Cinema

“Amadeo”: o filme biográfico sobre o icónico pintor português já está nos cinemas

A NiT falou com o realizador e argumentista Vicente Alves do Ó — que já tinha feito filmes sobre Florbela Espanca e Al Berto.
Rafael Morais é o ator protagonista.

Depois de “Florbela” e “Al Berto”, o realizador e argumentista português Vicente Alves do Ó dedicou-se a outra grande figura artística portuguesa, Amadeo de Souza-Cardoso. Gravado antes da pandemia, o filme biográfico “Amadeo” chega finalmente aos cinemas esta quinta-feira, 26 de janeiro.

Rafael Morais é o ator que interpreta o pintor modernista português, que produziu uma obra vasta embora tenha morrido com apenas 30 anos, em 1918 — em plena pandemia da gripe espanhola. Vicente Alves do Ó conhecia “mais ou menos” a figura, embora não fosse um grande conhecedor. 

“Conhecia a obra dele que estava exposta no Centro de Arte Moderna, na Gulbenkian, porque eles têm o acervo quase todo e volta e meia vão variando os quadros e colocando os dele… Conhecia o Amadeo daí, conhecia vagamente a história dele, sabia que tinha morrido cedo e desaparecido do meio artístico. Mas o meu primeiro grande contacto com ele foi a exposição de 2006. Foi um grande fenómeno”, explica o cineasta à NiT.

Nessa altura, Vicente Alves do Ó ainda nem sequer tinha gravado a sua primeira longa-metragem. O assunto ficou-lhe na cabeça, mas nunca mais ponderou fazer um filme sobre o artista — aliás, deu prioridade a Florbela Espanca e a Al Berto. 

“Depois, em 2016, quando acabo o ‘Al Berto’ e estou no Porto, percebo que há uma exposição do Amadeo no Museu Soares dos Reis. De alguma forma celebrava a primeira grande exposição que ele tinha feito, no Porto, em 1916. Ficou reconhecida na nossa história como a primeira grande exposição modernista em Portugal. Na altura chocou a sociedade portuguesa, há uma série de mitos sobre a exposição… Alguns não têm fundo de verdade, mas tem-se a certeza das críticas que foram escritas, do murro que ele levou e que fez com que fosse para o hospital… Muita gente ficou ofendida com os quadros. Mas aquilo que me fascinou não foi olhar para a arte dele. Gosto muito de arte moderna e, sim, o Amadeo é um génio, mas o que mexeu comigo, mais do que tudo, foi que, nas paredes da exposição, havia citações do Amadeo.”

Eram frases que ele tinha dito ou escrito em cartas. A grande fonte foi uma entrevista que Amadeo de Souza-Cardoso deu, uma vez que as cartas apresentavam, como é natural, um discurso mais ponderado e polido.

“No meio daquela intelligentsia lisboeta e portuense há um miúdo que vai de propósito de Coimbra a Lisboa fazer-lhe uma entrevista. Esta entrevista, que hoje os historiadores usam para tudo e para nada, é de facto uma base muito importante para vermos como é que ele pensa. É ele em discurso direto. Foram retiradas dali muitas citações e são elas que me suscitaram interesse. São fora da caixa, identifiquei-me imenso enquanto artista… Ele dizia muito, por exemplo, que não queria pertencer a escolas nem a grupos. Queria fazer a cena dele. Não estava muito preocupado se gostavam dele ou não. Não estava preocupado se estava a seguir o que era moderno ou atual. Porque ele tinha uma ideia de que a arte que criava só tinha de obedecer a certas regras: ser emocional, solar, alegre… Ou seja, ele vai criando um conceito e com base nesse conceito, daquilo que para ele é arte, vai melhorando a cada quadro que faz. E é exatamente aquilo que penso quando filmo.”

Vicente Alves do Ó admite que “a pintura é uma coisa perigosa”. No sentido em que, como se trata de artes plásticas, poderia existir a “tentação” de tentar usar as imagens de Souza-Cardoso como inspiração para a própria estética visual do filme. 

“Disse logo que não queria fazer isso. Muito pelo contrário, não podia fazer isso. Isso seria ridículo, a tentar filmar com as cores, o movimento… Não, tenho é que me distanciar isso, até porque quero falar mais sobre o homem do que a pintura. Quis descobrir o homem que está atrás daquilo tudo.”

