Teatro e exposições

Gregório Duvivier: “Eu era uma criança quase autista”

Apesar de até ter três irmãos, não brincava com os miúdos da sua idade. Foi por isso que começou a fazer teatro, aos dez anos. Aos 30, é uma das caras principais do Porta dos Fundos e está em Portugal com um monólogo, “Uma Noite na Lua”.

Ainda nem sabia escrever e já enchia folhas e folhas de rabiscos, imaginando que eram frases e textos. Quando aprendeu as primeiras palavras, vieram as histórias, depois a poesia. Apesar de ter três irmãos, Gregório Duvivier vivia num mundo só dele e pouco interagia com outros miúdos.
Foi por isso que os pais o inscreveram no teatro e assim que ele ouviu a primeira gargalhada do público, o ator brasileiro soube que era isso que queria fazer durante toda a sua vida.

Duvivier, um dos criadores do coletivo Porta dos Fundos — que todas as semanas publica sketchs humorísticos na Internet — está em Portugal desde 13 de maio para apresentar um monólogo, “Uma Noite na Lua”, que de 18 a 22 vai estar no Teatro Tivoli, em Lisboa, e segue para o resto do País até 5 de junho. Ainda assim, ele quer ficar, pelo menos, até dia 8 para passear. “Vou ver se consigo esticar e ficar cá um mês”, explica à NiT.

Desde a infância até à crise no Brasil, que classifica como um “golpe machista e fascista da elite branca brasileira”, passando pelas críticas que tem recebido do público por causa do financiamento do governo aos projetos do seu grupo, Gregório Duvivier falou de tudo, até dos projetos que gostava de desenvolver com nomes portugueses como Ricardo Araújo Pereira ou Bruno Nogueira.

Em apenas um minuto, fez também um resumo de toda a crise que se está a viver no Brasil. Veja o vídeo e leia a entrevista completa.

“Uma Noite na Lua” fala de um autor angustiado com a obrigatoriedade de criar. Em que é que se revê nesta personagem?
Eu revejo-me nesta personagem a toda a hora. É a história de um ser humano que está angustiado porque a mulher o abandonou e ele vê-se obrigado a escrever um espetáculo da noite para o dia. O espectador vai acompanhar este thriller, as horas deste sujeito que tem de escrever o espetáculo. Onde é que nasce uma ideia é a grande pergunta da peça. É dentro da cabeça de um ser humano que ela se passa, com todas as desventuras amorosas e angústias existenciais. Este espetáculo é sobre todo esse caos que é a nossa cabeça.

Tem algum método ou rotina para escrever?
Ao contrário da personagem, eu não escrevo de madrugada. Eu prefiro a manhã mas na verdade escrevo quando tenho de escrever. Às vezes, se estiver a correr, escrevo no aeroporto ou onde dá mas de manhã as ideias estão mais frescas. À noite tudo é mais árduo, parece que a cabeça se cansou de pensar.

Já publicou vários livros de poesia e tem de escrever humor todas as semanas. O processo é muito diferente?
Para mim é muito oposto. Nenhum é mais fácil mas, no texto humorístico, eu estou constantemente a falar, imagino uma pessoa a dizer aquilo. A escrita humorística está mais diretamente ligada à fala. A poesia é mais visual, penso na mancha que aquilo vai fazer na página. O humor, para mim, é um fenómeno mais sonoro. Os dois partem de um deslumbramento, de uma surpresa ou da revelação de alguma cosia, uma epifania. Um bom poema, uma boa piada, tira-nos um pouco do chão. Aquilo que achávamos que era verdade, por uns momentos deixa de ser, por vezes para sempre.

Também tem uma crónica no jornal “Folha de S-ao Paulo”. Já chegou ao momento de ter de a entregar mas não ter nada escrito?
Às vezes é muito árduo escrever uma coluna, eu tenho de mandar todas as semanas e tenho também três sketchs para o “Porta dos Fundos”. Todas as semanas eu tenho uma espécie de crise, olho para a folha em branco. Eu já tenho muitas técnicas, essa é a vantagem. Com o tempo vamos domesticando a criatividade com um chicote e ela vai obedecendo.

