A reserva foi feita pelo telefone como outra qualquer. Pedro Cardoso, dono do icónico Solar dos Presuntos, obedeceu à rotina. À hora marcada, a cliente chegou e foi encaminhada para a respetiva mesa. “Só reconheci que era a Adele quando um dos funcionários me alertou”, recorda.
E tudo corria bem, até que as luzes se apagaram subitamente e a cantora “entrou em pânico a pensar que lhe iam fazer alguma coisa”. Pedro Cardoso teve que intervir e acalmar a cliente VIP. “Lá lhe expliquei que era uma tradição portuguesa.” Acabou a noite a servir pastéis de nata à artista, que se assumiu fascinada com o restaurante — e acabou por convidar Pedro e a família para o concerto.
“Por acaso já tínhamos bilhetes, mas ela insistiu que ficássemos noutro lugar e aceitei. No final, acabei por não poder ir, mas a meio do concerto ela disse que estava muito feliz e com uma barriga maior por causa do Solar dos Presuntos”, recorda. Esta é apenas uma das muitas histórias que guarda “na longa memória” do famoso restaurante lisboeta que a 30 de outubro comemora 50 anos — e cuja festa está marcada para este domingo, 6 de outubro.
Ainda no final de setembro, o espaço recebeu discretamente a rainha emérita Sofia de Espanha para jantar. “Tentámos tratar de tudo com calma e tranquilidade, porque estas pessoas querem apenas saborear a nossa comida sem serem incomodados com fotografias e vídeos. Nesse dia estava apreensivo, porque é sempre muita logística e preocupação, mas correu tudo bem e no final ela saiu daqui felicíssima com a cozinha portuguesa.”
Existem poucos restaurantes no País que se possam gabar de ter um painel de honra com tantos famosos. E na génese desta instituição da cidade está a família Cardoso. Pedro, atual gestor, espera que daqui a cinco décadas o cargo seja assumido pelo neto, Gaspar, que neste momento tem um ano.
O desejo revela a essência do negócio familiar criado no ano da Revolução de Abril por Evaristo e Graça Cardoso. Pedro, contudo, sempre se mostrou relutante em assumir o negócio. Até atingir a maioridade, as poucas vezes que aparecia no restaurante “era para pedir dinheiro para as traquinices, para os discos ou para ir ao cinema”.
Tinha apenas 18 anos quando “começou a levar baile de todos os funcionários do restaurante”. O sonho do miúdo que nasceu em Lisboa era seguir Química, mas a professora, da qual ainda recorda o nome, aconselhou-o a não o fazer. “Nasci numa cozinha, quando a minha mãe ainda trabalhava no restaurante da sua tia Marcia Condensa. Ia ao mercado com ela todos os dias e era conhecido pelas peixeiras como o Pedrinho, por isso o meu caminho já estava traçado. Mas eu não gostava disto. Quando os meus pais abriram o Solar dos Presuntos, eu tinha sete ano e fugia sempre que me diziam que precisavam de ajuda no espaço”, conta.
O plano passava por continuar a estudar e entrar na faculdade, mas rapidamente foi aconselhado a esquecer a ideia e dedicar-se ao restaurante dos pais. “A minha professora disse-me de caras que não tinha talento para estudar, mas que era bom a comunicar e que devia ir por aí. Pronto, acabou felizmente por acender uma luz e percebi que tinha de dar continuação ao excelente trabalho que os meus estavam fazer.”
Assumiu o papel no restaurante e juntou-se aos funcionários para aprender todas as bases, “enquanto acompanhava o pai em tudo para aprender o resto”. Passadas umas semanas após ter assumido um lugar no negócio da família, o negócio tremeu. Surgiu um comprador interessado em adquirir o prédio do Solar dos Presuntos por causa dos terrenos nas traseiras. O Evaristo Cardoso ainda pensou em vender, mas Pedro, que tinha abdicado do sonho da química, interveio e impediu o pai de realizar o negócio.
No começo, todos os dias eram de disputa saudável entre pai e filho. Queriam sempre fazer melhor e esta competição acabou por prepará-lo para as críticas menos positivas. Uma das que mais lhe doeu foi a do crítico José Quitério, que apontou vários defeitos não só ao restaurante, como à posição de Pedro. “Nesse dia fui ter com o meu pai e disse-lhe que queria desistir, que se calhar não era bom naquilo. Ele dissuadiu-me e viu a crítica detalhadamente comigo para vermos o que tínhamos de melhorar. Os aspetos mencionados eram sobretudo os néons, as toalhas de papel que eram inadmissíveis num restaurante como aquele em Lisboa e o facto do Bacalhau à Narcisa não seguir a receita de Braga”, refere.
O episódio fez com que Pedro Cardoso passasse a olhar para as críticas de outra forma. “Não ligo a louvores. Isso todos podem dizer, mas importo-me com as críticas construtivas e fundamentadas, porque estamos sempre a aprender e a evoluir. Eu vivo para isto e para a minha família. Não meto a cabeça na areia e é esse o grande sucesso do espaço, perceber que não somos os donos da verdade e da certeza.”