O que o cineasta mais gostou no sujeito do seu filme foi a sua “coragem” e ousadia natural. “Não vamos esquecer que é um homem branco, privilegiado, rico, católico, monárquico. Existem estes fatores todos. Mas também há outros que o distinguem desta sua condição de privilégio. Uma pessoa privilegiada, por norma, acomoda-se muito ao seu privilégio. Tem quase a vida feita. Porquê desistir do seu conforto? O Amadeo está continuamente a tentar encontrar um caminho que o faça feliz. Vai estudar para várias escolas e aquilo não corre bem. Até parece aquele filho meio perdido que anda à procura… Mas é responsável. Chegou a trabalhar ao balcão numa loja de família na Rua de Santa Catarina, no Porto. A mãe estava toda contente [risos]. Pronto, tinha encontrado um futuro, uma profissão, uma responsabilidade. Mas isso nunca lhe chegou. Ao ponto de ele, com a ajuda do tio, conseguir ir estudar para as Belas-Artes a Lisboa. Tinha um instinto muito apurado e uma curiosidade, insatisfação, inquietação, de que também gosto muito.”

E acrescenta: “O Al Berto e a Florbela também o tinham, e confesso que também tenho. Conheço muitas pessoas que têm e são as pessoas pelas quais mais me atraio. Nunca estão exatamente satisfeitas… Enquanto não encontram aquilo que as faz feliz, não param quietas. Não se acomodam, pronto. É uma coisa que me faz confusão, as pessoas que se acomodam à vida. E o Amadeo, assim que chega às Belas-Artes em Lisboa, acho que nem chegou a fazer um ano inteiro e disse: ‘Não estou aqui a fazer nada, isto não interessa a ninguém, tenho que me ir embora para o centro do mundo’. E com 19 anos arranca para Paris, com uma boa mesada, como é óbvio, e é lá que começa a descobrir tudo”.

Para Vicente Alves do Ó, existem três momentos chave na vida de Amadeo de Souza-Cardoso que serviram para “dramatizar” e “definir a personagem enquanto pessoa e artista”. O primeiro é de 1911, quando o pintor mora em Paris e convive com o seu amigo Modigliani. Organizam em casa uma vernissage que apresentou as obras do português à elite artística parisiense — que vivia um momento particularmente fértil.

“Apareceu toda a gente que era gente. Aquela é a noite primordial, a prova de fogo do Amadeo. Que é quando toda aquela elite vê as primeiras coisas dele, tudo aquilo que ele está a preparar. Quando aquela noite acabou e ele se foi deitar, o gajo devia dar pulos. Porque nós gostamos muito quando os nossos pares nos dão os parabéns e nos dizem ‘muito bem’. É o reconhecimento.”

Depois, em 1916, Amadeo de Souza-Cardoso afasta-se dessa mesma elite — ao cortar relações com os influentes Delaunay. “Ele não está feliz a fazer o que está a fazer. Já não acredita naquilo, acha que os colegas dele estão a usar aquilo como uma espécie de trampolim e corta relações com eles e dedica-se afincadamente a organizar a exposição no Porto, com todas as obras que tem no atelier. Ele deve ter levado tudo o que tinha, até os esboços. São 114 obras que expõe como se fosse uma retrospetiva de uma pessoa que pintou durante 70 anos. E sabe perfeitamente que vai encontrar uma cidade difícil, conservadora.”

Por fim, o terceiro momento diz respeito à sua morte e consequente desaparecimento artístico, em 1918. “Este homem tornou-se um enigma. Meia dúzia de pessoas conheciam-no, do meio académico, mas o grande público não sabia quem ele era. Ainda hoje há muita gente que não sabe. E sofri muito com esta ideia de que ele sumiu. É só nos anos 80 quando a viúva vende a obra dele à Gulbenkian e faz a tal exposição de que falei de 2006 que tem realmente uma relevância nacional, e depois há a de 2016, e aí é que tu percebes: meu deus, o trabalho que ainda há para fazer para levar este homem pelo mundo. Porque ainda está tudo por fazer. Porque se perderam 80 anos. E essa dor, essa injustiça, precisava que as pessoas sentissem de onde é que ela vem. E o que é extraordinário é que tenho um homem que cuida da família dele, achando que é forte e que tem o futuro pela frente… quando somos jovens não concebemos a ideia de que podemos morrer, não é?”

