Deveria ter sido apenas uma brincadeira. Uma igual a tantas outras que as marcas usam para manter as engrenagens das suas redes a funcionar. O Dia das Mentiras era o pretexto perfeito para pregar uma partida aos clientes. Inspirados na logomania que levou marcas de luxo e de fast fashion a usarem e abusarem dos seus logótipos nas coleções, o Lidl Alemanha decidiu imaginar um par de sapatilhas com as suas cores.
Assim que chegou às redes, o par imaginário fez o que lhe cumpria e o que o departamento de marketing imaginou: gerou uma onda de comentários e reações positivas. Tão positivas de facto que, ao fim do dia, a brincadeira começou a ganhar raízes. Se eles fossem mesmo reais, estariam os clientes dispostos a comprá-los?
O Lidl avançou mesmo para a produção de uma coleção limitada que os fãs esgotaram em poucas horas. Tão rapidamente quanto desapareceram das prateleiras, foram parar ao eBay, onde chegaram a atingir preços próximos dos dois mil euros.
A partida do Dia das Mentiras revelou ser uma potencial ideia milionária. “Com o intuito de responder aos desejos dos clientes, de forma democrática e acessível, o Lidl apostou no lançamento de uma Fan Collection, com mais artigos do que apenas os ténis, incluindo meias, chinelos e T-shirts”, explicam à NiT os responsáveis da cadeia.
Chegados a 2020, num ano marcado por uma pandemia, um eterno confinamento e idas fugazes às lojas e restaurantes, a coleção que começou por brincadeira levou milhares de pessoas a enfileirarem-se à porta dos supermercados um pouco por toda a Europa.
Com uma espécie de golpe de magia (ou será de marketing?), a cadeia tornou-se também num símbolo de moda. Esse título, ainda que contestado por muitos, não ofusca o facto de que em qualquer espaço, da Alemanha a Portugal, tenha sido autenticamente varrido por clientes à procura de agarrarem a sua própria peça.
Desta vez, os bens cobiçados não eram peluches ou brinquedos para os miúdos. Agora era mesmo uma questão de adultos e, claro, a coisa ficou séria. Tão séria que o fenómeno deu origem a uma nova onda de especulação nos mercados digitais de revenda e de leilões, com os preços a atingirem valores exorbitantes. Houve até quem tentasse vender um par de sapatilhas por um valor 100 vezes superior ao que o Lidl colocou na etiqueta.
O fenómeno que atacou a Europa no verão chegou a Portugal esta segunda-feira, 30 de novembro, e o resultado não foi diferente daquele a que se assistiu noutros países. “A coleção foi um fenómeno em todos os países onde o Lidl está presente e que receberam a coleção primeiro que o Lidl Portugal. No nosso caso, antecipámos que pudesse ter o mesmo sucesso”, revelam,
Apesar de não haver registo de uma caça desenfreada pelos corredores das lojas, as peças rapidamente foram desaparecendo, apenas para caírem ou nos pés de dezenas de influenciadores, ou nos motores de busca de mercados digitais a preços pornográficos.
A loucura do verão
Mesmo com o fantasma de uma pandemia recém-chegada à Europa, que trazia uma doença ainda misteriosa, centenas de finlandeses quiseram fazer fila às portas do seu Lidl mais próximo. Assim que o relógio chegou às oito e as portas abriram, quase todos se dirigiram à mesma prateleira para tentar agarrar um par das sapatilhas com as cores do Lidl.
“As prateleiras ficaram vazias em menos de 10 segundos”, contou um cliente ao jornal finlandês “Foreigner”. O cenário repetiu-se um pouco por todas as lojas no país.

