A vida de Guccio Gucci é uma espécie de conto de fadas. A história de um homem humilde que graças à sua visão oportuna transformou uma pequena empresa de malas de viagem num império da moda. Num século, os Gucci viveram de tudo: da ascensão a família milionária a guerras fratricidas e até homicídio. O último escândalo acaba de rebentar e promete reforçar ainda mais a maldição dos Gucci.
A 8 de agosto, a bisneta do fundador acusou o padrasto Joseph Ruffalo de abusos sexuais quando era menor. Na queixa, aponta ainda o dedo à mãe, Patricia Gucci, e a avó, Bruna Palombo (mulher de Aldo Gucci), por terem sido cúmplices das violações — e por terem tentado encobrir os crimes.
Atualmente, a família Gucci está completamente afastada da marca, muito graças aos conflitos e desentendimentos entre a terceira geração da família. A ambição desmedida lançou o caos na empresa, que acabou por ter que ser vendida a investidores. O desmembramento teve início nos anos 80 e na década seguinte, o único vestígio que restava da família de Florença era o nome.
O sonho de Guccio Gucci começou a formar-se no início do século XX, quando ainda trabalhava como bagageiro em Londres. Foi aí que percebeu a importância das malas de viagem como símbolo de estatuto das elites. No regresso, trouxe consigo a ideia de produzir malas da melhor qualidade. Na pequena loja aberta em 1904 na Via della Vigna Nuova, vendiam-se todos os produtos de pele: de selas a botas de equitação.
O negócio prosperou, a marca ganhou fama nacional e expandiu-se até à capital. Com toda a família envolvida na marca, Guccio decidiu dar mais responsabilidade aos três filhos durante a década de 40, com quem partilhou as ações.
O fundador morreu em 1953 e Aldo Gucci despontou como o grande visionário. Foi ele o responsável pela expansão para as grandes capitais mundiais, o que ajudou a internacionalizar a marca. Quando Vasco morreu sem herdeiros, a empresa ficou então a cargo de Aldo — que partilhou as ações com os três filhos — e de Rodolfo.
Os negócios corriam bem, a marca era mundialmente famosa entre a elite e e as estrelas, tal como Guccio sonhara. Mas algo estava prestes a correr muito mal.
A queda da família
A Gucci entrava na década de 80 com tudo para ser bem-sucedida. Era a oportunidade perfeita para a entrada em cena da terceira geração, que deveria elevar a marca para outros patamares ou, no pior dos cenários, não arruinar todo o trabalho feito até então.
Paolo Gucci, filho de Aldo, era o mais ambicioso. Nome forte da presença da Gucci nos Estados Unidos, sonhava criar a sua própria coleção de roupa sob o nome de família. Rejeitado pelo pai e pelo tio, avançou à mesma, provocando conflitos legais que irritaram o pai. O confronto terminou mal e acabou despedido.
“Queria expandir, trazer mais investidores e fazer com que o negócio seguisse linhas mais modernas, mas os Gucci têm um conceito medieval de negócio. Foi por isso que me tornei na ovelha negra”, revelou Paolo em 1982.
O conflito tornou-se ainda mais azedo quando, em forma de vingança, Paolo denunciou o próprio pai às autoridades por fuga fiscal. Aldo acabaria mais tarde por ser condenado a um ano de prisão.
Em 1983, a morte de Rodolfo e a entrada em cena dos seus filhos também atirou mais gasolina para o fogo que já ardia a bom ritmo. Maurizio, um dos filhos que herdou 50 por cento da empresa, entrou numa disputa pelo poder com Aldo e os primos, que o acusaram de falsificar uma assinatura do pai para fugir ao pagamento do imposto de herança.
Maurizio e Paolo eram os netos ambiciosos do fundador e, à revelia da família, juntaram esforços para tomar o controlo do negócio. E também este plano saiu frustrado. Dentro de pouco tempo, os primos viraram-se um contra o outro. Maurizio acabou por ter que fugir, acusado de fuga ao fisco. O denunciante? O mesmo de sempre: Paolo Gucci.