O filme retrata o percurso do artista.

A família de Amadeo de Souza-Cardoso foi impactada pela pandemia da gripe espanhola. O vírus afetava aqueles cujos sistemas imunitários eram mais fortes — a taxa de mortalidade foi superior na faixa entre os 20 e os 40 anos, por exemplo. Embora o pintor pudesse parecer o mais resistente da família, até porque a sua esposa frágil estivesse durante muito tempo com uma saúde debilitada, foi ele que acabou por sucumbir à doença. Morreu em três semanas, depois de contrair a gripe.

Como o filme foi gravado antes da pandemia da Covid-19, não havia qualquer expetativa de que o público se identificasse tanto com esta temática. “Tinha medo de que as pessoas não criassem empatia com um homem que morre de gripe”, explica. Vicente Alves do Ó queria que os espectadores percebessem o que significou a morte precoce do pintor para a memória coletiva que existe sobre a sua figura. Determinou a falta de reconhecimento que ainda existe hoje em dia.

“Não estou a dizer que quero que as pessoas sofram, mas quero que sintam na pele o que foi aquela tragédia. De perder este homem que ainda poderia ter dado tantas alegrias ao País. Está nos livros da história moderna portuguesa, mas continua a não estar inscrito nos livros da história moderna mundial. E acho que para o nome dele aparecer ainda é preciso fazer-se um grande trabalho de divulgação. Foi muito giro porque fomos jantar na segunda-feira com o presidente Marcelo, porque insistiu que queria ver o filme comigo porque é um grande apreciador de Amadeo, e elogiou muito e dissecou o filme ao detalhe. Foi um momento extraordinário da minha vida. E disse: ‘quando houver uma retrospetiva do Amadeo em Helsínquia este filme tem que lá estar’. ‘Estão os quadros e depois as pessoas têm acesso ao filme porque têm de perceber de onde é que aparece este homem e artista, porque tem de se ligar uma coisa à outra’. Imagine um finlandês: ‘Porque é que estou a ver estes quadros agora, como se fosse uma novidade, quando ele é um artista modernista e morreu há 150 anos? Mas eu não vi já todos os artistas modernistas que tinha de conhecer?’ ‘Não, faltava conheceres este. E com o filme vou-te explicar porque é que tu não o conheces’. É como se o filme fosse uma espécie de cartão de visita para perceberes porque é que em 2023 é tão importante ainda fazer um trabalho de divulgação da obra dele.”

O cineasta argumenta que o desafio dos filmes biográficos é rasgar a imagem “impoluta” que o público tem da pessoa. “As pessoas querem muito ver o herói, e eu quero muito mostrar a pessoa. Este choque é constante e aconteceu nos três filmes.” Duas historiadoras acompanharam a escrita do argumento, para que não houvesse quaisquer factos errados no guião.

E acrescenta: “Uma das razões pelas quais fiz esta trilogia foi porque aquilo que me fascina, seja um artista genial ou desconhecido, é a humanidade de uma pessoa que de repente descobre que tem uma vocação — seja escrever, pintar ou o que for. E que dedica a vida a essa vocação. Isso é uma coisa que me fascina imenso. Portanto, quando vou trabalhar sobre essa questão, da humanização destas pessoas, é sempre muito difícil porque as pessoas não gostam muito disso. Há muita gente que não gosta quando dizes: ‘O Amadeo é um génio, mas também era um gajo normal. Também tinha dúvidas, momentos de melancolia. Muitas das vezes não sabia o que fazer com a vida dele.’ Exatamente como eu que sou realizador, como a Amália que entrava no palco aos 70 anos e ainda se benzia, com a Eunice Muñoz que me entrou nervosíssima pelo plateau adentro… Porque estas pessoas dedicam a vida a isto, levam isto muito a sério, e nunca tomam nada por garantido. E as pessoas não gostam que os seus heróis tenham dúvidas. Porque, como elas têm dúvidas, não conseguem admitir que o herói pode ser falho. E essa é a minha frustração no que toca aos três filmes. Acho que, ao humanizá-los, até os estou a tornar ainda mais relevantes. Porque é muito mais interessante admirar pessoas do que santos”.

ÚLTIMOS ARTIGOS DA NiT

AGENDA NiT