Restaurantes

Nestes jantares às escuras, Sílvia leva-nos até ao seu mundo: “Quero que vejam a minha realidade”

Aos 35 anos, sofre de deficiência visual e faz parte do grupo de guias que acompanham os clientes na experiência Dans le Noir.
Há jantares todas as semanas.

“És o David Brás?” A pergunta de rompante surpreendeu o criador de conteúdos, que não esperava ser reconhecido em plena escuridão da experiência Dans le Noir ?, no Sheraton Lisboa Hotel & Spa, onde os clientes são convidados a jantar às cegas.

A Sílvia Quaresma bastou ouvir a voz do tiktoker para perceber quem ali estava. Aos 35 anos, é uma das guias com deficiência visual que trabalham no projeto que promove “uma experiência sensorial e humana” nestes jantares.

“Um ex-colega de escola falou-me desta iniciativa e eu decidi concorrer. Os invisuais têm poucas oportunidades no mundo do trabalho em Portugal e este é tipo de experiências necessárias para provarmos o que valemos”, conta à NiT.

Em cada jantar é servido um menu de cozinha “criativa e sazonal” num ambiente às escuras, com o objetivo de enaltecer a experiência sensorial do paladar — e, ao mesmo tempo, demonstrar como é a vida de um invisual.

Cada jantar inclui entrada, prato principal e sobremesa, com ou sem harmonização de vinhos. Num ambiente de escuridão total, os clientes são sempre assistidos e guiados por uma equipa composta por pessoas com deficiência visual.

Os pratos são sempre surpresa.

O trabalho de Sílvia passa por levar os clientes às mesas, em fila, e depois ajudá-los em tudo o que precisarem, enquanto dá apoio ao serviço à mesa, levando até aos clientes os pratos inspirados na cozinha da América Latina e da Ásia e pensados pelo chef Valdir Ramos.

A falta de visão é um problema com que Sílvia lida desde a nascença. “No final do parto detetaram que sofria de cataratas. Fui operada de urgência, mas não correu como esperado e a minha condição piorou”, recorda.

Aos quatro anos, começou a piorar e passou a ser acompanhada numa clínica em Inglaterra, com a ajuda de uma médica portuguesa. Aos 16, fez um transplante de córnea no mesmo país, onde revela que teve “uma equipa excelente e foi super bem tratada”, ao “contrário do que aconteceu em Portugal”.

Os tratamentos e intervenções não foram suficientes para restabelecer a visão. Não vê nada do olho direito, e do esquerdo só “se estiver perto das pessoas”. “Consigo, por exemplo, ver a cor das camisolas, mas não consigo perceber se estão a sorrir ou a piscar os olhos.”

Atualmente trabalha como assistente de loja na Primark e patilha casa com uma amiga. “A retalhista tem um programa para integrar pessoas com deficiência e o meu contrato é ao abrigo dessa experiência”, explica. A seixalense está encarregue de dobrar roupa, ajudar nos provadores, sempre com a supervisão de outro colega e, a par deste trabalho, ainda faz parte da experiência Dans le Noir.

“Mantenho os dois empregos porque a Dans le Noir não tem data de fim, pode ser algo temporário — espero que não, porque é algo que faz falta à sociedade. Todos os dias percebemos que o nosso País não está adaptado, na parte laboral, para as pessoas com deficiência visual e isto ajuda a dar a conhecer o nosso lado. Quero que as pessoas vejam a minha realidade como eu a vejo: sem obstáculos”, diz.

Sílvia é uma das guias.

Embora admita estar feliz a conciliar os dois empregos, o sonho de Sílvia sempre foi estudar informática ou psicologia, mas nunca o concretizou. Considera que as universidades não estão preparadas e a falta de recursos financeiros fez com que desistisse do sonho. “Os acessos ao ensino superior são muito limitados, sobretudo para quem tem deficiência”, queixa-se. Mas não deixa de lado a hipótese de um dia conseguir licenciar-se. Até lá, mantém a vontade de mostrar “como é o seu mundo”.

“O Dans le Noir tem sido fantástico para poder transmitir ao público que chega até nós de que somos capazes. Estamos a deitar abaixo uma barreira de preconceitos, porque muitas pessoas ainda acreditam que, por termos uma deficiência visual, temos de estar sempre em casa ou que não somos capazes, e não é assim”, nota. “Nós podemos fazer coisas, cozinhar, servir, interagir socialmente. Eu também cozinho em casa e sirvo quem vive comigo sem problemas.”

Os jantares às escuras serão servidos às quintas, sextas e sábados, com início às 19h30. Os clientes podem optar entre dois menus surpresa: a “Viagem Sensorial”, que inclui três pratos por 55€, e a “Festa dos Sentidos”, que inclui harmonização de vinhos por 69€. As reservas devem ser realizadas online.

Considerado frequentemente um os dez restaurantes mais originais do mundo, o “Dans le Noir ?” é um “local singular que preza pela responsabilidade social e ambiental”. E Sílvia só tem elogios a fazer: “Muitos clientes chegam cá nervosos com o que vão encontrar e fazem-nos muitas perguntas. Mas a meio da experiência já estão à vontade e saem daqui a adorar a refeição e com uma perceção diferente do nosso mundo”. E deixa a dica a outros restaurantes para adotarem o conceito porque “a concorrência nunca fez mal a ninguém, é um desafio”.

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