Restaurantes

Sá Pessoa: “Reduzir a gastronomia portuguesa ao prato cheio da tasca é limitado”

No ano mais agitado da carreira, o chef falou com a NiT sobre novos desafios, a carreira na televisão e o futuro da cozinha nacional.
Aos 47 anos, é um dos chefs mais conhecidos no País

Entre viagens de Lisboa a Amesterdão, de Londres ao Porto, Henrique Sá Pessoa passou por Vila Nova de Gaia para mais uma etapa de três dias na preparação de uma nova carta. É nesta roda viva que se senta nas cadeiras do colorido Terroir Brasserie, mais um projeto — o segundo inserido no Vinha Boutique Hotel — que promete dar ainda mais trabalho ao chef de 47 anos.

A abertura de novos espaços em catadupa marca a fase mais agitada da carreira de mais de duas décadas de Sá Pessoa. Das viagens pelo mundo ao regresso a Portugal para revolucionar o panorama culinário televisivo, o chef vive agora para fazer nascer novos projetos.

“Atualmente, o que me dá pica é ser desafiado para fazer coisas novas”, confessa à NiT. E é o que tem feito. No verão passado abriu o Arca, um espaço de fine dining no centro de Amesterdão. Já em fevereiro deste ano, abria as portas do JOIA, em Londres.

E o portefólio de restaurantes com a sua assinatura contempla ainda um regresso ao Porto para servir como chef executivo do Vinha Boutique Hotel, onde comanda os dois espaços de restauração: o Vinha, mais virado para o fine dining; e o Terroir Brasserie, mais informal.

Prefere assumir-se como “uma espécie de diretor gastronómico” do hotel, até porque sabe que da parte dos clientes existe sempre a expectativa de se cruzarem com o chef. Mas continua a ser no Alma, o seu duas estrelas Michelin em Lisboa, onde passa a maior parte do tempo.

A propósito da inauguração do Terroir, Sá Pessoa sentou-se para uma longa conversa com a NiT sobre a longa carreira, a responsabilidade de gerir sete espaços, mas também a cultura gastronómica portuguesa.

Aterrou aqui no Vinha há cerca de um ano. É um regresso ao Porto, depois de ter inaugurado a versão portuense do Tapisco, que acabou por nunca reabrir após a pandemia. Foi uma investida falhada?
É difícil um chef de Lisboa vir para o Porto, assim como é difícil um chef do Porto ir para Lisboa. As pessoas têm sempre a expectativa de quando vão a um espaço associado a um chef, de o verem no local. É óbvio que não nos conseguimos dividir por todos os sítios. Não é fácil gerir isso. Acho que o meu regresso ao Porto fazia sentido nesta ótica, de gerir estes espaços no hotel, mais do que ter um restaurante de rua. O Tapisco funcionou, mas depois veio a pandemia. O Tapisco do Porto era um espaço grande, requeria algum investimento em termos de equipa e depois surgiram as dificuldades de gestão das equipas pós-pandemia. Optamos por fazer um downsizing e focarmo-nos nos restaurantes que estavam a funcionar há mais anos e decidimos não reabrir o Tapisco.

Além dos dois espaços no Vinha, no último ano internacionalizou-se e abriu o Arca em Amesterdão e o JOIA em Londres. Dois restaurantes em dois mercados super competitivos, em capitais europeias. Como é que isso aconteceu?
Já há uns anos que tinha vindo a investir na internacionalização. Em 2017 abri também o Chiado em Macau. Durante a pandemia surgiram os convites e acho que isso se deve muito ao momento que vive a marca Portugal lá fora. Temos mais força do que há 10 ou 15 anos, mudou a perceção que o público tem de Portugal. Esse maior interesse faz com que seja mais fácil surgirem esses convites. O facto de haver chefs como o José Avillez ou o Nuno Mendes a darem cartas lá fora abre as portas a outros chefs. São desafios que assustam em termos de responsabilidade, mas a pandemia deu-me tempo para abrandar, ter menos responsabilidades e rotinas, o que me permitiu focar-me mais nestes projetos, no que queria fazer com eles.

