Beleza

“Não quero matar ninguém, nem morrer.” O russo que veio tatuar para Portugal para ficar

"Esta não é a minha guerra." Sérgio Bereznyatsky deixou familiares, amigos e clientes em S. Petersburgo. Trabalha num estúdio em Sintra.
O russo fez a sua primeira tatuagem aos 15 anos.

Sérgio Bereznyatsky faz parte da vasta lista de criativos russos que foram obrigados a fugir do país onde cresceram. Aos 32 anos, o tatuador passou metade da vida a criar arte em centenas de corpos no país onde nasceu. Em fevereiro, a invasão russa à Ucrânia levou-o a alterar radicalmente a sua vida. Demorou apenas três dias a abandonar São Petersburgo e a mudar-se para Portugal, onde foi acolhido no estúdio de tatuagens Bang Bang, em Sintra.

“[A minha mudança] não pode ser chamada de outra coisa que não uma fuga. Quando foi anunciada a mobilização parcial, eu e a minha mulher decidimos deixar logo o país”, conta à NiT, reforçando o medo que sentiu: “Não quero matar ninguém, nem morrer. Esta não é a minha guerra. Não é a minha escolha”.

Antes de se instalar no espaço de Nazaré Pinela, a “bad influencer” portuguesa de 58 anos, que foi descoberta por um fotógrafo norte-americano, Sérgio trabalhava na Galeria de Tatuagens MataHoata, que descreve como o seu “lugar de poder”. “O primeira — e único — espaço do género na Rússia”, explica.

Apesar do amor que sente por São Petersburgo, dia após dia, notícia após notícia, tornava-se cada vez mais difícil continuar. Face à incerteza de não saberem o que poderia acontecer a seguir, Sérgio e a mulher decidiram deixar o território liderado por Vladimir Putin. Nas noites antes da partida, encontraram-se com amigos, partilharam planos e despediram-se da cidade russa.

“Os meus pais e alguns dos meus amigos estão na Rússia, o que é triste para mim. Continuo a manter o contacto com todos e, felizmente, só me apoiam. Claro que gostaria de ter a oportunidade de visitar a Rússia — vivi lá um terço da minha vida. Acima de tudo quero poder circular livremente pelo globo.”

Sentiu-se bem recebido no nosso País.

A vida em Portugal

O artista assegura nunca se sentiu alvo preconceito desde que chegou, nem considera ter sido bombardeado com propaganda. “Nos últimos 10 anos praticamente não tenho visto televisão. Filtro a informação e só considero o que é importante para mim”, diz. “Acredito que, como os ímanes energéticos, atraímos pessoas com as mesmas ideias e só tenho sentido apoio dos que me rodeiam. Sou um simples homem de família que quer inspirar e criar beleza nas pessoas.”

O primeiro contacto que teve com Portugal foi em outubro de 2019, quando visitou Sintra com a mulher, com quem partilha a vida há 10 anos. Na altura, conheceu Nazaré e Eduardo Pinela, através do Instagram do estúdio Bang Bang, e foi convidado pela tatuadora de 58 anos a visitar a loja. Na semana que passaram em solo nacional, tornaram-se amigos do casal de forma natural, “como se nos tivéssemos conhecido há muito tempo”.

Sérgio manteve o contacto com ambos e planeava regressar a Portugal. Só não esperava que fosse nas atuais circunstâncias. Ainda assim, em momentos de hesitação, foi Nazaré que o fez sentir que seria bem acolhido, dando-lhe força para mudar. E não sente dúvidas de que o estúdio, onde trabalha como tatuador residente, é a sua nova casa.

“Sintra é uma cidade muita turística e as pessoas vêm fazer tatuagens como lembranças de Portugal. E também aprecio o facto de existirem muitos conhecedores e colecionadores de tatuagens”, acrescenta. “Aqui, tudo o que me rodeia inspira-me. Continuo a desenhar todos os dias e cheguei a comprar uma bela mesa vintage para isso.”

Um dos motivos pelos quais o russo se adaptou tão bem à atmosfera do estúdio é o seu estilo de tatuagem, com a mesma estética clássica vintage. Atualmente, apenas faz trabalhos com base nos seus próprios desenhos, “porque o objetivo é criar uma obra de arte que fique bonita ao longo das décadas e não se transforme numa mancha ilegível”.