“O que se passa no Brasil é um golpe da elite branca brasileira que não sabe perder privilégios”

O que é que faz?
Sento-me e escrevo qualquer coisa. Qualquer página cheia de disparates é muito menos assustadora do que a página em branco. Para mim, o grande problema é o branco da página. Posso escrever qualquer coisa, um diálogo: “Oi, tudo bem? Oi, tudo, e você?” Temos aquela folha e, mesmo se depois nada daquilo for aproveitado, conseguimos lidar muito melhor com uma página escrita. Eu tenho algumas páginas com ideias soltas, gavetas virtuais, nas quais deixei qualquer asneirinha em que eu tenha pensado.

Em miúdo era muito tímido, foi por isso que começou a fazer teatro. Que memórias é que guarda dessa época?
Eu era uma criança quase autista, de tão tímida. Não lidava muito com as outras crianças, gostava muito de ler mas estava no meu mundo interior.

Ao mesmo tempo tinha três irmãos. Eram todos muito diferentes?
Muito. É engraçado, a família era toda trocada. A minha irmã gostava muito de jogar futebol, era maria-rapaz. O meu outro irmão tinha brincadeiras mais brutas. Eu gostava de ler.

Sentia-se sozinho nesse seu mundo?
Para mim bastava mas os meus pais ficavam muito preocupados, e com razão, por eu não ter uma relação com o resto do mundo. Puseram-me no teatro, onde eu aprendi a necessidade do outro. O teatro ensina-nos o prazer do contacto com o outro, o coletivo é maior do que o individual. Mesmo que seja um monólogo, há a experiência de interação com a plateia. O teatro é a arte da empatia, da comoção, em que pessoas viajam juntas num comboio imaginário. Puseram-me no teatro para isso, para eu me sentir comovido, para me comover com outras pessoas.

No início foi difícil para uma criança que vivia no seu mundo?
Foi difícil mas desde que eu provoquei a primeira risada… nunca me hei-de esquecer. O vício que a risada provoca é uma descarga de aprovação, não sei se é dopamina ou endorfina, é uma descarga hormonal de alegria e aceitação na sociedade. “Riram-se de mim?” Mesmo que se estejam a rir da nossa cara, do ridículo. Dá muito prazer produzir risadas.

Essa primeira gargalhada foi em que peça?
Eu acho que era um improviso porque o teatro onde eu estudei, o Tablado, é uma escola de improviso. Lembro-me de que as pessoas se riram quando eu entrei no palco. Já naquela altura, devia ter 10 anos, era muito baixinho e tinha uma voz aguda. As pessoas riram-se de mim e mesmo assim eu adorei aquilo.

Não se sentiu intimidado, funcionou como um impulso?
O riso foi o motivo para eu ter continuado. Essa aprovação, esse afeto. Claro que quando nos rimos de alguém, podemos rir de maneira superior, mas de modo geral o riso sincero é uma demonstração de carinho. Se pensarmos nas vezes que mais rimos na vida, foi com a família, um amigo ou o namorado. Essa descarga de afeto é muito viciante.

Lembra-se da primeira coisa que escreveu?
Eu escrevia antes de escrever. Mais do que atuar, escrever era um fetiche para mim. Tenho várias folhas que têm apenas rabiscos, parecem uns eletrocardiogramas, linhas e linhas, porque eu já achava lindo as pessoas que escreviam. Não eram letras, não eram nada. Só depois é que vieram as histórias, é que as palavras começaram a fazer sentido. Para mim sempre foi muito mágico, eu via os meus pais entretidos com livros e era aquilo que eu queria fazer.

Ainda guarda essas primeiras folhas?
Sim, guardo. Parece coisa de obsessivo, de maluco.

Imaginou-se a fazer outra coisa na vida?
Ainda imagino. Sempre que vejo alguém a fazer uma coisa, imagino-me a mim também a fazer aquilo. Até futebol, para o qual já nem tenho idade, me deixa a sonhar ser jogador. Eu queria ter trabalhado com várias coisas que a vida não me deu tempo para experimentar. Um taxista deve ter uma vida rica, interessante, em termos de histórias. Como eu escrevo desde novo e atuo também, a minha vida sempre foi contar histórias mas às vezes penso que vivi poucas.