O velho ditado por pouco não se cumpriu e a terceira geração quase arruinou a célebre marca de moda. As roupas de Paolo foram um fracasso. Maurizio foi responsabilizado pelo desastre financeiro que atirou a empresa para uma dívida profunda em 1991. Dois anos depois, acabaria por ser vendida a investidores. Mas a história incrível dos Gucci não terminava aqui.
O último dos Gucci
Maurizio foi o derradeiro membro da família a deter o poder no negócio. A sua vida pessoal também passava por um tumulto. Havia casado em 1973 com Patrizia Reggiani, filha de um rico empresário da área dos transportes — que se tornou conhecida por ‘Liz Taylor das grandes marcas’ e por ‘Lady Gucci’, famosa pelos seus looks extravagantes e papel relevante na gestão da marca. A relação com Maurizio Gucci ajudou-a a entrar no círculo dos poderosos. Duas filhas depois, o casal desentendeu-se e divorciou-se em 1991.
Quatro anos mais tarde, numa manha aparentemente normal, Maurizio aproximava-se da entrada do luxuoso edifício na baixa de Milão onde tinha o seu escritório, quando um homem o abordou. Do casaco saiu um revólver que disparou três vezes e o atingiu nas costas. Caído na escadaria, o assassino disparou um quarto tiro que o atingiu na cabeça.
Giuseppe Onorato, o porteiro, acudiu-o, quando viu a arma apontada na sua direção. Seguiram-se dois disparos que, felizmente, apenas o atingiram no braço. “Estava a segurar a cabeça do Senhor Gucci. Ele morreu nos meus braços”, revelou em 2016 ao “The Guardian”.
A morte do herdeiro de 46 anos escandalizou Milão, uma cidade pouco habituada a cenas dignas de filmes de mafiosos. O turbulento divórcio com Patrizia tornaram-na a suspeita número um. O caso tornou-se uma verdadeira novela italiana.
A ex-mulher ganhou a alcunha de Viúva Negra e foi acusada pela opinião pública de tudo. O crime, apontavam, teve origem nos ciúmes que tinha da então atual namorada de Maurizio; o sentimento de exclusão do círculo afamado dos Gucci. Sem provas para qualquer tipo de acusação, o crime ficou por resolver, pelo menos até 1997.
A morte, contudo, veio mesmo a tempo para Patrizia. Maurizio preparava-se para casar com Paola Franchi, que assim se viu despejada da casa onde vivia com o ex-companheiro. As duas filhas herdaram a fortuna. A mãe acabou por se manter no luxuoso apartamento da Corso Venezia.
Dois anos depois, o caso é deslindado. Um dos assassinos gabou-se de ter participado no crime e a testemunha denunciou-o às autoridades. Foi necessária uma operação policial para conseguir apanhar os cúmplices a comentarem o assassinato via telefone — e foi bem-sucedida.
O homicídio teria mesmo sido encomendado por Patrizia Reggiani, que contou com a ajuda de uma amiga, num esquema que envolveu mais uma mulher, o assassino e o condutor.
A partir daqui, as provas sucederam-se. Reggiani acabou por admitir ter pago mais de 200 mil euros à amiga, embora tenha negado que se destinassem a pagar o homicídio de Maurizio. Seria, segundo a própria, para pagar a extorsão de que estava a ser alvo: a sua amiga encomendou a morte e exigiu o pagamento, caso contrário iria incriminá-la. Ninguém acreditou. Nem Patrizia, que na mesma sessão disse que a morte “valeu cada lira” que foi gasta.
Num dos diários da ex-mulher, resgatados do apartamento pela polícia, a data da morte de Maurizio tinha apenas uma palavra escrita: “paradeisos”, a palavra grega para paraíso.
