“O cenário é de guerra mesmo. Há pessoas a morrer na urgência indignamente. E não só nos serviços de urgência. Sozinhos e abandonados. Pensem só dois segundos. E se fossem os vossos pais? Ou avós?” As palavras chocantes de Raquel Loura deixaram o Instagram em alvoroço a 19 de janeiro. Numa mensagem que se tornou viral, a enfermeira do Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, dava a conhecer uma realidade assustadora que é vivida diariamente pelos profissionais de saúde que estão a combater a pandemia na linha da frente.
O post recebeu tanta atenção que ultrapassou rapidamente os 16 mil gostos naquela rede social. A mensagem de Raquel, de 28 anos, também esteve em destaque na NiT e a enfermeira acabou por nos revelar a forma improvável com que se decidiu refugiar destes tempos negros: concretizando o sonho de lançar uma marca de roupa.
Chama-se daLoura e chegou ao mercado em maio de 2020. “Tem sido um processo desafiante”, revela à NiT. Este é o seu primeiro negócio e as dificuldades de um momento de crise económica vieram elevar os obstáculos mais comuns a um novo nível sem precedentes. Houve momentos, conta, em que acreditou no sucesso, e outros em que teve vontade de parar com tudo e desistir. Se nunca o fez, foi graças aos amigos e família que a têm apoiado.
“Pela pandemia e pelo facto dos profissionais de saúde terem um desgaste diário acima do normal, senti necessidade de me refugiar numa atividade que me desse realmente gozo fazer. Arrisquei, investi o pouco que tinha e dei asas à daLoura”, revela.
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Foi a sua experiência com a maternidade que lhe deu a ideia para a marca. “Depois de ser mãe e de amamentar o meu filho, senti a necessidade de encontrar roupa que fosse bonita e compatível com a amamentação”, explica. As primeiras peças desenvolvidas pelo projeto não tiveram essa preocupação, mas a empresária conta que os novos lançamentos estão a ser feitos de forma a preencher esta lacuna no mercado.
Raquel não tem nenhum curso ou formação na área de moda, mas é ela quem desenha todas as peças e expõe as ideias às costureiras. Todas as propostas são edições limitadas e recorrem a alguns tecidos desperdiçados pela indústria. A produção é 100 por cento portuguesa e feita à mão num atelier em Lisboa, seguindo um conceito minimalista que pode ser transversal no tempo e com uma grande atenção aos detalhes.
O intervalo de preços varia entre os 40€ e 70€, mas a enfermeira adianta que nas épocas de saldos pode ir dos 25€ aos 50€. Para já, todas as peças estão à venda nas páginas de Instagram e Facebook, além também da loja online oficial.
Este refúgio da pandemia foi um risco em que Raquel investiu tudo o que tinha. O processo de fotografia, vídeo, edição, criação de conteúdos digitais, contacto com o cliente, venda e serviço pós-venda é todo feito por ela, que ao mesmo tempo continua a trabalhar na linha da frente de combate à pandemia.
“Tem sido um misto enorme de emoções. Na minha profissão trabalho todos os dias com a missão de cuidar do próximo, ajudar alguém. É verdade que estudei para isso, mas em situação de pandemia muda um pouco a forma como podemos desempenhar essa mesma missão. É tudo muito mais intenso, o botão de alerta está constantemente ligado e o desgaste é enorme”, confessa. Ainda assim, garante que o trabalho com a marca acaba por equilibrar as suas energias e acrescenta: “Já dizia o ditado que quem corre por gosto não cansa e é bem verdade.”
Raquel Loura estudou enfermagem na Universidade de Aveiro e trabalha há cinco anos como enfermeira no Hospital de Santa Cruz. Depois de ter partilhado o post viral onde relatava o dia-a-dia que se está a viver nos covidários, diz que tem recebido reações maravilhosas, apoio, força, carinho e amor de muita gente. “O meu objetivo era, e continua a ser, sensibilizar.”
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“Quando fiz o post nunca pensei que tomasse a dimensão que tomou. Apenas partilhei o momento que estamos a viver no nosso País, mais especificamente no Serviço Nacional de Saúde, que está esgotado, lotado, cheio, para lá daquilo que consegue aguentar. Já rebentou.”
Por detrás da mensagem alarmante, estava um sentimento de revolta por estar há mais de um ano a trabalhar com um medo constante. “Sim, porque nós profissionais também temos medo”, reforça. “A diferença é que uns podem ficar em casa e nós temos que sair todos os dias para cuidar de alguém. Escrevi [o post] num dia em que cheguei a casa cheia de marcas na cara dos elásticos que nos apertam tanto a cabeça e o nariz, é tão doloroso. Sem paciência para ninguém. Com dores em todo o lado. Gerir isto com notícias de que ainda há quem se junte e vai passear trelas sem cão e ande sem máscara na rua, revolta. Revolta muito. E nós [profissionais de saúde] pagamos a fatura nos dias seguintes”, continua.
Felizmente, há muita gente que “percebe que isto não é uma gripe e faz tudo certo”. Mas Raquel faz questão de destacar todos aqueles que se referem à pandemia como uma “teoria da conspiração”. Para ela, estamos numa guerra onde não existem armas nem tiros.
“Os soldados, tal como na guerra, ficam feridos, ou vão ficando. E o mesmo se passa neste momento. Os profissionais de saúde estão feridos, a lutar, mas cada vez mais feridos”, diz. “Ninguém quer passar por uma morte de um familiar ou amigo, vítima desta pandemia. e se calhar pensar que só acontece aos outros é um pensamento irreal e irresponsável neste momento. Há cada vez mais infetados e cada vez mais mortos. Amanhã pode ser um dos meus. Infelizmente nem toda a gente pensa assim. Só estamos a pagar a inconsciência e a irresponsabilidade dessas pessoas.”
As coisas pioraram em janeiro. A enfermeira acredita que o Natal e a passagem de ano foram a grande alavanca deste agravamento, mas também que a chegada da vacina levou muitos a aliviarem as suas atitudes. “Talvez tenhamos pensado que tinha chegado a cura e que portanto já não seria preciso medidas para minimizar a propagação do vírus.” Ainda assim, o aparecimento da nova estirpe é mais um fator que pode ter aumentado o número de infeções.
“Todos estes fatores juntos foram capazes de fazer explodir uma bomba que está a causar a rutura dos serviços de saúde e, consequentemente, a afetar todos os profissionais que lá trabalham, bem como os doentes que têm direito a ter cuidados de saúde de qualidade e que neste momento não o têm. Muitos dizem que já vemos luz no fundo do túnel. Não acho. Ainda temos umas belas semanas pela frente. O resultado deste confinamento só se verá mais para a frente. Neste momento ainda estamos a ‘pagar’ o que andámos a incumprir.”
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