Durante uns tempos manteve-se nos bastidores, a absorver tudo o que via o pai a fazer. “Ele era um relações-públicas cativante e era parte do sucesso do espaço. A outra parte eram as mãos e receitas da minha mãe”, refere. Uns anos depois, após umas grandes obras de intervenção onde expandiram o espaço para dois pisos, Pedro já assumia o papel de gerente e seguia as pisadas do pai.
A cozinha do antigamente
O Solar dos Presuntos nasceu em 1974 como um restaurante de cozinha minhota, com foco nos pratos de Monção, terra natal de Evaristo Cardoso. Os produtos eram comprados pelo próprio, que fazia 500 quilómetros para escolher os melhores ingredientes. As receitas eram depois feitas por Graça Cardoso, que passou todo o saber a quem se lhe seguiu na cozinha.
Atualmente, o conceito assenta na cozinha tradicional portuguesa, feita com produtos nacionais e algumas honrosas exceções como o caranguejo-real. “Temos ótimo atum e peixe da nossa costa, mas gostamos também de trazer novidades para dar a conhecer o que há lá fora”, refere. “É uma grande vitória para nós que, após 50 anos, nos encontramos na vanguarda da restauração. É um orgulho apresentar Portugal através da nossa fantástica cozinha que é, simultaneamente, das mais simples e difíceis do mundo.”
Esta era uma das missões do pai que Pedro sempre quis manter. “É uma forma de preservar a memória dele. Até porque para mim ele não faleceu. As pessoas só morrem quando nos esquecemos delas, por isso faço questão de o recordar todos os dias, naquilo que faço. Dá-me força”, admite.
É também por isso que, faça chuva ou faça sol, 11 de fevereiro é dia de arroz de lampreia no Solar dos Presuntos. Esta é uma das tradições que Pedro Cardoso faz questão de manter em homenagem ao pai que morreu em 2022. E, para acompanhar, há sempre o vinho especial que guarda na garrafeira instalada na cave e que alberga com milhares de exemplares valiosos.
O número de referências que guarda no espaço pode ser insólito, mas não para o responsável. “Servimos cerca de 700 refeições diariamente aqui, não me posso dar ao luxo de não ter algum vinho que o cliente peça”, justifica. Mas o espaço tem um sabor mais especial do que gosta de admitir. Um dos sonhos do proprietário está até relacionado com o espaço no piso inferior do restaurante. “Gostava de morrer na garrafeira, sozinho, com o charuto na mão e a beber e tudo. Não vou conseguir, porque de facto é muito vinho, mas é uma coisa brutal, a garrafeira do Solar dos Presuntos é uma coisa única, uma loucura.”
A garrafeira não é o único local especial. No terraço foram instalados dois murais feitos pelo artista Vhils em homenagem ao casal fundador. “Foi uma maluqueira da minha filha Carolina para perpetuar a alma da casa e que me relembra a importância da nossa família diariamente.”
A união familiar foi sempre a “pedra basilar” do negócio. Da mãe, Pedro diz que herdou a falta de filtro e, do pai, o sentido de obrigação de fazer mais e melhor. Com a ajuda da mulher, Maria João Cardoso, tenta passar os princípios familiares às filhas, Carolina, que já segue as pisadas do progenitor, e a Carlota.
É também por si e pela família que todos os anos tira férias apenas com a mulher e deixa o telemóvel em Lisboa. “A pandemia ensinou-nos muita coisa. Eu nunca adormecia no sofá a ver televisão, nem passava muito tempo em casa. E há coisas às quais tem de se dar mais valor”, admite. No meio disto tudo tira sempre tempo para esquiar com os amigos de Monção, que são clientes habituais do restaurante.
“Recordo-me de uma vez que um dos meus amigos disse que não podia esquiar porque tinha partido o braço ao ser atirado pela janela por um marido, quando o apanhou com a sua esposa”, recorda entre gargalhadas. Num desses jantares de amigos, Pedro comentou o sucedido, mas foi surpreendido com a resposta de um dos colegas. “Teve sorte, porque eu devia era tê-lo matado”, afirmou, para surpresa de todos. “Esta foi mais uma daquelas situações aqui no Solar onde não sabia onde me meter”, graceja.
A festa dos 50 anos
Este domingo, 6 de outubro, a família vai celebrar as cinco décadas numa festa solidária, com entrada livre, para mais de duas mil pessoas. O Largo da Anunciada estará vedado às celebrações entre as 16 e as 22 horas de domingo. A cozinha será instalada no exterior, onde irão servir alguns pratos icónicos da casa a um preço especial.
Como uma festa não se faz sem música, são esperados pelo menos quatro momentos musicais, que serão inaugurados pelo Gaspar Varela, guitarrista de Ana Moura e depois seguidos pelos Chef Duro, João Pedro Pais, André Sardet e, no final, Tony Carreira. Haverá ainda espaço para um set de Dj com Wilson Honrado.