As sessões no tribunal revelaram um outro lado tenebroso: Patrizia terá mesmo pressionado os cúmplices a levarem a cabo o assassinato antes que Maurizio pudesse casar; foram ouvidas gravações enviadas a Maurizio, nas quais a ex-mulher o insultava e ameaçava: “O teu inferno está para chegar”.
Reggiani acabou condenada em 1998, sentenciada a 29 anos de prisão, mais tarde reduzida para 26. Ao fim de 13 anos e uma tentativa de suicídio frustrada, teve a possibilidade de sair em liberdade condicional que, entre várias condições, exigia que arranjasse um emprego. Recusou. “Nunca trabalhei um dia na minha vida. Não é agora que vou começar”, terá dito ao advogado.
Haveria de sair em 2016, cumpridos apenas 18 anos de pena. Pouco tempo depois da libertação, foi apanhada na rua pela imprensa, que não perdeu a oportunidade de a confrontar. “Porque é que contratou um assassino para matar Maurizio Gucci? Porque é que não foi mesmo você a matá-lo?”, perguntaram. “A minha visão não é lá grande coisa. Não queria falhar a oportunidade”, respondeu em tom jocoso.
A história trágica deverá mesmo ser adaptada ao cinema, numa produção que deverá ser realizada por Ridley Scott e terá Lady Gaga no papel de Patrizia Reggiani. Embora por confirmar, as últimas informações da imprensa revelam que a MGM estará em conversações com Adam Driver, Jared Leto e Al Pacino para integrarem o elenco.
A maldição sem fim
Parece uma árvore de família com poucos ramos felizes. Qualquer que seja o percurso que se trace a partir de Guccio Gucci, as tragédias surgem sempre pelo caminho. Alexandra Zarini é apenas mais uma vítima.
Aos 35 anos, decidiu denunciar finalmente os abusos sexuais de que foi vítima e que terão começado logo aos seis. Neta de Aldo Gucci e prima direta de Maurizio, Alexandra revelou que as violações terminaram apenas aos 22 anos.
Na queixa entregue ao tribunal, não só explica como o padrasto se deitava ao seu lado completamente nu, explica também que durante anos, a mãe não só impulsionava os abusos como permitia que Ruffalo a filmasse no banho. Admitiu também ser vítima de agressões por parte de Patricia Gucci — tudo para que ela não ousasse denunciar o que acontecia em casa.
A mãe de Zarini, neta do fundador, revelou entretanto que avançou para o divórcio assim que soube dos abusos, ainda em 2007. “Estou igualmente devastada pelas alegações contra mim e a sua avó, que são completamente falsas”, explicou em comunicado.
As descrições de Alexandra Zarini incluem também momentos em que terá sido estrangulada pela mãe. Nesses momentos, o padrasto aparecia como salvador — uma forma, diz a vítima, de criar uma figura de pai protetor que depois usava para praticar as violações.
Questionada aos 16 anos pela avó, sobre se estaria a ser abusada, Zarini confirmou. “Mantém tudo em segredo e não digas nada a ninguém”, terá dito Palombo. Durante os anos que se seguiram, a herdeira de Gucci terá também sido forçada a tomar drogas
A família, revela a queixa, “tento evitar, a qualquer custo, aquilo que entendiam que seria um escândalo que poderia manchar o nome Gucci e potencialmente custar-lhes muitos milhões”. Zarini confesa que está a contar que tentem agora atacar a sua credibilidade e o seu caráter — e recorda um episódio que aconteceu quando tinha 20 anos e ameaçou tornar pública a sua situação. Perante a ameaça, Patricia Gucci terá mesmo perdido a paciência: “A vergonha da família, o escândalo (…) Vais ser julgada, interrogada. Não vais arranjar emprego, vais lidar com o estigma. Vais arruinar a tua reputação. E também estavas drogada, ninguém vai acreditar em ti”.