Restaurantes

Neste restaurante só trabalham sem-abrigo: “É um porto seguro para a vida. Obrigado”

Em Lisboa, há quatro espaços que provam que a solidariedade e a comida podem ser servidas juntas. Fazem parte da associação CRESCER.
Um projeto social.

“Fazer parte do É um Restaurante fez-me ver a vida de outras formas. Fiquei com uma formação, passei por uma experiência única e realmente acho que cresci tanto a nível relacional, como a nível pessoal. Assim, peço à instituição para que continue com o programa e espero que possam ajudar pessoas com problemas parecidos aos que eu tinha. Afinal, é um porto seguro para a vida. Obrigado.” Nuno Miguel Martinho Gorgueira, com 43 anos, é uma das muitas caras que já passaram pelos restaurantes da associação CRESCER.

Em Lisboa, há quatro espaços que servem refeições, mas que são também uma escola e que apoiam a integração dos sem-abrigo. O objetivo? Mostrar que a solidariedade e a comida podem ser servidas ao mesmo tempo. O É um Restaurante é um deles — e foi o primeiro a ser criado.

Fundado em 2019, abriu caminho para os restantes projetos deste género. Seguiu-se o É Uma Mesa (no Bairro Padre Cruz, em Carnide), o É Uma Esplanada (no Museu de São Roque), e um quarto espaço que, ao contrário dos outros, não está aberto ao público, mas sim aos trabalhadores de uma empresa privada. Em qualquer um deles, o modelo é o mesmo: “Todo o staff é composto por pessoal que já estive em situação de sem-abrigo”. O grande objetivo é integrar estas pessoas no mercado de trabalho.

À partida, são espaços vulgares. Quem entra no É Um Restaurante dificilmente percebe que existe por ali algo de especial. Mas basta uma conversa com algum dos funcionários — daquelas que passam do simples “bom dia” ou “boa tarde” — para os clientes ficarem impressionados as histórias que vão ouvir.

Homens, mulheres, mais novos ou mais velhos. Ali podem trabalhar todos — e quase todos passaram por enormes desafios ao longo da vida.

“No princípio, era a ideia de alguns. Depois, foi uma proposta de mais para muitos. Hoje, é um projeto de empreendedorismo social. Uma resposta no setor da empregabilidade. E, claro, um restaurante”, explica à NiT Maria Carmona, gestora de projetos da associação. 

No fundo, trata-se de um programa onde a formação, a experiência e o serviço se destinam a um público em situação de vulnerabilidade, com vista à sua inclusão social e à melhoria das condições de vida. Que é como quem diz: “No princípio, já era futuro — e hoje, já é um restaurante.” 

Funciona no espaço do antigo restaurante Zé Varunca, a três passos da Avenida. O menu é de comida de conforto e de partilha. Há peixinhos da horta e rissóis de berbigão com salicórnia. Tudo pensado pelo chef consultor Nuno Bergoense.

Quando sugeriram a Américo Nave, diretor-executivo da associação CRESCER, criar um restaurante para alimentar as pessoas em situação de sem-abrigo, ele respondeu que não. “Queria fazer exatamente o contrário: colocá-las a elas a dar comida à comunidade em geral em vez do oposto.”

“Trabalhamos com este público desde 2001 — além daqueles que consomem substâncias psicoativas e refugiados emigrantes. Desde então, temos desenvolvido vários projetos de intervenção social. Não só, mas principalmente na cidade de Lisboa. Temos equipas de rua que trabalham com elas.”

Ainda assim, só em 2013 é que criaram um projeto em que a primeira coisa que se faz é dar uma casa a pessoas que estão em situação crónica de sem-abrigo. “10, 15, 20 anos. A partir do momento em que a pessoa entra no projeto é-lhes atribuída um tutor de caso, alguém da nossa equipa técnica — pode ser um psicólogo ou assistente social — e a partir daí, começamos um trabalho individualizado.”

Foi nessa altura, então, que surgiu a vontade de criar um plano de empregabilidade, adaptado às necessidades desse alvo. E apareceu o É Um Restaurante.

Os fundadores já tinham o apoio da Câmara, da Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, do Instituto de Emprego e Formação Profissional, e do Instituto de Segurança Social. Só lhes faltava um curador para a parte gastronómica e isso resolveu-se com o convite ao chef Nuno Bergonse, que já colaborava com a CRESCER.

“Isto é um projeto-piloto, portanto, as regras do jogo somos nós que as vamos moldando. O Américo trata da parte burocrática e faz tudo isto acontecer, é o nosso cérebro. Eu trato do lado operacional ligado à restauração. Juntei as peças certas, contratei as duas opções externas da equipa [um chef de sala e um chef de cozinha], e vou garantir que a comida vai sair boa”, resume Nuno, ex-jurado do programa de televisão “MasterChef Portugal”.

