Cinema

“A Noiva”: o novo filme inspirado numa das jihadistas portuguesas do Estado Islâmico

A NiT entrevistou Joana Bernardo, a atriz de 22 anos que esteve dois meses e meio no Curdistão iraquiano para gravar a história.
Joana Bernardo é a atriz principal.

O autoproclamado Estado Islâmico, também conhecido como Daesh ou ISIS, continua a inspirar obras de ficção no campo do cinema e da televisão. A 12 de janeiro, chegou às salas nacionais “A Noiva”, do aclamado cineasta luso-brasileiro Sérgio Tréfaut, que conta a história de uma jovem europeia que se muda para a Síria para integrar as fileiras da organização terrorista.

A narrativa é diretamente inspirada na vida real de Ângela Barreto, a jihadista luso-holandesa que foi condenada a quatro anos e meio de prisão no início de 2022, por ter participado na organização e preparação de crimes terroristas. Mas também houve outras duas jovens europeias que se juntaram ao Daesh, francesas, que influenciaram o guião.

Coube a Joana Bernardo, atriz portuguesa de 22 anos, o papel de encarnar “A Noiva”. Este foi o seu primeiro filme, gravado enquanto frequentava o terceiro ano da licenciatura da Escola Superior de Teatro e Cinema. Não foi um projeto qualquer. Além de interpretar uma pessoa real, com um contexto complexo e por vezes difícil de compreender, a rodagem aconteceu no Curdistão iraquiano. 

A equipa de gravações passou cerca de dois meses e meio naquela região do Médio Oriente. Várias pessoas reais, que ali vivem em campos de refugiados, participaram no filme enquanto figurantes. Aliás, duas crianças participaram na história enquanto filhos da personagem principal, uma mulher de 20 anos, grávida e com dois filhos, cujo destino fugiu ao seu controlo. 

“Foi quase como se estivesse noutro tempo, como se estivesse numa bolha, e estava a viver outra vida. Foi muito estranho”, recorda Joana Bernardo em conversa com a NiT. Leia a entrevista.

Como conseguiu o papel? Foi um convite, foi através de um processo de casting, como é que funcionou?
Foi um casting. Acho que o anúncio estava no Facebook e chegou-me através de uma partilha. Dois amigos meus e uma familiar minha enviaram-me. Um dos requisitos era falar francês fluentemente — eu não falo [risos], então descartei a possibilidade. Estava dentro da faixa etária, mas desisti. No dia seguinte, esta minha familiar enviou-me outra vez e disse “tenta!”. E depois uma amiga minha, que conheci a trabalhar num projeto do Teatro Nacional [D. Maria II], falou-me desta audição, porque conhecia o Sérgio e achava que as características de que ele estava à procura para a personagem eram as minhas. Disse-me para eu enviar fotografias e o meu material para o Sérgio. Daí houve uma pré-seleção, e fui chamada para fazer o casting. Acho que fui a primeira candidata [risos]. Eram duas cenas: a da execução, sem texto, era só um grande plano em que eu tinha de reagir; e o diálogo final com o pai, que na altura era mais completo.

De que é que mais gostou quando percebeu que história era esta e descobriu melhor a sua personagem?
Inicialmente, só dizia no anúncio da audição que era para “A Noiva”. Precisavam de uma noiva. Não sabia qual era a temática. E quando me ligaram a dizer que tinha ficado para fazer a audição, explicaram-me logo que o filme era para ser rodado no Iraque, no Curdistão iraquiano. Depois mandaram os materiais e percebi que estava associado ao Daesh. Fui logo tentar perceber se esta mulher existia e cheguei à Ângela Barreto. Depois enviaram-me um dossier sobre esta questão dos jovens europeus que se juntaram ao Daesh e que explicava o que inquietava o Sérgio. Esta fação extremista já me interessava. Até me lembro de na escola ter feito um trabalho sobre o Daesh. Sempre foi uma questão que me fascinou e inquietou, as origens desta fação, os requintes de malvadez… E, depois, o facto de ser uma rapariga tão jovem, esta questão de “o que é que a moveu a tomar uma decisão destas?” O filme é sobre o lugar a que ela chega. Ela está dividida entre dois mundos, e como é que ela gere isto tudo? E a questão dos pais também me interessou imenso. Como é que os pais reagem quando os filhos tomam uma decisão destas e partem? Eles não percebem. “No que é que nós falhámos, porque é que os nossos filhos se juntaram a uma coisa destas?” Acho que é uma questão mesmo muito interessante.

