O dia demasiado longo começou no bar do Bistro 100 Maneiras, no Chiado, em Lisboa, com um cigarro na mão, uma tosta mista na outra e um sumo de laranja natural pousado no balcão. “É aqui da [pastelaria] Flor do Mundo. Esses é que também estão a sofrer”, diz Ljubomir Stanisic. Pouco passava das 11 horas quando estava a tomar o pequeno-almoço num dos seus restaurantes com o amigo Carlos Saraiva, um dos organizadores do movimento Sobreviver a Pão e Água.
Carlos tem vários restaurantes no norte do País e foi um dos que acompanharam Ljubomir a 13 de novembro numa das primeiras manifestações deste movimento no Porto. Seguiram-se protestos nas últimas semanas em diferentes cidades do País. Para esta quarta-feira, 25 de novembro, estava marcada mais uma, desta vez em frente da Assembleia da República, em Lisboa, uma das maiores que o grupo já organizou.
O Bistro serviu de primeira paragem, antes de Ljubomir partir para São Bento, onde tudo estava prestes a acontecer. O pequeno-almoço foi trazido pela irmã e chegou em caixas de cartão. Não demorou muito até se lembrar de que dali a alguns dias ia servir comida daquela forma.
“Vou começar a fazer take-away e delivery. Nunca pensei em fazer comida empacotada.” O amigo Carlos Saraiva pergunta-lhe por que o vai fazer, se os custos vão ser muitos e a margem demasiado curta. Ljubomir explica que tem de pagar salários e de manter a equipa a mexer. Da forma como teve o restaurante no dia anterior é que não quer continuar.
“Servi oito jantares com 30 empregados. Foi o melhor dia de sempre, nunca trabalhei tanto na minha vida”, ironiza o chef. Terminada a tosta mista, veio o café enquanto corre o ecrã do smartphone para receber mensagens, notificações e chamadas. “Vou sair agora para a organização da manif.”
Já no carro, lembra-se de que deixou os dois chapéus de chuva pretos em cima do balcão no Bistro. “O tempo que continue assim”, diz ao passar o Príncipe Real ao ver uma aberta no meio do céu cinzento. Pouco depois, nas ruas de Lisboa, comenta que vários negócios estão encerrados por causa da pandemia. Sempre com revolta na voz: “Este hotel faliu. Este coitado teve de fechar quatro espaços.”
É por estes projetos, e também pelos seus, que há vários meses luta para conseguir algum tipo de apoio por parte do governo para o setor da restauração. A associação ao movimento Sobreviver a Pão e Água foi mais uma das iniciativas a que se juntou, isto depois de em março ter sido dos primeiros chefs a chamarem à atenção do Estado para a importância da restauração e do setor no País.
A viagem de carro continua até à Praça das Flores. Quando está quase a chegar ao destino final, uma mota a Uber Eats relembra-lhe o que irá fazer daqui a uns dias no restaurante. “Só de imaginar a minha comida ali dentro. Nunca pensei.” Ljubo parece obcecado com esta ideia.
A manifestação estava marcada para as três e meia da tarde. Pelas 11h30, o trânsito na rua em frente do Parlamento ainda não tinha sido cortado. Isso só aconteceu quando se começaram a juntar mais pessoas. “Sou da organização, preciso de deixar aqui umas coisas”, diz enquanto pede a uma agente da polícia para o deixar estacionar o carro numa zona que, por norma, não seria permitido.
Do porta bagagens, tira alguns cartazes e faixas enroladas. “Onde é que eu monto os cartazes, caralho?” O palco estava a ganhar vida, com os painéis de luzes e o sistema de som a ser montado. Deixou isso para os técnicos que percebiam do assunto. Ainda assim, não ficou a um canto à espera que chegasse a hora de começarem os discursos. Até porque parecia ansioso para que isso acontecesse.
Com o palco a ser construído de frente para a escadaria principal da Assembleia da República, onde a polícia estava a colocar grades com blocos de pedra em cima, Ljubomir começa olhar à volta para perceber onde pode montar os tais cartazes, tanto os mais pequenos que trazia, como os maiores que estavam noutras carrinhas.

“Queria montar todos, não tenho é sítio para montar esta merda.” Tudo serviu para serem colocadas as faixas com frases pintadas a preto, a branco ou a verde. Num sinal de passadeira, por exemplo, atou uma ponta. Numa árvore a outra. Ali ficou uma mensagem com algumas das ideias do movimento: “Reposição dos horários. Isenção da TSU. Redução de 50 por cento do IVA”.
