Todos os dias, quando chegam ao Parque Ribeirinho de Belém, em Lisboa, Carolina Rosa e Joana Almeida abraçam-se durante uns bons minutos. É como se não se vissem há semanas. Terminados os cumprimentos, fazem maquilhagens e penteados uma à outra e, quando ambas estão impecáveis, sentem-se finalmente prontas para trabalhar.
As duas amigas, de 24 anos, integram o projeto As Cores da Inclusão — realizado em parceria com as empresas sheerME e Pantene —, que oferece formação específica na área da beleza a jovens com Síndrome de Down. O objetivo é capacitá-las para trabalharem com cabelos, maquilhagem, manicures ou massagens.
Tudo acontece na Beauty Van da Vanytime, um espaço sobre rodas que estacionou entre o restaurante SUD e o Café-IN, até ao final do verão. É um pequeno salão adaptado que, além de uma série de serviços de beleza e bem-estar, oferece várias festas e workshops.
Se estiver a passar por ali, só precisa de entrar na carrinha e sai com um look novo em menos de 20 minutos. Os serviços disponíveis incluem o Express Makeover (8€), para um look mais natural, ou o Extreme Makeover (14€), que oferece uma mudança mais dramática para um look de festa.
“Já trabalhámos várias vezes com jovens com problemas cognitivos e percebemos que vários, sobretudo raparigas, gostavam imenso desta área”, explica a fundadora, Filipa Soares, à NiT. “Algumas tentaram formações, mas não têm flexibilidade motora para acompanhar o ritmo da turma. Aqui conseguem participar e aprender.”
Este projeto é realizado em parceria com as marcas sheerME e Pantene.
A modelo que dá o exemplo
Carolina não é uma desconhecida do mundo da beleza. O gosto pela fotografia e pelas poses começaram a fazer parte da sua vida muito cedo, aos dois anos, despertando aquele que viria ser o seu sonho. Além disso, “gostava de aprender as falas dos filmes que via e transformar aquilo numa peça no seu quarto”, revela a mãe, Paula.
Em 2017, como o pai é brasileiro, foi viver para o outro lado do Atlântico — e lá encontrou outra recetividade no mundo da moda e da representação. Formou-se como modelo numa agência com outros jovens sem necessidades especiais e tornou-se a primeira modelo portuguesa com síndrome de Down.
Quando regressou a Portugal, no ano seguinte, Carolina foi confrontada com as dificuldades que existem na indústria nacional. “Quando chegámos, tentei contactar algumas agências e foi-me dito que não existe procura nessa área. Se não existe oferta, não existe procura”, afirma a mãe.
Apesar dos obstáculos, Carol foi dando pequenos passos para atingir outros objetivos. Um deles era trabalhar no mundo da beleza. “Gosto de fazer tudo, mas o que mais me pedem são os mini faciais ou as massagens nas mãos”, conta à NiT. “Quando as pessoas estão aqui, fico elétrica.”
No final, os visitantes têm sempre direito a vários abraços. Ninguém sai sem receber um. “Tenho um dom no coração que é dar amor e afeto às pessoas. Sou uma pessoa muito fofa e quero que saiam mais felizes. Aqui não se faz só maquilhagens e cabelos.”
Sobre o acompanhamento, Filipa sublinha que é sempre adaptado. “A Carol era embaixadora da Vanytime e sabíamos que estava a tentar entrar no mercado de trabalho, mas não tem a mesma destreza motora ou capacidade física para acompanhar uma formação normal.”
As sessões acontecem de quarta-feira a domingo, das 14 às 20 horas, e cada formanda trabalha durante quatro horas. A beauty van recebe duas alunas de cada vez para o serviço ser o mais personalizado possível — e abriu o recrutamento para novas interessadas.
Nos primeiros dias, Carolina saiu do trabalho a chorar, frustrada porque não conseguia fazer tranças. Levou para casa a Alzira, uma boneca anti-stress, e não parou de treinar no quarto até conseguir fazer o penteado perfeito. Ao terceiro dia, já dominava as técnicas.
“Ainda tenho alguma dificuldade com as mãos. Quando experimento fazer caracóis, parece que não consigo mexer em todas as máquinas”, acrescenta. “O meu segredo para conseguir é que sou alguém que nunca desiste dos seus sonhos.”
Joana, a especialista em tranças
Outro dos truques para ultrapassar os obstáculos é a cumplicidade que existe entre ambas. Quando uma que está mais stressada, a outra está sempre pronta “para ajudar e acalmar”, sublinha Joana.