O filme é baseado na história real de Ângela Barreto, mas também tem partes fictícias.
Sim. Acho que a primeira versão do guião era baseada no Fábio Poças, com quem a Ângela Barreto se casou. Mas, depois, o Sérgio mudou a perspetiva da história e foi dar então à Ângela. A personagem é baseada nela e em duas mulheres francesas. E muito do que está escrito vem de depoimentos que elas deram, em entrevistas, em tribunal… 

Como é que foi a preparação da personagem? Imagino que precisou de ler bastante sobre o assunto.
Acabou por ser muito orgânico. Começou pela língua. Antes de ir para o Curdistão tive apoio no francês e no árabe. Depois, quando cheguei, tive um acompanhamento diário no que toca ao árabe. E comecei o meu processo de pesquisa, de recolha de depoimentos, aquilo que nos ensinaram na escola de “o que é que as outras personagens dizem de mim”. É uma linha muito ténue entre a ficção, o que está escrito no guião e a realidade. Claro que comecei pelo guião e por aquilo que o Sérgio escreveu e pelas suas intenções, mas tive que ir à história real para perceber mais ou menos como é que poderia dar mais dimensões a esta pessoa. E sentia um grande peso na responsabilidade de contar uma história real e baseada numa pessoa que existe. Depois deste processo de pesquisa, tive que criar uma relação com os bebés que faziam dos meus filhos. Decidi ir passar umas noites para o campo de refugiados para entrar no dia a dia deles, dar-lhes de comer, adormecê-los, brincar com eles… E desta relação com os bebés vem a relação com as famílias deles, que por acaso faziam parte do filme. As mulheres que viviam naquele campo eram as que entravam no filme. E nessa relação que estabelecemos acho que retirei muito, também, de como é que esta mulher poderia funcionar — a nível do corpo, do estar, de como é que se agarra num bebé, como é que carregava esta barriga, como é que me sentava, como é que ela se movimenta, tudo… E as expressões e os corpos delas são tão carregados. Carregam uma história muito dura. E pensei também como é que poderia aproveitar isso para o meu trabalho. 

Em termos psicológicos, suponho que tenha sido desafiante tentar perceber o que passava pela cabeça de uma mulher com esta trajetória.
Inicialmente, quando peguei na personagem para a pensar e desenhar, veio-me logo à cabeça o porquê. Porque é que ela decidiu isto? O que é que a moveu? Percebi automaticamente que não tinha resposta para esta questão. Então foi algo que ficou sempre em aberto durante o processo todo. E foi difícil tomar essa decisão, de “eu não posso julgar”, porque se julgo fecho logo caminhos e vou limitar o meu trabalho. Então, a partir daquilo que o Sérgio escreveu, tentei fazer um balanço: esta rapariga tem uma história antes de ter chegado até aqui e tem tudo aquilo que eu tenho informação que ela viveu, e tudo aquilo que eu não imagino se ela terá visto ou não… E tenho de chegar ao “pós”, a este lugar onde acho que ela se encontra, tal como as outras mulheres, num limbo, neste não-lugar, onde ela está a tentar salvar a pele dela e dos filhos — porque pode ser condenada à morte. Então, é perceber como é que esta rapariga gere tudo isto emocionalmente. Ao mesmo tempo, acho que desenhei uma pessoa muito fria. Ela viveu coisas que eu não sei. Nunca vou saber. Fui a Mossul, presenciei aquelas ruínas todas e a destruição, é um sítio com uma história muito pesada, é quase como se a sentisses de alguma forma… E os testemunhos das pessoas com quem estive, que foram vítimas desta fação extremista, foram o máximo de informação que eu poderia recolher para criar este “durante” por que ela passou e que não sei o que foi exatamente. Mas, psicologicamente, ela chega ali a uma zona muito misteriosa que nunca vou ter a certeza do que é. Para mim foi como jogar um jogo e ela começa o filme a perder o jogo. E é ver como é que ela se vai salvar no meio disto tudo. Apesar de não percebermos o porquê de esta rapariga se juntar a esta causa e de se calhar inicialmente termos pena por causa da minha aparência física, dizemos “calma lá, ela juntou-se a esta fação extremista, ela é culpada”, mas está uma pessoa ali. É uma miúda, na verdade.