Sempre com a ajuda de Carlos e outros elementos da organização, desenrolou faixas na calçada para perceber o tamanho e ver onde as poderia colocar. “Esta é perfeita para ali” A fachada das Casa de São Bento foi o local pensado. Ljubomir sobe a um escadote e com abraçadeiras prende uma das pontas na varanda deste prédio. Ao descer é abordado pela polícia que lhe pergunta se tem autorização do proprietário. “Se tenho autorização do proprietário? Olhe, ele ali na varanda a ajudar”, responde enquanto era ajeitada a frase “Estão a matar quem não tem Covid”.
Ao lado deste prédio fica o Il Matriciano, o local escolhido para o almoço uns minutos mais tarde. Antes das pastas deste italiano, perguntou se poderia colocar ali também uns cartazes. “Vou falar com a minha patroa, mas não deve haver problema”. O chef tentou subir por cima da esplanada para ver se chegava às varandas, mas percebeu que era melhor não avançar. Essa ambição era demasiado perigosa, até para este chef todo-o-terreno.
Enquanto não vinha o aval da proprietária, mais uma faixa nas Casas de São Bento. “Se chegar a casa da minha família às 12h30 já não é reunião familiar?”, lia-se. Ao mesmo polícia que o questionou sobre o cartaz na fachada do prédio, o chef perguntou se podia colocar as versões maiores dos cartazes junto ao relvado da Assembleia.
“Podemos pôr ali. Bora, bora, bora.” Faltaram abraçadeiras e fita cola, mas nada que uma loja dos chineses ali ao pé não resolvesse.
De regresso ao Il Matriciano, surge finalmente a dona do prédio à janela, mas não fala com Ljubomir. Limita-se a dizer: “Não quero nada disso aqui. Já me basta o barulho que vão fazer aqui hoje.” Os organizadores tentam explicar que é uma manifestação para salvar os restaurantes, que há gente a passar fome. “Esse [ Ljubomir] tem fome? Trabalha na televisão. Está bem, está.”

Apesar da contrariedade, Ljubomir continuava a espalhar frases em cada canto. Só parou para fumar dois cigarros e para perceber como estava a chegada dos perto de 40 autocarros cheios de manifestantes, sobretudo do norte do País. “Os de cima vão encontrar-se todos em Fátima à uma e depois seguem todos juntos”, explica ao chef o amigo Carlos Saraiva.
Nesta curta pausa aproveitaram para gravar um vídeo para partilharem com as várias pessoas que estavam solidárias com o movimento. Faltava alguém para gravar. “Olha aqui o gajo da NiT que não está a fazer um caralho. Grava aí um vídeo.”
Ainda faltavam cartazes para compor toda a zona em volta ao palco. “Um gajo vem de leste para montar a manif e de depois vêm os doutores falar”, brinca Ljubomir. Faltava montar uma zona de segurança para os oradores e para a imprensa. “Quando a manifestação começar, quero os jornalistas todos aqui dentro. Não quero que se repita o que aconteceu no Rossio”.
Antes do almoço, o jugoslavo vai até à escadaria da Assembleia para ver o cenário que tinha acabado de montar. Estava satisfeito, por isso sentiu que merecia almoçar no Il Matriciano.
Por volta das 15 horas, Ljubomir regressou para tirar algumas selfies com os fãs que correram na sua direção. Foi também por esta altura que o trânsito foi cortado mesmo em frente da Assembleia e o speaker pegou finalmente no telefone para começar a manif. “Hoje é o País inteiro aqui, pode se que nos oiçam”, diz Paulo Silver, o animador oficial que é também um dos mentores das festas Revenge of the 90’s. “É isso mesmo”, responde Ljubomir mesmo à frente do palco, na tal zona de segurança que tinha criado para a organização e para os jornalistas.
Buzinas, tachos de panelas a bater, cartazes, bandeiras de Portugal. Enfim, a manifestação começava a ganhar forma. “Silver, olha ali mais gente a chegar, dá as boas-vindas”, alertou o chef. Estava todo de preto, com as botas, as calças, uma corrente que prendia a carteira, T-Shirt do movimento e um blusão de cabedal. Faltava um autocolante à lapela do Sobreviver a Pão e Água que também andou a distribuir.
“Olha aí mais um autocarro do norte”, avisa mais uma vez Paulo Silver, que estava aos comandos do microfone. A praça começava a encher, ao lado dos avisos crescentes sobre as medidas de segurança. “Mantenham a distância de segurança e usem máscara, sempre. Vamos cumprir as regras, queremos ser um exemplo.”