Quando, no Porta dos Fundos, publicaram o primeiro vídeo no YouTube, ficaram obcecados com o número de visualizações? Estavam sempre a olhar para lá para ver se o número subia?
Sabíamos que podia ser um fracasso total mas, ao mesmo tempo, tínhamos muita expectativa porque ficámos uns seis meses a filmar. Um dia antes da estreia ligámos para todos os amigos a pedir ajuda, para partilharem nas páginas deles, pedíamos às pessoas que conhecíamos que tinham mais seguidores para divulgarem. Sem isso não teríamos começado tão bem.

Lembra-se do momento exato em que partilharam o vídeo?
Sim, eram 11 horas, estreamos sempre a essa hora. Estávamos sempre a refrescar a página e o YouTube demora a atualizar o número, às vezes fica parado nos 320 ou 315. Fomos almoçar, voltámos e do nada aquilo passou para os 100 mil. Em dois, três dias, o vídeo chegou a um milhão.

Se o lançamento do Porta dos Fundos falhasse, iam desistir?
Nós não tínhamos um plano B, ainda bem que não foi um fracasso. Nós apostámos muito forte mas também não tínhamos a pressão de não ter mais nada. O teatro sempre foi uma fonte de rendimento para mim. Para o Fábio [Porchat] também sempre foi uma segurança. Nunca parámos de estar no palco e acho que foi isso que nos salvou.

Agora, com a dimensão que têm, todos os dias devem receber vídeos de miúdos, possíveis humoristas, que querem trabalhar com vocês.
Sim, vídeos e ideias. Para o nosso email geral as pessoas mandam tudo: currículos, sugestões, reclamações. Mais do que mandar um currículo, mais vale fazer um vídeo amador. Nós não contratamos um ator pelo currículo e fazer um vídeo bom é a melhor maneira.

O elenco do Porta dos Fundos tem um grupo no WhatsApp onde fala todos os dias. Qual é a frequência com que gravam e se encontram?
Os atores gravam normalmente uma vez por semana porque raramente nos cruzamos todos mas, por exemplo, nas reuniões de guião, os sócios encontram-se todos para debater. Somos todos muito amigos e, sim, falamos a toda a hora.

O Porta dos Fundos tem recebido várias críticas acusando-vos de serem tendenciosos e de agora não poderem falar por terem recebido um incentivo monetário do governo de Dilma Rousseff. Qual é a sua resposta?
Hoje em dia existe uma criminalizarão de esquerda no Brasil, de modo geral, mas também da cultura, da democracia. Dizem que o problema todo no Brasil é que as pessoas não sabem votar, então têm de depor a presidente e nomear um presidente que não tem voto. As pessoas acham que todos os artistas recebem subsídios do governo e só porque falam bem desse governo. São duas mentiras deslavadas, até porque nós como grupo somos muito heterogéneos. O Fábio Porchat, o Kibe [Antonio Tabet], a maioria do Porta, na verdade, votou no Aécio Neves. Eles são do PSDB — não são filiados mas a favor de uma troca de governo. Dizer que somos petistas [do Partido dos Trabalhadores] é muita ignorância. Fizemos um filme em que aceitámos dinheiro dos incentivos fiscais porque no Brasil todos os filmes grandes aceitam, não temos indústria para fazê-lo sozinhos. Mas há mais: é um filme que vai dar retorno.

“Nunca discuti com ninguém na rua, não sou de guerras. Na Internet já discuti com umas 30 pessoas”

Os brasileiros criticam se não há incentivo mas depois também criticam se há?
Exatamente. As pessoas criminalizam o incentivo à cultura, que é 0,0001% do PIB e não dizem nada do incentivo à indústria automobilística, por exemplo, ou o incentivo aos bancos. Com o dinheiro com que se salva um banco, dava para construir um país cheio de teatros. É muita burrice achar que o artista é um inimigo ou que o rombo tem a ver com a cultura.

Numa entrevista de 2015 disse que nunca tinha sido agredido ou insultado na rua. Com tudo isto, as pessoas estão mais agressivas?
No Brasil as pessoas não acham que você tem uma ideologia diferente, elas acham que é um vendido, corrupto, mau caráter. Aqui mesmo, em Lisboa, uma pessoa disse: “Está aqui em Portugal com o meu dinheiro, é dinheiro do PT [Partido dos Trabalhadores].” Que dinheiro do PT? Eu vim fazer o meu espetáculo, não há nenhum tipo de financiamento, eu ganho dinheiro de bilheteira. Tive vontade mas nem respondi porque já estou treinado. As pessoas não sabem o mínimo, reproduzem o que lêem, é isso que dá aflição.