Não tem medo que essa dispersão possa na qualidade dos espaços? Num menor controlo que o chef possa ter sobre o que acontece diariamente nos restaurantes?
Não existe um chef. Existem chefs, plural. Ao longo dos últimos anos, nos vários projetos, consegui construir equipas e através dessa construção conseguimos dar uma evolução nas carreiras. Tenho alguns cozinheiros que já estavam há anos comigo e chegaram a um ponto em que já não tinham mais por onde crescer. Isso permitiu-me perceber que estavam preparados para outros desafios. Senti que, das duas uma: ou arranjava uma oportunidade para eles e, nessa boleia, eu próprio consigo criar oportunidades para mim — é um win win; ou corria o risco de eles saírem para irem à procura de novos desafios. Acabei por conseguir agarrar neles e transformar isto numa oportunidade para ambos. Neste caso, eu acabo por ser mais o estratega, dou apoio, acompanho no processo criativo, dou mentoria, uma direção.

O JOIA é o novo espaço do chef em Londres

Prefere estar numa posição mais estratégica e passar menos tempo na cozinha?
Nem todos os chefs querem ir por esse caminho. Há chefs que gostam de estar no restaurante, gostam da rotina do dia a dia, ficam-se por aí. E depois há outros chefs com uma visão de crescimento, de fazerem mais projetos. A mim, hoje o que me dá pica é ser desafiado a fazer coisas novas. Obviamente que também quero ir evoluindo os projetos que tenho em mãos. Não quero que o Tapisco seja sempre igual. Não quero que o Alma estagne. Mas ao mesmo tempo sinto a necessidade de ter outros projetos, principalmente lá fora. Em certa parte, ser um embaixador da cozinha portuguesa. Precisamos de mais Cristiano Ronaldos, que foi alguém que mais fez pela marca Portugal. Mais Ronaldos, mais Joanas Vasconcelos. Mais Avillez. Os próprios chefs portugueses começam a ser mais conhecidos internacionalmente, sobretudo pelas distinções do Guia Michelin. Para mim é um orgulho saber que tenho um projeto em Londres, sobretudo se for um projeto de sucesso.

Falava da importância de construir equipas, algo que tem sido cada vez mais difícil na restauração, sobretudo com as recentes crises e dificuldades. Isso obriga também a uma forma diferente de trabalhar? De olhar para o setor e para os trabalhadores, sobretudo numa área conhecida por ser tão exigente a nível laboral?
Esse é o nosso maior desafio. Não há nenhum chef, principalmente da minha geração e de gerações anteriores que não fale dessa cultura de abuso, das cozinhas serem locais severos, duros, de falta de condições, de muito stress. Mas o stress vai sempre existir. É impossível não existir num restaurante com estrela Michelin. Não acontece noutras áreas. É preciso gerir expectativas.

Por falar em estrelas, o Alma é a grande joia da coroa. Entre tantas viagens e visitas, continua a ser a sua grande preocupação?
É o que requer mais atenção. É onde as pessoas esperam a minha presença, não só física, mas também esperam, como diz o Jorge Jesus, pratos com nota artística. É no Alma que podem encontrar a experiência mais refinada da minha cozinha. Foi também através dele que consegui criar outros projetos.

Pouco tempo antes de reabrir o Alma no Chiado, disse não estar muito preocupado com estrelas Michelin. Um ano depois, chegava a primeira. Três anos depois, a segunda. Esperava que fosse tudo tão rápido?
Foi rápido a partir do momento em que me foquei nesse objetivo, mas se olharmos para a minha carreira, ganhei a primeira estrela com 40 anos e ao fim de 20 anos a trabalhar. Foi tudo menos rápido. Foi lento, até. Durante muitos anos assumi que não era isso que queria. Quando abri o Alma pela primeira vez, em 2009, tinha consciência de que não era um restaurante candidato ao Guia. Atravessávamos a crise, a austeridade, não era o timing ideal. Havia poucas estrelas também — basta ver que nos últimos cinco anos quase quintuplicamos o número de estrelas que tínhamos nos últimos 20 anos. Sinto que houve uma revolução gastronómica e a reabertura do Alma fez parte desse movimento. A primeira veio muito rapidamente, mas isso requer condições, outro foco, e eu não tinha esse foco no início da carreira. Quando reabrimos o Alma, esse era assumidamente o objetivo.

“O que me dá pica é fazer coisas novas (…) ser um embaixador da cozinha portuguesa”

Mas não basta querer…
Sabemos a dificuldade que é receber estrelas. Temos muitos chefs que já mereciam uma ou duas e durante muitos anos não a receberam. Muitas vezes não é o mais importante. Não é desvalorizar, eu nunca desvalorizei as estrelas. Nunca fui o tipo de chef que dizia que não queria. Dizia era que não ia condicionar a minha vida e toda a minha felicidade por causa disso. Quando se fica demasiado focado nisso, e depois ano após ano, a estrela não chega, é sempre um soco no estômago. O primeiro reconhecimento que podemos ter é ter um restaurante cheio, que seja bem gerido, que seja rentável. Isso é o mais importante.

