase nunca têm acesso ao roteiro completo, sendo-lhes fornecido apenas as falas que lhes pertencem. Um dia, quando a produção andava pela ilha e ainda não se conhecia a história toda, alguém se esqueceu de um guião completo por ali. Ficou em cima da mesa de um café”.
O jovem de 26 anos — que colabora com o programa “Dois às 10”, da TVI, ficou conhecido como “cozinheiro de Cristina Ferreira” — assegura que “um senhor da Netflix” chegou a deslocar-se até lá para pedir que ninguém divulgasse o que deveria ser mantido, a todo o custo, em sigilo. Mas, como é óbvio, não foi isso que aconteceu.
Nas semanas seguintes, o argumento andou a circular de mão em mão pela ilha. “Houve muita contestação popular e a Junta de Freguesia [de Rabo de Peixe] chegou a chamar os responsáveis da produtora para perceber se realmente era mesmo aquilo que ia ser contado”.
Naquela altura, havia a ideia generalizada entre os moradores de que iria haver um “aproveitamento da má fama” que esta freguesia de São Miguel tem.
“Acho que embarcaram na conversa do lugar mais pobre da Europa e não é. Pode ter sido em tempos, mas agora é apenas um estigma do qual Rabo de Peixe não se consegue livrar”, acrescenta Rúben Correia.
Sem saber se esse guião original (e esquecido) foi posteriormente alterado ou não — porque não chegou a lê-lo —, o dono do Botequim Açoriano, restaurante que abriu em Rabo de Peixe em 2016, diz que se recusou a participar nas gravações da série precisamente por não saber que imagem de Rabo de Peixe seria passada mais tarde na televisão.
“Fui convidado para fazer um pequeno papel. Ia ser rececionista. Quando me enviaram as minhas falas, eu percebi que a história estava a ir por um caminho que eu não gostava. Por isso, recusei”. O chef acrescenta: “Não me agradou porque acho que havia algum exagero, mas não posso contar mais do que isto porque assinei um contrato de confidencialidade [antes de ter recusado participar na série]”.
A sua atitude não terá caído bem junto dos produtores e do elenco de atores, que até esse momento frequentavam com regularidade o botequim Açoriano.
“Estavam sempre muito entusiasmados e percebi que havia uma grande preocupação em estarem próximos das pessoas, em entenderem o seu dia a dia e de que forma podiam transportar isso para a série. Mas depois de eu ter rejeitado o convite, eles deixaram de ir ao restaurante”.
O argumento desta produção é baseado num evento real, que aconteceu em 2001, quando um barco cheio de cocaína se afundou na costa norte da ilha onde mora um rapaz que vê no incidente uma oportunidade para ganhar dinheiro. Nessa altura, o cozinheiro tinha apenas quatro anos. “Não me recordo de nada, era muito novo, mas é uma história que ouço desde criança. É bem conhecida em toda a ilha, não só aqui”.
Em jeito de balanço, e sobre o resultado final da série, Rúben Pacheco Correia conclui: “Acho que não foi bem aquilo que aconteceu. Se desse uma imagem contrária à que dá… Como produto de ficção é bonito e bem conseguido. Estão todos de parabéns. Tiro o chapéu”.
Carregue na galeria para conhecer o restaurante Botequim Açoriano, onde o elenco de “Rabo de Peixe” costumava jantar.
