Era noite de São João, em 2012, quando António Soares recebeu o email que deu uma reviravolta na sua vida. Estava perante um “daqueles clientes que me davam borboletas na barriga”, explica o artista. O convite vinha diretamente de Hong Kong. A gigante da moda multimarca Joyce queria que ele ilustrasse coordenados para oferecer a clientes VIP.
“Queriam um trabalho virado para criadores de vanguarda. Só me apresentaram o briefing e não fiz perguntas”, acrescenta. Apesar do prazo apertado, tinha o pedido pronto em menos de uma semana — e já se acumulavam outras oportunidades internacionais nas suas mensagens.
Aos 50 anos, António é um dos principais ilustradores de moda portugueses, com um vasto currículo que inclui trabalhos para marcas como Karl Lagerfeld, Chanel, Fendi ou Dolce & Gabbana. Os seus esboços chegaram a publicações como a “Vogue”, “Marie Claire” ou “The Guardian”.
“Trabalhava tanto para cumprir os prazos. Muitas vezes não comia e ficava a trabalhar à noite”, acrescenta. Quando foi contactado pela revista “The New Yorker”, por exemplo, tinha menos de 48 horas para enviar vários sketches. “Era sexta-feira, estava numa festa e tinha que entregar tudo no domingo. Mas disse-lhes que fazia.” E fez, claro.
“Entrei num mundo novo”
Muito antes da moda, surgiu a paixão pelo desenho. António começou a usar os lápis de carvão para se expressar desde muito cedo. “Era um incentivo na minha aprendizagem em miúdo, porque podia fazer o que me apetecia. Não havia regras”, recorda.
O ritual manteve-se até se formar em Pintura, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, em 1999. Não distinguia tecidos cortes ou termos técnicos do vestuário — só queria criar arte. Mais tarde, percebeu que “a ilustração conta uma história alternativa da moda”, como afirmou o ilustrador David Dowton, à “Vogue” britânica, em 2010.
“Gostava de roupa como consumidor, via montras e folheava revistas. Lembro-me que havia uma loja perto do sítio onde dava aulas. Pertencia a uma senhoria que vendia designers portugueses. A partir da curiosidade, entrei num mundo novo. Já não era só o mainstream.”
Foi “por vias travessas” que fez da moda parte da sua profissão. Em 2004, recebeu um convite para dar aulas no Citex — a atual Modatex, em Lisboa —, onde lecionou durante uma década. Pelas mãos, passaram-lhe alunos como a dupla por trás da marca Marques’Almeida — Marta Marques e Paulo Almeida —, que entretanto se tornou conhecida nternacionalmente.
“Reparei que havia pouca ilustração de moda em Portugal. Então, passei a trabalhar para mim e a ver os desfiles”, recorda. A Internet fez o resto do trabalho. Começou a postar o seu desenhos nas redes sociais e, após uma exposição na Ó! Galería, no Porto, o seu trabalho chegou a vários criadores.
Da ModaLisboa às gigantes internacionais
Uma proposta de Nuno Baltazar marcou a sua estreia com um estilista português. “Respeitou-me imenso. Não posso dizer que tinha uma assinatura”, explica, mas manteve os traços que o distinguiam. A mancha e a figuração lançaram o mote para a coleção de primavera-verão de 2011 do designer, intitulada “Dido&Aeneas”, que desfilou na ModaLisboa.
“Comecei a ver mais o spam do email. Mandava propostas, pesquisava no Google e via contactos nas revistas. A maioria não respondia”. Ainda não havia um mercado em Portugal nesta área, pelo que teve de vingar no estrangeiro. E conseguiu.
Graças à visibilidade do trabalho para a Joyce, abriram-se várias portas. Quando deu por isso, estava a ilustrar um lookbook inteiro para Karl Lagerfeld e ainda preparou o lançamento de uma coleção de joias. “Fazia tudo à distância. Era um projeto muito grande, mas não trabalhava com ele.”
“Perdi um pouco o controlo. Os fusos horários eram completamente diferentes, então saía do atelier às 21 horas de uma sexta-feira e recebia e-mails para entregar a um domingo. Começou a stressar-me, mas dava-me alento.”
Antes da entrega, assinava sempre contratos de sigilo. É por isso que, “com muita pena”, não pode acrescentar ao portefólio projetos importantes que criou ao longo da sua carreira. Alguns destes clientes só queriam uma ideia para apresentarem em reunião, outros pediam uma coleção completa.
O briefing incluía paletas de cores ou as silhuetas. A partir daí, tinha que imaginar a mulher no ambiente em que estava inserida. Sentia que a sua inspiração era muitas vezes castrada, mas “mandava tudo”. Chegava a criar 10 ilustrações e só uma era aceite.
António procurava inspiração em bancos de imagens e enchia pastas com referências, mas as ideias já estavam todas na sua cabeça. É fã confesso do papel, de agarrar nas aguarelas e ter o original na mão — o computador “é apenas um ecrã”.
Aos poucos, adaptou-se. “Sempre gostei de trabalhar a cabeça e não tanto a roupa. Era muito importante no meu trabalho e chamavam-me à atenção para isso”. Mudou o seu processo ilustrativo para os primeiros lookbooks, por exemplo, porque não fazia ilustrações da cabeça aos pés.
“Tive que encaixar mais na ideia de catálogo de moda comercial. Não era um trabalho criativo, mas deixavam-me dar o meu input. Às vezes, fugia um pouco da ideia inicial e o cliente até gostava do resultado”, explica.
O seu nome viajou o mundo, mas António manteve-se em Portugal. Chegou a ser convidado para assistir a desfiles nas grandes capitais europeias, mas optou por ficar. E não se arrepende. “Não sou um deslumbrado. Sempre gostei de estar atrás, no backstage. É lá que se sente a narrativa toda do desfile a acontecer.”
É a partir do seu atelier, em Lisboa, que trabalha cada vez mais com clientes portugueses. Continua ligado ao ramo dos acessórios — sempre trabalhou com sapatos —, e prepara uma exposição em nome próprio que vai apresentar no Museu do Calçado, no próximo ano.
O objetivo de António é trabalhar cada vez mais a solo — um objetivo que tem desde o início da sua carreira, para continuar a criar assim o seu legado. “Agradeço às redes sociais, mas aparecemos e desaparecemos em menos de dez dias. E já senti mais essa pressão”.
Carregue na galeria para ver algumas das ilustrações de moda que fazem parte do portefólio de António Soares.