Claro, existem essas nuances todas. Acredito que tenha sido muito importante essa experiência de poder ter gravado no Curdistão, de ter conseguido visitar Mossul… Se fizesse o mesmo filme noutro sítio, como em Portugal, imagino que fosse diferente.
Completamente diferente. Acho que as localizações onde estivemos ajudaram-me bastante. Eram sítios mesmo muito duros. Muito inóspitos. E isso foi muito bom para mim. Quis aproveitar tudo. Tudo o que aquele sítio me deu, como é que posso aproveitar isto para o meu trabalho? 

Qual é que diria que foi o grande desafio deste papel e deste filme?
Foram as crianças. Criar a relação com elas. Foi o mais desafiante no meio de tudo. Porque as crianças estavam sempre a chorar o tempo todo. Achava muito violento para uma criança fazer este trabalho, se bem que nós acompanhámos o ritmo delas para a filmagem — e não fizemos com o nosso ritmo de adultos, de “temos de fazer”, “temos de filmar”. Ficámos muitas vezes parados para elas descansarem e depois esperávamos que parassem de chorar, ia lá brincar com elas, passeava com elas e depois filmávamos. E isso foi muito engraçado. Para mim foi um desafio convocar a minha concentração, que no teatro é uma coisa muito específica: estás lá atrás, concentras-te, toda a gente convocada para a mesma coisa e fazes o trabalho. Ali tinha muitos estímulos, muita coisa a acontecer e as crianças… Tive mesmo que ser a mãe daquelas crianças durante aquele período. Foi mesmo um grande desafio. 

Estava a falar das diferenças entre teatro e cinema, que obviamente são muitas. Esta experiência deixou-a com vontade de fazer mais cinema?
Sim, muita vontade. É um tipo de trabalho muito minucioso e interessante. Gostava muito de ter mais oportunidades e aprender mais sobre cinema. 

Está a trabalhar noutros projetos agora?
Sim, neste momento estou em ensaios para “O Misantropo”, do Molière, do Teatro Nacional D. Maria II, com encenação da Mónica Garnel, e adaptação do Hugo van der Ding e Martim Sousa Tavares. Estreamos em março no Olga Cadaval [em Sintra] e depois começamos a digressão pelo País porque está inserido no programa da Odisseia Nacional do Teatro Nacional. 

Começou recentemente o seu percurso profissional. O que é que sente que quer mais fazer nesta área? Quais são as suas ambições?
Gostava muito de continuar a fazer teatro e cinema. Gostava mesmo muito de fazer cinema. É ir tentando fazer o máximo que conseguir, porque aprende-se muito é a fazer e é com a experiência. Então gostava de ter mais desafios, mais oportunidades como este filme. Houve uma mudança pessoal pelo desafio que foi, e para aquele contexto, mas a nível profissional também. Porque, quando cheguei lá, pensei: não sei se sou capaz de fazer isto. O Sérgio confiou em mim, eu vou ter de ser capaz de fazer isto, mas sou uma miúda que ainda nem sequer terminou a escola superior. Como é que vou fazer isto? [risos]. Em todos os trabalhos que fui fazendo, sinto sempre isso. Parece que todos os trabalhos representam um recomeçar: como é que vou fazer isto, será que vou ser capaz? Mas, depois das várias experiências, já levamos aqui mais qualquer coisa, mais bagagem.

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