“O que me interessa não é só a moda.” No universo do português David Motta, que trabalha como stylist, designer de figurinos e produtor, tudo conta uma história. Da roupa à maquilhagem, todos os projetos criativos em que se envolve, seja a vestir alguém ou a criar um editorial fotográfico, têm uma razão e uma narrativa por trás. Uma abordagem holística respeitada e reconhecida que se traduz em inúmeras colaborações com algumas das revistas mais lidas no mundo.
Apesar de não se guiar por convenções — nos seus trabalhos ou no seu visual pessoal — não se considera excêntrico. Em vez disso, o criativo de 36 anos descreve-se como autêntico porque “já sendo condicionados, à nascença, por coisas como o nosso País, família ou estatuto social, todos devíamos ter um momento para perceber quem somos”.
“Sinto-me fluído, genuíno e livre. Construir a forma como me visto é um hobby e uma ideia que aplico quando visto outras pessoas”, conta à NiT. “Os camaleões não escolhem mudar de cor, os leões não escolhem ter jubas, mas nós podemos definir as proporções da roupa que usamos e que cor damos ao cabelo.”
Cresceu em Lisboa, no seio de uma família “com uma mente aberta” e com quem viajava bastante. Cedo percebeu que existiam pessoas que comiam de forma diferente, usavam roupas diferentes e seguiam horários diferentes dos seus. Apesar de ter estudado em colégios católicos, sabia que a diversidade existia e era válida.
“Com 8 anos já tinha liberdade suficiente para brincar com Barbies ou cortar os vestidos da minha mãe. Nunca me senti castrado. Levava uma mala da Branca de Neve para a escola e sofria as consequências da minha escolha, mas em casa tinha uma base sólida. Foi um processo.”
Quando foi viver para Londres, em 2009, descobriu um ambiente muito competitivo, mas propício para usar a individualidade como a sua maior arma. Caso contrário, explica, “não teria conseguido vingar em áreas que não são de tão fácil acesso. No entanto, antes de chegar ao Reino Unido, viveu outras aventuras no estrangeiro.

De Nova Iorque a Londres
Na sua breve passagem por Nova Iorque, onde se licenciou em Comunicação e Artes Plásticas, conseguiu o seu primeiro estágio na “Vogue” americana, uma publicação incontornável no mundo da moda. Trabalh na área das relações públicas com clientes como a Balenciaga ou a Proenza Schouler. Apesar do desejo de ficar no continente americano, foi obrigado a abandonar o caminho que havia traçado, devido a uma tragédia familiar. A mãe tinha sido condenada a 23 anos de prisão por ter mandado matar o marido, padrasto de David.
“Estive inativo durante dois anos. Na altura, ainda existiam poucos blogues, e eu comecei um para comunicar com o mundo e tinha bastantes leitores”, conta, sobre o site que a chamou “O Escarrador de David Motta”. “Saí de um dos centros do mundo e, de repente, estava fechado numa casa vazia. Foi uma catarse. O que criei, no fundo, era quase uma revista.”
Na altura, o reconhecimento ajudou-o a perceber que em Portugal seria complicado fazer aquilo para que tinha talento. Em conversa com amigos, foi incentivado a mudar-se para Londres e manteve-se na capital europeia entre 2009 e 2017, onde considera que desabrochou.
“Numa primeira festa que demos [em Londres], alguém decidiu trazer um plus one que, por coincidência, era uma fotógrafa portuguesa chamada Mafalda Travassos, com quem andei na escola e que estava na área da moda.” Começou a fazer trabalhos com ela, mas não eram pagos, então desenvolveu uma persona para trabalhar como DJ em bares mais underground.
Na noite, “conheci as pessoas certas nos sítios certos” e, entre fotógrafos e designers, começou a arranjar projetos de styling e abandonou a vida mais boémia. O seu primeiro trabalho, ironicamente tendo em conta a sua aparência andrógina, foi para a marca masculina Topman.

