Aos 54 anos, uma segunda puberdade. É assim que Maria João Vaz descreve esta espécie de êxtase tardio, como que uma compensação pela adolescência vivida a meio-gás. De repente, sente-se apaixonada pelas pequenas coisas que fascinam as miúdas adolescentes: as roupas, os filmes, as músicas.
Não foi por falta de aviso. Dizem-lhe que as hormonas podem ter este efeito de reeditar essa fase complicada no corpo de uma mulher quinquagenária. “Identifico-me com essas coisas de adolescentes, mas depois olho para o espelho e o corpo não é exatamente igual”, confessa à NiT, sem deixar de dar o remate final ao lamento que não o é: “Estou-me a cagar para isso. Sinto-me livre”.
Decidiu libertar-se das amarras do sexo masculino a 4 de agosto, uma espécie do seu muito particular dia da independência. Nesse dia, João Vaz — o homem que os portugueses conheciam como o protagonista do célebre anúncio da Telecel em 1995 — ficou para trás e deu lugar a Maria João Vaz.
Desde então que os portugueses lhe perderam o rasto, apesar de ter feito alguns papéis em peças de teatro, cinema, séries e novelas. O trabalho chegava, embora fosse escasso. A culpa, afirma com convicção, reside precisamente no anúncio que a tornou famosa. Não o diz com despeito, mas com carinho pelos pouco mais de cinco segundos em que encarna um pastor de ovelhas feliz por receber uma chamada de telemóvel.
“Naquela altura os encenadores e realizadores eram muito intelectuais. Fui catalogada como o tipo de ator que fazia anúncios. Para eles, isso não era trabalho sério”, recorda. Pelo caminho, foi forçada a fazer um pouco de tudo. Chegou a conduzir um tuk tuk pelas ruas de Lisboa e, hoje, assume também a faceta de artista plástica, descoberta no momento do coming out.
A transição foi simples. Bastou-lhe comunicar ao mundo aquilo que já sabia que era: uma mulher. As coisas, porém, nem sempre foram tão evidentes. Cresceu sem Internet, sem as vias de acesso que hoje são tão valiosas para adolescentes que se debatem com as mesmas dúvidas. Se hoje podem tentar resolver o enigma do próprio quarto, Maria João teve que o fazer dentro da sua própria cabeça. Era uma tarefa complicada.
“Naquela altura eu achava que tinha um problema qualquer, que era maluquinho ou tarado sexual, algo assim estranho. Era uma faceta que estava envolta em vergonha”, recorda dos tempos de infância e adolescência.
A infância solitária
Adorava folhear as revistas que eram distribuídas a bordo dos voos da TAP — e que o pai, sendo funcionário do aeroporto, trazia para casa. Pendia sempre para as últimas páginas de uma revista brasileira, a “Manchete”, que lia e observava com toda a atenção do mundo.
“De vez em quando, apareciam pessoas transgénero brasileiras, algumas que tinham sido submetidas a cirurgias, outras que tinham casado e vindo para a Europa. Na altura do Carnaval, as páginas centrais estavam cheias de fotos de mulheres trans”, recorda.
O fascínio era tão óbvio quanto natural. Havia um “conforto” naquelas páginas, naquelas pessoas que aparentemente eram tão diferentes de si. “Tinha uma espécie de desejo de ser assim, mas sempre cheio de complexos com isso.”
Apesar de não ser crente ou sequer de ter tido uma educação católica rígida, recorda o papel vigoroso do pai que, admite, poderá ter ajudado a reprimir muitos destes desejos. Descreve-o como “um bocado machista”, com um temperamento que colidia com a sua personalidade mais sensível.
“Amigos, amigos, não tinha. Fui sempre uma pessoa fora do baralho. Não me identificava com nenhum grupo. Era uma pessoa muito sozinha”
“Dá-me a ideia de que comprimiu todos os meus eventuais desejos. Eu não o queria desiludir”, conta.
Sempre que podia, escapulia-se com as roupas das empregadas e da mãe para, às escondidas, imitar aquelas curiosas pessoas que só conhecia das páginas das revistas. Chegou a ensaiar os típicos espetáculos de criança, mas depressa se acabou a inocência. Passou a fazê-lo na clandestinidade, sozinho com os seus sentimentos de culpa.
Nem a adolescência ajudou a quebrar as barreiras. A primeira puberdade não lhe deu as experiências comuns: os primeiros beijos, os primeiros namoros, as paixões. Sem conseguir precisar qual ou quais os momentos decisivos, percebe hoje que o que acontece na infância “influencia tudo” na vida.
“Eu não tinha amigos. Os meus amigos eram os filhos dos amigos dos meus pais. Estava com eles apenas quando íamos a casa deles. Amigos, amigos, não tinha. Fui sempre uma pessoa fora do baralho. Não me identificava com nenhum grupo. Era uma pessoa muito sozinha”, diz.
Cumprir a tradição
O cenário mudou quando conheceu a explicadora de matemática. Tinham os mesmos 19 anos e Maria percebeu que era também uma pessoa carente. Sentiu, pela primeira vez, que alguém a ouvia, lhe dava atenção.
“Interpretei essa atenção de outra maneira, confundi tudo. Tinha finalmente uma pessoa do sexo oposto que estava interessado naquilo que eu pensava. Agarrei-me com unhas e dentes. Não queria perder aquilo.” Acabaram por casar e ter três filhas.