Já consegue fazer essa filtragem dos milhares de comentários que recebe online? Ou prefere nem sequer ler?
Por um lado, prefiro não ler porque é muito agressivo e não traz nada de bom. Ao contrário dos colegas, amigos, essas opiniões são pautadas pelo ódio ou pelo amor. Acho que nos dois casos é irrelevante, vai fazer mal. “Amo-te” é tão irrelevante como “odeio-te”. Se vamos à procura de aprovação, também temos o ódio e é uma porrada forte. Se não estivermos preocupados com esse tipo de reação, o ódio também não nos vai afetar.

As pessoas são mais agressivas escondidas atrás de um computador.
Eu nunca discuti com ninguém na rua, nem na escola, não sou de guerras. Na Internet já discuti com umas 30 pessoas. É o que acontece online, pessoas que nunca discutiriam, discutem. É como quando entramos no carro e discutimos com o condutor do lado, uma atitude que nunca teríamos a pé. As pessoas estão protegidas, blindadas, e na Internet é igual. Quando vemos, estamos transformados num monstro que não somos.

Está em Portugal desde o início de maio e vai estar fora do Brasil praticamente um mês. Tem receio do que vai encontrar quando regressar?
No Rio de Janeiro, eu embarquei com um país que tinha uma presidente democraticamente eleita. Quando saí do avião aqui, o país tinha deposto uma presidente sem nenhum crime provado e empossado um presidente, esse sim, criminoso e sem nenhuma aprovação popular. As primeiras medidas dele foram logo abolir o Ministério da Cultura, abolir a Controladora Geral da União, responsável por investigar a corrupção. Enfim, o país retrocedeu 30 anos numa noite. A democracia nasceu no Brasil em 1985, e na mesma altura o Ministério da Cultura. O facto de ele acabar agora é muito simbólico para mim, acaba também a democracia. Quando se depõe uma presidente sem julgamento, honesta, para substituí-la por um grupo de homens brancos, ricos, não tenho dúvidas de que é golpe. É um golpe machista e fascista da elite branca brasileira que não sabe perder privilégios.

Acha que tudo isto acontece com demasiada facilidade?
Quem precisa de militares quando tem a grande media golpista? Não são precisos tanques na rua, basta a classe média que vê televisão e que embarca em qualquer porcaria que veja. Vão todos para a rua sem militares, que beleza.

A curto prazo, qual é que acha que vai ser o futuro do Brasil?
Este governo, por ser ilegítimo e anti-popular, não vai demorar a cair. [Michel Temer] é um sujeito sem carisma, com ideias anti-democráticas. Ele vai cair e vão fazer-se eleições diretas, essa é a única solução. É mau na mesma, porque já tivemos eleições há dois anos e não foramrespeitadas. As probabilidades de se fazerem novamente eleições que não sejam respeitadas são grandes.

Em Portugal também vai fazer uma participação em “Refrigerantes e Canções de Amor”, um filme de Luís Galvão Teles, escrito por Nuno Markl. Já gravou as suas cenas?
Vou gravar na quarta-feira [18 de abril] mas ainda não sei bem o quê. Eu adorei a personagem, um tipo que trabalha num supermercado e adorei o argumento do Nuno Markl. Eu gosto deste estilo de comédia romântica.

Nos próximos dias vai estar cá uma das suas colegas do Porta dos Fundos, Thati Lopes, que participa no Musical do Rock in Rio. Ela contou à NiT que o Gregório já lhe falou dos pastéis de nata. Que outros sítios é que lhe vai mostrar?
Sim, falei-lhe da Manteigaria, o melhor sítio de todos. Eu adoro os miradouros desta cidade, que não paro de descobrir. Amo o Adamastor, este domingo teve um pôr-do-sol lindo, o de São Pedro de Alcântara, o da Graça. Assim que começamos a subir em Lisboa, sabemos que a qualquer momento vamos encontrar um miradouro deslumbrante.

Tem já outros projetos pensados com nomes portugueses?
Eu adoro os humoristas de cá. O pessoal do Commedia a la Carte é talentosíssimo, o Ricardo Araújo Pereira, o Bruno Nogueira. Tenho uma amiga que faz stand-up, a Catarina Matos. Há muita gente boa com quem trabalhar, com quem fazer um espetáculo. Eu queria.

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