“Não era o que os meus pais queriam que fosse.” Antes de se reconhecer como uma menina transgénero, aos 13 anos, a relação de Ivvi Româo com os progenitores já era conturbada. Por um lado, não olhavam com bons olhos para a feminilidade que expressava desde cedo. Ao mesmo tempo, também desaprovavam o seu interesse pelo mundo das artes — em vez de manifestar curiosidade pela medicina, como o pai (que é médico). Percebeu que ali, no nordeste brasileiro, não podia viver da forma como queria.
Aos 14 ganhou uma bolsa de estudos numa das maiores instituições de dança no mundo, a Escola de Teatro Bolshoi, no estado de Santa Catarina. Saiu de casa e rumou ao sul do Brasil, atrás dos sonhos — e à procura da liberdade que não tinha em Maceió, a cidade onde nasceu.
“Quando se tem vontade, tudo é possível. Fiz das tripas, coração”, conta à NiT. Viveu em casa de uma amiga e, para pagar as despesas, aceitava todos os trabalhos que encontrava, a fazer cabelos e maquilhagens em eventos, a cuidar de crianças ou a trabalhar em restaurantes, onde limpava mesas e casas de banho.
Na altura, não imaginava que pudesse seguir uma carreira como modelo e somar campanhas internacionais. Porém, aos 24 anos, a jovem é um dos rostos da comunidade trans na moda em Portugal, onde vive desde 2017. Além da sobrevivência, a sua principal ambição era ser bailarina — mas o gosto pela roupa esteve sempre presente.
“A minha mãe era uma pessoa muito vaidosa e tornou-se uma musa para mim. Usava saias lápis, sapatos altos e peças muito elegantes”, diz. “Quando era pequena, gostava muito de desenhar, então rabiscava vestidos para lhe mostrar depois da escola.”
Desde a infância que se sentia incomodada quando era tratada no masculino. “Sempre fui diferente das pessoas à minha volta”, revela. E continua: “Quando comecei a entrar na puberdade, comecei a desesperar porque não gostava do meu corpo e não percebia o motivo. Mas ninguém falava sobre o que era ser uma pessoa gay, lésbica ou até mesmo transgénero”.
Encontrou refúgio na dança e começou a ser acompanhada por psicólogos e psiquiatras, que a ajudaram a entender a sua identidade de género.
A primeira oportunidade como modelo surgiu ainda no Brasil, quando concluiu o curso. O seu emprego principal era como bailarina clássica, mas trabalhava como assistente de produção de moda em paralelo. Um dia, uma estilista não tinha ninguém para desfilar e disse-lhe que precisava dela na passarela. Aceitou e o resultado superou as suas expetativas.
“Tinha 16 anos e era uma espécie de agente secreta. Ia para o trabalho e dançava como um menino para pagar as contas. Quando chegava a casa, com os meus amigos mais íntimos, já era a Ivvi. E tinha alguma estabilidade financeira para ir atrás dos meus sonhos fora do país.”
A chegada à Europa
A mudança para Portugal aconteceu por acidente. No final de 2017, mudou-se para Londres, no Reino Unido, onde arranjou um trabalho na companhia London Russian Ballet. Porém, percebeu que a dança destruía o seu corpo aos poucos e precisou de fazer uma pausa.
Decidiu viajar, passou uma temporada em França e, quando pensava voltar para casa, veio passar umas férias a Lisboa. Nesse ano, conheceu o amigo Rui Rocha, um dos maiores hairstylists em Portugal, que reconheceu a sua “beleza peculiar” e sugeriu que trabalhasse como modelo.
“Pensei ‘outra vez?’, mas não tinha nada a perder. Ele tirou algumas fotos minhas, mandou para uma agência e acabaram por me chamar para um casting. Em janeiro, já tinha representação nacional com um contrato de três anos”, recorda.
Ao mesmo tempo, devido à instabilidade da moda, inscreveu-se no Conservatório Nacional de Dança — e ganhou uma bolsa de estudo integral. A oportunidade deu-lhe a segurança para ficar por cá, onde se mantém até hoje.
O primeiro trabalho em Portugal, ainda enquanto manequim masculino, foi para a revista Dsection. A equipa convidou-a para um editorial sobre amor, em que precisavam de modelos que dançassem. Daí em diante começou a fazer cada vez mais castings. Aos poucos, começou a apresentar-se como Ivvi.
Entre a semana da moda de Madrid e produções para a “Vogue” portuguesa, confessa que nunca se sentiu desamparada. No entanto, a transição levou a que aparecessem muitas respostas negativas. De colegas a diretores de casting, ouvia comentários grotescos: “Diziam-me ‘nunca vais ser mulher’, ‘metes nojo’ e ‘a indústria da moda não é para ti’. Tinha que lutar contra uma maré”.
Nesta altura, a marca britânica Marques’Almeida, criada por dois portugueses, foi a primeira a reconhecer o seu potencial. Colocaram-na a desfilar no Porto e, a partir daí, conheceu um enorme boom em termos de visibilidade. Tanto em passarelas, como em anúncios.
“O desfile possibilidade encarar outras facetas de mim e formas que nunca me imaginei com outros cabelos e outra imagem. Já as campanhas permitem-me a criação de uma personagem e amo fazer isso. Se não me der prazer não faço.”
“Acham que têm o direito de me tocar”
Quando assumiu definitivamente a sua identidade de género passou a enfrentar uma nova realidade nos bastidores. Passaram a existir olhares “desnecessários”, comentários invasivos e situações de assédio. “O corpo feminino sempre foi sexualizado. Mas como sou uma mulher trans, parte dessa sexualização está associada ao fetiche. Muitos acham que têm o direito de tocar no meu corpo”, revela.
“As mudas de roupa entre desfiles têm de ser muito rápidas e precisamos de assistentes para cumprir os tempos. Sabemos distinguir quando um toque não é uma ajuda. Não preciso que me coloquem a mão nas cuecas ou que me apalpem os seios para me poder vestir. Ou até que fiquem a espreitar pela cortina para me ver.”
Estas experiências negativas fizeram com que se tornasse ativista militante, também pela necessidade de se ver representada. Enquanto mulher trans, negra e imigrante, percebeu que o seu corpo “não existe na sociedade” e passou assumir um papel mais ativo nas redes sociais contra esta realidade. Denuncia outros casos de assédio e dar a conhecer histórias de pessoas trans.
Internacionalmente, as experiências profissionais são menos negativas. É o caso da marca Nuxe Paris, uma oportunidade que surgiu quando estava no evento de lançamento de um creme, no final de 2022. “Olharam, disseram ‘és tão bonita e sabes expressar-te’ e quiseram trabalhar comigo numa campanha digital. Queriam-me como eu sou.”
Em maio, fez ainda parte do desfile surpresa de Cata Vassalo, Utopia, que se tornou mediático por juntar profissionais, celebridades e influencers. Nesse dia, Ivvi recebeu inúmeras mensagens de adolescentes, de locais recônditos no interior do País, que confessaram ver uma inspiração na modelo. Sentiram-se representadas.
Seja na moda, no teatro ou na publicidade, os seus objetivos passam por continuar a mostrar às pessoas “que é possível sonhar” e, sobretudo “continuar viva”. Em relação o futuro quer apenas “aceitar oportunidades nas quais sinta prazer”.
Para acompanhar o trabalho de Ivvi Româo, pode seguir a página de Instagram. Carregue na galeria para ver algumas imagens dos seus trabalhos.