Desde então, acumularam-se colaborações com publicações como a “Elle”, a “Harper’s Bazaar” e a “Paper Magazine”, por exemplo: “Nunca me passou pela cabeça ter uma profissão em que ia buscar roupa a showrooms e designers”, diz. “Não me identifico com a palavra stylist, porque acho redutor. Faço mais direção criativa, escolho as localizações, os cabeleireiros e os maquilhadores.”
Nos vários trabalhos que fez, sempre encarou as moodboards como um problema — aliás, nunca as usa. “Não sei se é por ser filho de um historiador, mas tenho sempre uma história. Não visto uma manequim com determinada peça só porque é cara, de uma marca conhecida ou fica bem. Penso na mulher. Tem marido? É maluca? Rica ou pobre? Porque é que vestiu isto? Tenho de saber e desconstruir tudo, naturalmente.”
O dia em que conheceu Madonna
Em 2018, teve um dos momentos mais altos da sua carreira — e logo em Portugal. Participou na sessão fotográfica de Madonna para a edição de agosto da versão italiana da “Vogue”, onde o seu papel passou pela produção do editorial e não pelo styling — que, segundo o português, é sempre a própria a fazer. A sessão celebrou os 60 anos da artista norte-americana.
“As pessoas são escolhidas com pinças, porque têm de ter sensibilidade. Devido ao meu currículo com celebridades de outros países, fui convidado”, revela. “Chegaram muitas pessoas com carrinhos cheios de roupa para trabalharem naquela sessão fotográfica. O meu trabalho foi de consultoria.”
E não foi a primeira vez que se cruzou com a rainha da pop. Antes disso, teve um jantar com a cantora que surgiu através de ligações sociais: “Estava em Portugal e pensei que se existia alguém mal-assessorado, era a Madonna. Como temos amigos em comum, falei com uma pessoa que me perguntou o que podia oferecer. Um dia, recebi o convite.”
Nesta conversa, que aconteceu um ano e meio antes, deu-lhe a conhecer o trabalho de alguns artistas portugueses e a conversa passou por uma troca de ideias criativas. “Teve numa dimensão mais profissional do que humana”, acrescenta. “Ela é uma pessoa tenaz, sabe o que faz e como faz. E sempre soube tirar o melhor das pessoas.”
Tomou a decisão de regressar Portugal quando percebeu o número de vezes que vinha cá. “Houve um ano em que fiz 26 viagens e achei que era melhor mudar-me.” De forma orgânica, numa fase em que estava mais cansado, começou a sentir um chamamento. “A pessoa que eu era na rua já não era um problema tão grande, o País tinha mudado.”
“Londres tornou-se uma cidade demasiado capitalista. Antes ainda havia uma cultura onde as pessoas podiam desenvolver a sua identidade, mas hoje está tudo muito gentrificado.” Trocou as ruas britânicas por um estúdio que inaugurou há dois anos, no Príncipe Real, onde está rodeado de peças originais e de cores, começando pelas paredes rosa.
David explica: “Transformei o espaço como me transformo a mim mesmo quando me visto. A decoração de interiores é uma paixão, porque a mudança deve ser a maior constante na minha vida e vivo-a com muita naturalidade. Mudei muitas vezes de país, de casa e de trabalho.”
Em Lisboa, continua a inspirar-se nos mundos da literatura, da música e da arte. Apenas se recusa a referenciar moda com moda nos seus trabalhos criativos, algo que considera redundante. O spot no Príncipe Real tornou-se uma extensão da sua personalidade e não faltam iniciativas. Em janeiro, o artista Patrick Chuch vai pintar um mural ao vivo e trazer a sua nova coleção para o estúdio multidisciplinar.
“A ideia de sucesso é subjetiva e sinto que a minha vida está sempre prestes a começar. Não é bom viver das glórias do passado”, conclui. “Deposito a mesma energia, seja num projeto pequeno em Portugal ou numa produção internacional. Considero-me uma pessoa bem-sucedida. Vivo bem resolvido com quem sou.”
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