De todos os chefs portugueses, o Henrique Sá Pessoa é uma das caras mais conhecidas em Portugal, muito por culpa da televisão. Hoje, parece que não há chef que não tenha um programa televisivo. O cenário era bem diferente em 2006, ano em que fez o primeiro programa, o Entre Pratos.
Estou na televisão há 17 anos. Fiz o primeiro programa, o Entre Pratos, e não me sentia nada preparado. Durante oito anos passei pelos Estados Unidos, Austrália… Já era um assíduo seguidor de programas de cozinha. O Jamie Oliver era a referência, o grande fenómeno no final dos 90 e início dos 2000. Quando regressei a Portugal, senti que havia um enorme vazio. Tínhamos o chef Silva, a Filipa Vacondeus, Carlos Capote, Hernâni Ermida, mas sempre tudo num formato mais rígido, mais antiquado. Na altura, em discussão com amigos que trabalhavam em televisão, comentámos isso mesmo e decidimos fazer um piloto.

Então a sua referência era o Jamie Oliver?
Era a minha inspiração. Foi ele que trouxe essa revolução. Apresentámos o piloto à RTP2 e eles aceitaram. Fui sem qualquer preparação e decidiram, e muito bem, que seria mais fácil se tivesse algum apoio. Todos os episódios tinha um convidado, alguém que me obrigava a comunicar de forma mais eficiente. Tínhamos até um guionista. O programa era líder de audiências e lembro-me que foi quando comecei a ser reconhecido na rua, mas depois confundiam-me e perguntavam-me se eu entrava nas telenovelas (risos). Tive sempre a sorte de não ter sido um fenómeno de um dia para o outro, como aconteceu com o Ljubomir [Stanisic]. Eu hoje não consigo passar despercebido, mas foi um processo mais demorado que me deu margem para me proteger da exposição excessiva que é sempre um bocado mais chata, mais difícil de lidar.

Sá Pessoa começou a fazer programas de televisão há 17 anos

Participou em mais uma mão cheia de programas. O mais recente é o ComTradição, no “24 Kitchen”, onde tem por hábito reinterpretar receitas clássicas, portuguesas e estrangeiras. Já sofreu na pele a raiva dos tradicionalistas?
Curiosamente, fui mais acarinhado pelos estrangeiros nas alterações aos pratos do que pelos portugueses. Exceção feita aos italianos — esses ainda são piores do que os portugueses. Os espanhóis também são algo conservadores. Sofri algum abuso… Quando digo abuso, são dois comentários no meio de cem. Mas há sempre alguém a dizer-me que não é assim que se faz uma chanfana ou uma cabidela. Acho que há pessoas que ainda não entenderam o conceito do programa, que aliás está explícito no trocadilho do nome. Dou o nome às receitas para que haja ligação ao prato tradicional, mas a ideia é poder dar uma volta às receitas, ter a liberdade para o fazer.

Mas não são comentários simpáticos.
Na altura recebi duas mensagens mais agressivas. Uma foi de uma confraria a exigirem um pedido de desculpas por ter feito uma chanfana com borrego. Respondi que não tinha nada que pedir desculpas porque não disse que a receita era a original. Expliquei o conceito do programa e avisei que se não queriam ver a receita, podiam sempre mudar de canal. Não tenho que pedir desculpas. E se a chanfana o ofendeu, que continue a fazer a chanfana como sempre fez. Acho que temos que deixar essas coisas bem claras. Eu não faço nada para ofender.

Compreende esse conservadorismo?
Veja-se a polémica do pastel de bacalhau com queijo da Serra. Se me perguntarem se gosto? Não, não gosto. Experimentei? Claro. Até podia gostar, mas não gostei, não acho que a ligação faça sentido. Vou dizer que é um atentado culinário? Para mim, na ótica de consumidor, é porque não gosto, mas se um brasileiro ou um inglês acha aquilo uma maravilha… O que acho é que temos que ter cuidado: se eu daqui a 20 anos disser que a chanfana que fiz com borrego é a chanfana tradicional e o disser com orgulho, estou a ser mentiroso e, aí sim, estou a ir contra aquilo que são as tradições da nossa cozinha em termos de receituário. O pastel de bacalhau com queijo da Serra não é tradicional, mas é uma inovação.