Um dos autocarros levou caixão branco, que foi colocado ao centro do palco. Ainda antes do início das intervenções, Ljubomir cumprimentou alguns amigos junto às grades e subiu ao palco para fazer uma panorâmica com o telemóvel depois de fumar mais um cigarro.
“Bom dia, Portugal, bom dia a todos, finalmente conseguimos juntar todos, de norte a sul, ao Algarve. Parece que somos poucos, mas somos muitos.” As centenas de pessoas reagiram facilmente com palmas e gritos a cada frase inicial do speaker que foi chamando os vários intervenientes.
Ljubomir não foi dos primeiros a discursarem, mas não deixou de estar ali à frente a ouvir a aplaudir a tudo o que era dito. “Bora Alberto”, incentivou o chef ao ouvir a história pessoal de Alberto Cabral, que discursou com uma gaiola na cabeça.

“Nós estamos na miséria. Discotecas, bares, estamos na miséria. Nove meses sem trabalhar, nove meses numa gaiola. Não tenho hipótese de ganhar 1€ que seja”, gritou, indignado, para os colegas que o ouviam.
“Parem de nos enganar, só queremos trabalhar.” Ljubomir entoou o grito juntamente com todos os que faziam parte daquela manifestação. A cada final de discurso, houve sempre uma frase que todos diziam em conjunto.
Cristina Valadas seguiu-se, mas o seu discurso demasiado longo começou a enervar Ljubo, que lhe fez um gesto de corte na garganta com o mão para que terminasse. Foi ajudado pelo DJ que estava no som e pôs a música mais alta. Havia pessoas que já estavam no alinhamento para falarem, outras entraram na altura de forma espontânea. “Se tiver jeito para falar deixar entrar, se não, não deixe”, avisava Ljubomir pelo walkie talkie sobre um possível novo interveniente na manifestação.
Um deles foi Marco Costa, o famoso pasteleiro que depois de desejar um bom Natal aos deputados — “que a vocês não vos falta nada” —, abraçou o chef à saída das escadas no lado esquerdo do palco.
Alguns gritos, insultos e discursos mais tarde, chegou a ver de Stanisic falar. Minutos antes, ainda meio nervoso, pediu uma caneta para riscar algumas das partes que não ia dizer e acrescentar outras palavras. Foi neste momento que as estações de televisão ligaram as câmaras naquela caixa de segurança. Afinal, a estrela estava prestes a falar.

“Está aqui o jugoslavo que luta mais do que muitos portugueses”. Ljubo estava oficialmente apresentado e pronto para brilhar: “Estão a gozar com a minha cara, não estão? E com este povo, com todos. É ridículo as medidas que estão a ser tomadas. Não queremos mamar só a pão e água.”
E continuou no ataque ao governo e às soluções que são apresentadas. “A Covid só funciona às 22h30? De manhã está de folga? E nos transportes públicos? Só nos restaurante, cafés e bares, para foder a puta da nossa vida. Vamos continuar com este manifesto e vamos fazer um minuto de silêncio por todas as pessoas que vão perder o emprego”.
Um minuto antes das cinco, as centenas de pessoas que ali estavam acedem ao pedido, muitos com tochas de fumo negro, verde, vermelho e amarelo que cobriram os céus. O hino nacional veio logo a seguir, com outro grito em conjunto: “Vocês estão a matar os que querem trabalhar. Bora pessoal, mais alto”, incentivou o chef.
Podia ter sido o fim, já que foi um dos momentos altos com todo o aparato cénico, mas os discursos continuaram por mais uma hora, sempre com Ljubomir a incentivar os colegas para manter a dinâmica forte da manifestação. Foi por esta altura que recebeu um email no telefone sobre a confirmação da audiência com o gabinete do Presidente da República. “Ficou para as 14h30 a videochamada na sexta”, avisa os restantes elementos da organização.
Mais relaxado, Ljubomir voltou a fumar um cigarro, mas desta vez acompanhado por um café. Já eram 18h15 e a festa estava perto do fim, ao som da música do DJ Christian F. Estava na altura de o chef abraçar alguns dos que o acompanharam desde a manhã na montagem do palco e dos cartazes. E por ali ficaram enquanto a maioria regressou para os autocarros.
Ainda não está marcada mais nenhuma manifestação do movimento Sobreviver a Pão e Água, mas a ideia — diz Ljubo e o resto da organização — é manter estas iniciativas regularmente até que sejam ouvidos. Com gritos, asneiras e piadas. Mas também com a vontade cerrada de quem só quer ganhar a vida de forma honesta. Como se disse muitas vezes ao longo do dia: “Deixem-nos trabalhar, caralho”.