Conhecida como a especialista em tranças, a jovem não esconde a preferência em tratar dos cabelos. Quem se senta na cadeira, também lhe elogia os caracóis. O que está por trás? “Muito ferro quente. Tenho de trabalhar sempre com o ferro”, revela.
Porém, mantém uma relação de amor-ódio com a ferramenta. Uma queimadura na mão foi o suficiente para ter medo e, agora, está a treinar com a máquina fria para voltar a ganhar coragem. Após o acidente, não hesitou. “Faz parte, são os ossos do ofício”, disse à formadora, Danila.
Durante a manhã, Joana trabalha como auxiliar numa cantina — e até já perguntou à mãe se não pode trabalhar a tempo inteiro na Vanytime. Diverte-se tanto a trabalhar que, tal como a amiga, está sempre a pedir para ficar mais horas ao serviço de quem procura um novo visual.
O gosto pela beleza também é algo que a apaixona desde pequena, quando começou a ver a mãe a maquilhar-se e a tentar reproduzir. Contudo, nunca teve oportunidade de fazer deste gosto algo mais do que um hobby, até que foi convidada para integrar o primeiro grupo de formandas d’As Cores da Inclusão.
“Por um lado, somos super rigorosos com elas. Se há uma tarefa, precisam de a cumprir”, continua Filipa. “Temos que adaptar a linguagem, mas são pessoas que ultrapassam os desafios com o mesmo esforço e a mesma dedicação.”
Amigas desde a creche, Carol e Joana tornaram-se cúmplices muito cedo. Dessa altura, recordam as cócegas, os desenhos que faziam — “as macacas” — e o facto de serem tão agitadas como atualmente. A energia que levam diariamente até Belém não se alterou, assim como a teimosia.
A regra é não desistir
Para arranjarem cobaias, as amigas vão atrás de possíveis pessoas interessadas e só descansam quando conseguem encontrar alguém. Apesar da estranheza manifestada por algumas pessoas, não se deixam intimidar e apresentam logo o conceito da beauty van que se instalou ali, conquistando-as com um sorriso.
Quando vai ao encontro de potenciais clientes, Carol começa por mostrar a roda da sorte, convidando-as a girar. Ali, podem ganhar prémios como produtos ou alguns dos serviços que fazem parte do preçário da carrinha da Vanytime.
“Quando dizem que não, fico um bocado triste e frustrada”, afirma Joana. Carol acrescenta: “Parece que muita gente não tem simpatia. Às vezes, conseguem ser muito antipáticos.”
No entanto, não desistem. Se as pessoas interpeladas não mostrarem interesse, tentam convencê-las e só descansam quando alguém aceita entrar na van. Outras param para tirar uma fotografia, que ambas aceitam, afinal descrevem-se como “obcecadas” por fotos.
Quando uma senhora pediu uma selfie com Carolina a meio de um trabalho, a jovem mostrou que não tem filtro. “Eu paro, mas isso é muito pouco profissional”, respondeu. Ali há uma regra: não se param trabalhos a meio — “exceto se forem amigas”, brinca Filipa.
A evolução é notória em ambas. No caso de Joana, a quem custou aprender a parte da maquilhagem, também já domina cada vez mais os pincéis. Agora, adora maquilhar e ser maquilhada: não consegue escolher apenas uma.
“Gostava de continuar a fazer isto e, se depender de mim, vou continuar aqui”, confessa. “Quero falar com a minha mãe para tratar da questão de ser modelo. Já experimentei alguns castings e gostava muito.”
Com a chegada de novas formandas, agora é a vez de Joana e Carol ensinarem tudo o que sabem. “Se fizerem asneira, a responsabilidade é nossa. Sinto-me preparada para tudo e vou fazer o meu melhor, sempre com o mesmo amor que tenho pela Joana”, acrescenta, acerca desta primeira experiência.
O programa das formações avança com base na complexidade, começando-se pelos mini tratamentos faciais, onde trabalham muito com base na repetição. Os padrões são importantes para memorizarem todos os passos e técnicas importantes, sempre adaptadas às suas necessidades.
Uma coisa é certa para toda a equipa beauty van da Vanytime: todas as clientes dizem que saem de coração cheio “por sentirem a genuinidade delas”, conclui a responsável, Filipa. “Mais do que o resultado, dão muito de si às pessoas.”