Nessa semana de abril, seguiu-se a segunda vaga do fenómeno Lidl. Perante tanta procura, alguns perceberam que seria uma boa oportunidade para fazer negócio e decidiram revender as peças na Internet a preços bem acima do valor de compra.
Dois meses depois, foi a vez de alemães, belgas e holandeses largarem o medo à Covid-19 — e a um par de euros — para garantirem as roupas coloridas da marca. Os valores no mercado paralelo atingiram valores ainda mais absurdos. Chegou-se a pedir 1.500€ pelo par de sapatilhas que custou 12,99€ na Alemanha.
A 16 de novembro, a Lidl Fan Collection chegou a 660 lojas italianas da marca. A febre repetiu-se e o stock disponível desapareceu das lojas em poucas horas.
Em Inglaterra, chegou-se ao absurdo. Um comprador no eBay, certamente um dos que não foi capaz de chegar a tempo às prateleiras, deu mais de 3.300€ por um pack que incluía um par de sapatilhas e um par de meias. O preço original? Uns meros 19€.
O sucesso reflete também a inteligente campanha da marca nas redes sociais, que assentou muito na divulgação através de promoção dos produtos por influenciadores. Foi o caso Scott Gold, apaixonado por sapatilhas e consultor de marketing que ajudou na campanha finlandesa da marca, mostrou-se surpreendido com o sucesso.
Apesar do ceticismo, os modelos foram sendo distribuídos por figuras públicas e influenciadores, que foram partilhando as imagens. “A receção foi 50-50. Alguns gostaram mesmo das sapatilhas, enquanto outros acharam que se tratava apenas e uma piada.”
“Nunca imaginei que pudessem ter esta popularidade. O site não aguentou tantas encomendas e as pessoas foram para as lojas”, revelou em entrevista ao “Ilta-Sanomat”, ao qual sublinhou a preocupação pelo incumprimento das regras de distanciamento.
Mesmo durante a pandemia, já há casos de segundas vagas desta febre do Lidl. Apesar do lançamento inédito em França ter sido adiado por causa do confinamento — a chegada deveria ter acontecido a 14 de novembro —, na Bélgica anunciou-se novo stock, com venda apenas online. E é escusado dizermos o que aconteceu: esgotou em poucas horas. Desta vez sem filas ou atropelos.
A coleção
Quando a pequena cadeia de supermercados foi criada em 1930, poucos esperariam que quase 100 anos depois, teria mais de dez mil lojas em todo o mundo. E muito menos que se faria sucesso com uma linha de streetwear inspirada no seu logótipo.
Chamaram-lhe Lidl Fan Collection e era um dos destaques do mais recente catálogo do supermercado. Lá dentro, opções para vestir a marca da cabeça aos pés. Além das já famosas sapatilhas que custam 14,99€ — de sola alta branca, com pormenores em rede, e que espelham as cores do logótipo do Lidl num look semelhante ao das Nike Huarache —, havia também dois modelos de meias.

De desenho desportivo, brancas, uma exibia o logótipo original, enquanto a outra apostava na hashtag que dá nome à coleção. Cada pack custa 3,99€. Para os pés, outro sucesso: duas versões de chinelos de banho, uma mais colorida, outra a preto e branco. Ambas vendidas por 4,99€.
Por fim, as t-shirts, em versão feminina — uma branca e outra rosa — e masculina — em versões branca e preta. Na etiqueta, o preço de 4,99€. Apesar de apostar em apenas quatro peças, a coleção garante que pode vestir-se completamente à Lidl por apenas 34€.
A chegada a Portugal
O tradicional folheto anunciava com pompa a chegada da coleção a Portugal esta segunda-feira, 30 de novembro. E apesar de não terem sido registados acessos de loucura e de correrias pelos corredores das 245 lojas espalhadas pelo país, a verdade é que o amarelo, o azul e o vermelho do logótipo rapidamente inundaram as redes sociais.
Entre as mais procuradas, as sapatilhas e as meias. E embora nem todos os produtos tenham esgotado — a marca garante à NiT que ainda há produtos disponíveis em algumas das suas lojas —, a verdade é que o frenesim correspondeu às expetativas da marca que, mesmo em dias de horário reduzido das lojas, registaram uma “venda acima da média em apenas dois dias”.
Primeiro, chegaram os influenciadores. Depois, as figuras públicas. Por fim, os comum mortais. Todos eles equipados a rigor, de meia branca com o quadrado do logo, umas a acompanharem os chinelos de praia, outros as sapatilhas da moda.
Se os outros fazem, Portugal não se fica atrás. Depois da corrida às peças, elas rapidamente foram parar ao eBay e OLX. Há até quem ouse pedir mil euros pelo par de sapatilhas que custam apenas 14,99€. Outros, menos otimistas, ficaram-se por valores entre os 150€ e os 500€.

Pelo caminho, comentários de aguçada ironia e muitos, mesmo muitos memes. As sapatilhas coloridas foram parar aos pés de Sharon Stone na famosa cena de “Instinto Fatal”, enquanto os chinelos confortavam os cansados pés de António de Oliveira Salazar, sentado no seu sofá. Pelo meio, uma a rainha de Inglaterra à espera da abertura do Lidl.
O aspeto mais peculiar de todo o fenómeno não está sequer no sucesso que faz entre clientes habituais e casuais. É que as já famosas campanhas de peluches e de miniaturas que cativam os miúdos que arrastam os pais para os corredores das lojas da marca alemã, fazem um inquebrável par com as promoções que todas as semanas preenchem os folhetos.
E para quem está à espera de mais peças da Fan Collection já no próximo folheto, infelizmente vai ter que esperar. O Lidl não se compromete com novos lançamentos e reedições, embora garanta que está atento “às novas tendências” e “à adesão por parte dos clientes”. Ou seja: o regresso está a ser “analisado”.