Apesar de ter saído da sua zona de conforto, o tatuador sente uma forte sinergia não só com as pessoas com quem trabalha, mas também com o ambiente. Os seus objetivos vão muito além do seu ofício. Já começou a aprender português, mas quer aproveitar a localização geográfica do País, com ondas gigantescas, para se tornar mais atlético e se dedicar ao surf.

“Lancei aqui a âncora, o que significa que chegou o momento de pensar em grandes projetos.” A nível profissional, Sérgio pretende apostar em produções mais ambiciosas, como tatuagens de corpo inteiro, nas costas e desenhos de uma só peça nas pernas e braços, que requerem sessões mensais regulares.

“Estou pronto para realizar os sonhos dos românticos e conhecedores da era vitoriana, época em que os talentosos tatuadores criaram, antes da invenção da máquina de tatuagem elétrica, exemplos dignos do um corpo humano completamente coberto de tatuagens”, conta. E deixa um repto: “Se sonha com uma grande tatuagem, terei todo o prazer em ser o primeiro a conhecê-lo no Bang Bang”.

Do graffiti à tatuagem

A facilidade de adaptação de Sérgio Bereznyatsky é algo que o acompanha desde miúdo — cresceu num ambiente frutífero para a criatividade. Numa família modesta, em que a mãe era professora num jardim de infância e o pai motorista, sempre teve liberdade para explorar todos os recantos da sua mente.

Adorava desenhar, esculpir com plasticina e brincar com peças LEGO. “Depois de fazer as construções de acordo com as instruções, desmontava e gostava de criar algo meu”, conta. Na escola, desenhava os jornais escolares e começou a estudar arte, mas a sua primeira paixão foi o graffiti. Vivia num quinto andar, com as paredes todas pintadas, e os vizinhos não se importavam. Era o próprio pai que lhe comprava as tintas.

“Tinha 13 anos e estava rodeado por arte. Tinha acesso ao telhado, o meu lugar preferido, e tudo era pintado com graffiti também. Admirava a vista das oficinas de arte, com janelas interiores e repletos de pinturas”. Ao mesmo tempo, desenvolveu uma paixão por livros infantis, onde muitos artistas soviéticos talentosos concretizavam o seu potencial. “O sonho de me tornar artista inspirou-me.”

As tatuagens também não foram uma descoberta tardia, já que ambos os avôs e o pai possuíam desenhos incríveis. Um tinha uma água no peito e outro, entre muitas mais, exibis um coração trespassado por uma flecha. Já o pai tinha uma tatuagem no ombro e “todas eram primitivas, feitas com uma simples agulha, sem máquina”.

“Um dia, quis fazer uma tatuagem com o nome da minha ex-namorada. Vi o letreiro de uma loja de tatuagens, fui perguntar o preço, mas pareceu-me caro. Saí e decidi fazê-la eu. Na altura, tinha 15 anos”, revela.

Aos 16 começou a frequentar um bar secreto de motoqueiros e quando começou a relacionar-se com a comunidade de metalheads, todos mais velhos. Quando fez um amigo, com uma tatuagem verde brilhante no antebraço, montaram uma máquina de tatuagem rotativa, de acordo com as instruções de um livro de tatuagens, “e a diversão começou”.

“Fervíamos a corda de uma guitarra — que servia de agulha —para a esterilizar, e o pigmento era tinta de uma caneta de gel. Era um verdadeiro punk rock, em 2007. Quando decidi que não era seguro, voltei à loja de tatuagens, disse que queria aprender e o meu professor viu que tinha potencial. Aos 18 anos, já tinha máquinas profissionais.”

Até aos 23 anos, viveu na pequena cidade de Yoshkar-Ola, onde nasceu. Em 2013, deu um grande salto e mudou-se para são Petersburgo, onde conheceu tatuadores de renome, que já viajavam pelo mundo. Começou a trocar experiências e a construir uma carreira que culminou na Galeria MataHoata, onde deixou uma sólida carteira de clientes que confiavam no seu trabalho.

Quanto às pessoas que já tatuou e que deixou para trás, continua em contacto com todas. “Têm a oportunidade de poupar dinheiro para projetos maiores, mas se alguém estiver impaciente, consultam-me e dou-lhes os contactos de colegas que continuam da Rússia. Espero que alguns deles possam vir a Portugal, para descobrirem este belo País e fazerem uma nova tatuagem minha”.

Carregue na galeria para conhecer alguns dos trabalhos de Sérgio Bereznyatsky. Também pode visitar o estúdio Bang Bang no número 88 da Avenida Heliodoro Salgado, em Sintra, e conhecer de perto os profissionais que ali dão asas à criatividade.

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