Depois de três fases de entrevistas, começaram o trabalho. Primeiro, com formações práticas na Escola de Hotelaria e Turismo e com uma formação para trabalhar competências básicas pessoais. “Há alguns que querem começar a organizar a vida, mas que estão há muitos anos na rua, e que precisavam de ajuda. Têm de conhecer as regras, o formato de trabalho das 9 às 18 horas, etc.”, justifica Maria Carmona.

Feitas as contas, há cerca de 30 lugares sentados à mesa no É Um Restaurante: um local que privilegia a comida com raízes portuguesas e a sua sazonalidade. Mas que, ao mesmo tempo, apresenta algumas novidades.

Nas primeiras conversas sobre o menu, Américo admitiu que não percebia muito sobre restauração e deu apenas uma indicação a Nuno Bergonse: “Não queria o arroz de pato mas também não queria o caviar.” Foi essa a baliza. O resultado é uma carta “segura”, com sabores que só podiam ser portugueses. “Não podia usar técnicas e produtos estrangeiros, completamente desconhecidos e extravagantes”, explica o chef.

A segunda ideia bem vincada é que esta teria de ser uma cozinha de conforto. Por outras palavras, “coisas que nos trazem memórias”. E, claro, que fosse tudo de partilha, em pequenas doses. “Um prato por pessoa não faria sentido, dada toda a dinâmica do projeto”, continua o cozinheiro. É exatamente por isso que se recomendam três pratos para cada dois clientes.

Nesta cozinha de conforto e partilha, começa-se a refeição com um pão, manteiga Boua e cenoura à algarvia (4,50€). Depois há milhos fritos com salsa verde, tomate e azeitonas (6€), sopa de castanha com aipo e uvas tintas (4,50€), os peixinhos da horta com molho tártaro (6,25€) ou rissóis de berbigão e salicórnia (6€, duas unidades).

As opções continuam com o bacalhau lascado com cebolada, batatas à padeiro, ovo escalfado e azeitonas (14,50€), o risotto de abóbora com espinafres, goji e avelã (11€) ou a raia com molho de curcuma, esmagada de batata e acelgas (15€). No final, chegam três doces: o pudim de azeite e mel com sorvete de tangerina (4,50€), a mousse de chocolate com amêndoas (4€) e os churros com molho de caramelo (4,50€).

O acordo, agora, é “garantir o compromisso”. Isso, e servir com qualidade. “Estas pessoas não estão no mercado de trabalho há muito tempo e por isso não têm rotinas. Não me preocupa não saberem encher um copo de vinho ou não fritarem batatas, isso vão aprendendo”, afirma o chef.

Ao contrário do que possa estar a pensar, este menu não é servido em todos os restaurantes da CRESCER. “São todos diferentes. O É Uma Mesa tem comida italiana e o É Uma Esplanada tem refeições leves, tapas, hambúrgueres e petiscos”, revela Maria Carmona.

Como funciona este conceito?

Os interessados candidatam-se para entrar no projeto, que se inicia, depois, com uma fase de formação. Primeiro dada pela equipa, em competências pessoais e sociais. Seguem-se quatro semanas de formação técnica em restauração com a Escola de Hotelaria e Turismo. E aí, sim, começam a trabalhar nos nossos restaurantes — num contexto real, em espaços abertos ao público, a funcionar, mas que se mantém em período de formação.

Esta formação é supervisionada pelo próprio pessoal do restaurante. Todo o staff é composto por pessoas que viveram em situação de sem-abrigo, em processo de formação, com exceção do chef de sala e do chef de cozinha. Ficam nesta fase on the job entre quatro a seis meses e depois são encaminhadas para o mercado de trabalho. “Até agora, cerca de 50 por cento dos participantes tem conseguido essa integração, o que é muito bom”, garante a gestora de projetos da CRESCER.

“Todo o percurso é acompanho por um tutor de caso e, se os participantes mostrarem essa necessidade, mesmo depois de ingressarem no mercado de trabalho, podem continuar a ter apoio psicossocial da nossa equipa. Ninguém, a partir do momento em que entra no projeto, se mantém a dormir na rua. Não é possível para nós que as pessoas estejam a trabalhar no restaurante e a dormir nessas condições.”

Cada turma tem cerca de 20 participantes, que são distribuídos pelos quatro restaurantes da associação. A próxima turma irá começar já na última semana de junho.

“Uma das grandes missões do projeto é derrubar os estigmas que existem em relação a esta população. A nossa cultura tem enraizado que estas pessoas devem ser submissas e aceitar tudo. Temos de combater isso”, diz Américo, ressalvando que o reverso da medalha é ter de expô-las isso. “O mediatismo é muito importante para sensibilizar a comunidade em geral. Mas, na verdade, isto é um restaurante. Trabalham cá sem-abrigo, sim, mas isso é um pormenor.”

FICHA TÉCNICA

  • MORADA
    R. São José 56
    1150-321 Lisboa
  • HORÁRIO
  • Quarta a sábado das 12h às 15 e das 19 às 22
  • Encerra de domingo a terça
PREÇO MÉDIO
Entre 10€ e 20€
TIPO DE COMIDA
Portuguesa

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