Viveu a vida “como era suposto”. Como marido, ao lado da mulher. Foi pai com esmero — embora acredite que tinha mais jeito para o tradicional papel de mãe, de dona de casa, algo que lhe “era instintivo — e tudo o resto foi “atirado para debaixo do tapete”.
Nunca, em momento algum deixou de tirar parte do seu dia para se vestir de mulher. Sempre às escondidas. Apesar de continuar a sentir essa necessidade, acreditou por momentos que poderia ser algo provocado pela sua natureza solitária. “Achei que poderia desaparecer se namorasse com uma pessoa. Só que nunca parou, nunca houve nada que o substituísse, que fosse impeditivo”, sublinha.
Aquela que é hoje a sua ex-mulher, nunca desconfiou. A certa altura, esta faceta escondida foi-lhe exigindo cada vez mais. As saídas eram cada vez mais elaboradas, até que começou mesmo a arriscar entrar em lojas, nas bombas de gasolina, a falar com os funcionários. Era uma obsessão.
“Desejava transformar-me naquilo, mas não sabia qual era a saída. Continuava a fazer a minha vida normal”, recorda. Fê-lo até 2015, altura em que decidiu que tinha chegado o momento de assumir que não era feliz.

Embora soubesse que não era feliz, não sabia ainda o que se passava consigo. Nos momentos mais íntimos, procurava a resposta, mas não a encontrava. “O problema é que eu não sabia o que é que eu era.”
Ao fim de mais de 20 anos de casamento, encontrou finalmente o beco sem saída que lhe permitiu libertar-se: “Parei e percebi que não queria morrer assim. Havia mais coisas para fazer na vida, para sentir, para viver. Sabia que ali não o ia conseguir. E saí.”
Uma vida nova
Assim que decidiu eliminar a pequena percentagem da sua vida que ainda pertencia a João, Maria avançou com tudo. Nesse dia saiu de casa completamente vestida de mulher e decidiu confrontar os vizinhos, “olhá-los olhos nos olhos”. “Queria que soubessem por mim.”
Não o reconheceram imediatamente, alguns nem depois do primeiro olá. “Falavam comigo como se fosse outra pessoa”, recorda. Explicou-lhes tudo e todos foram compreensivos.
Sabe, contudo, que nem tudo é o que parece. “Nalgumas lojas e na rua, percebem e não dizem nada, mas não me interessa muito. Provavelmente até fazem comentários nas minhas costas. Não me afetam”, explica.
Há uma pergunta recorrente e para a qual já tem a resposta pronta a sacar da algibeira. Como é que só aos 54 anos é que percebeu qual a vida que queria realmente levar?
Recorda o momento em que negou uma potencial epifania. Era ainda casado, mas já tomava hormonas. Achava que sabia o que queria e viu-se numa encruzilhada.
“Nessa altura já havia organizações que me poderiam ajudar e aconselhar. Foi uma grande incompetência ou cobardia da minha parte. É como quando se tem um ataque de pânico porque parte do nosso cérebro percebeu tudo e a outra parte teima em não o aceitar. Tem que haver um choque”, explica.
A reviravolta era inevitável. Era apenas uma questão de tempo, que foi sendo prolongado por todas as “distrações que criava”, de forma a “evitar pensar no que era realmente importante”.
“Senti que tinha que tomar as rédeas da minha vida. Afinal, passei uma vida inteira a viver a vida dos outros — e não a minha própria”
Já divorciado, foi numa relação com outra mulher que conseguiu finalmente decifrar o enigma. E como todos os enigmas, depois de revelada a resposta, percebemos que ela estava ali, descarada e desavergonhadamente a olhar para nós.
O momento e a relação foi de tal forma importante que, ainda hoje, Maria João prefere não falar sobre ela. Confessa apenas que a companheira foi quem o ajudou a libertar-se, mas que “depois não quis aquilo que libertou”.
“Foi ela que involuntariamente me fez descobrir o meu caminho. Ainda hesitei entre ficar com uma pessoa que gosta de mim ou encontrar-me a mim própria. Depois percebi que estava sempre a pensar nos outros. Senti que tinha que tomar as rédeas da minha vida. Afinal, passei uma vida inteira a viver a vida dos outros — e não a minha própria.”

Como na infância e adolescência, a decisão estava tomada ainda antes de Maria João a tomar. Agora, sabia o que era e quem era. Apesar de apenas se ter libertado ao fim de cinco décadas, mantém se otimista: “Acho sempre que vou viver até aos 200 anos. Ainda há muita coisa para acontecer”.
O fim do segredo parece ter posto fim a muitas coisas que não estavam aparentemente relacionadas, mas que sempre arrastaram João para uma espécie de buraco. Hoje, confessa continuar a ter dificuldades em encontrar trabalho. O que mudou foi a atitude com que leva a vida.
“Antes do coming out estava sempre preocupado com o trabalho, ficava angustiada, andava a pedir esmolas aos encenadores. Agora estou-me a cagar. Não me rebaixo. Apesar de estar na cêpa torta, porque estou sem trabalho, estou tranquila e esperançosa”, confessa.
“Mudou tudo, é tudo mais fácil. Percebo tudo de outra maneira, o toque, o cheiro, tudo. Parece que me fizeram uma ligação direta. Boas coisas vão acontecer.”