Falava sobre o conservadorismo dos portugueses, espanhóis, italianos. Hoje é um lugar comum dizer que Portugal tem a melhor comida do mundo. O mesmo dirão os outros países.
Para se afirmar uma coisa dessas, teria que se provar a cozinha de todos os países. E mesmo que eu o fizesse e chegasse à conclusão de que a nossa é melhor, continuaria a ser a minha opinião. Da mesma forma que podemos olhar para um quadro, eu posso gostar dele e a outra pessoa não. A cozinha é como qualquer outra arte, como a música, a arquitetura… São processos artísticos e técnicos que são avaliados de forma muito individual. Se me disser que Portugal tem produtos de grande qualidade que nos permitem fazer uma cozinha de grande qualidade? Sim. Pessoalmente, está ao nível da cozinha italiana ou francesa ou outras das mais conhecidas. Mas podemos ver a coisa de outro prisma: porque é que a cozinha do Peru tem hoje tanto destaque? Porque o governo investiu na gastronomia e teve esse retorno. Isso também começa a acontecer em Portugal, mas ainda nos falta um bocadinho de visão na forma como alavancamos a promoção do País. Há apoio, mas se calhar podíamos fazer mais.

“Em Portugal sempre tivemos facilidade em comer na rua por dez ou por cinco euros. Somos dos poucos países que conheço onde isso acontece”

Isso é a nível internacional. E por cá, sente que em Portugal não se dá o devido valor à alta cozinha?
Existem dois problemas. Nós em Portugal sempre tivemos facilidade em comer na rua por dez ou por cinco euros. Somos dos poucos países que conheço onde isso acontece. Mesmo em Espanha e Itália, é difícil. Não existe. Mas existe cá. Nesse aspeto, somos os melhores do mundo a fazer muito com pouco — e não é só na gastronomia. Lembro-me do tempo da austeridade, da quantidade de conceitos que surgiram na restauração, onde se fizeram espaços com cadeiras em segunda mão, talheres da avó. A nossa capacidade de desenrasque… Somos os melhores. Nunca vi países que com tão pouco fizessem tanto.

Como é que se convence o português médio, mais tradicionalista, a olhar para a alta cozinha com outros olhos? Tornando-a mais acessível?
É um bocadinho por aí. Haverá sempre pessoas que acham que a cozinha tradicional está a ser completamente apagada e desvalorizada pela nova geração de chefs. Esquecem-se é que há milhares de manuais de manuais catalogados e guardados que nunca irão desaparecer. Na minha opinião, nunca se valorizou tanto a cozinha, os produtos, os produtores. Agora, se quiser ir comer uma feijoada, vou a uma tasca. Se quiser comer uma interpretação de uma feijoada feita por um chef, não posso achar que a experiência vai custar oito ou dez euros. Há todo um trabalho, desenvolvimento técnico, preparação que está por trás da experiência.

E sente que a maioria ainda não consegue separar os dois mundos?
É um passo importante que temos que dar. Gastronomia é cultura. Há uns tempos, alguém no Facebook comentou uma foto que publiquei de um carabineiro com espuma de açorda. Fiz o prato num jantar que dei no Chipre e referi que era “um orgulho representar a nossa gastronomia”. Disseram-me logo: “Orgulho em quê? Nada disso é cozinha portuguesa. Esses pratos são uma vergonha para a nossa gastronomia”. E eu respondi que a gastronomia é como a música. Há quem goste de pimba, de ópera, de rock, mas há boa e má música em qualquer uma desses géneros. Também há maus restaurantes Michelin — maus no sentido de não gostar deles ou de não me identificar com a cozinha — como há más tascas. O que é mesmo mau é não termos opções ou só termos uma. Reduzir a gastronomia portuguesa ao prato cheio da tasca é, para mim, limitar a nossa própria cultura gastronómica.

A verdade é que, gostos à parte, ir a uma tasca ou a um restaurante estrela Michelin tem um custo muito diferente. São locais inacessíveis à maioria. O David Muñoz do DiverXO, dizia há tempos que pagar 365€ por um menu “não é coisa de ricos” — e viu-se a controvérsia que a afirmação gerou, cá e em Espanha.
E eu concordo com o David Muñoz, acho é que ele foi mal interpretado. Eu conheço pessoas que gastam 200€ num par de sapatilhas ou 300€ num par de óculos porque têm essa capacidade, mas já acham um balúrdio ir ao Alma pagar 250€ por uma refeição. Quem quiser ir ver a final da Champions League lá fora, paga 500€ pela viagem, 200€ pelo hotel e mais 350€ pelo bilhete. Gastam-se dois mil euros para ir ver um jogo — e ir ao meu restaurante gastar 500€ é considerado um luxo?

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