Esta quinta-feira, 25 de maio, chega aos cinemas a nova versão em live action do clássico da Disney, “A Pequena Sereia”. E, se por acaso, se sentar a ver a versão dobrada em português, poderá reparar que a voz de Ariel não lhe é totalmente estranha.
Do outro lado, por detrás do microfone, está Soraia Tavares, que deu também a voz a Nala, em “Rei Leão 2”, na personagem que na versão original coube à cantora Beyoncé. E tal como Beyoncé, a jovem de 28 anos também tem uma queda para a música, tanto que é a voz que impressiona a interpretar o tema “Fora do Mar”. Foi isso mesmo que fez no passado domingo, dia 21,.
Surgiu no palco do “The Voice Kids” para varrer a plateia com a sua rendição do famoso tema do filme. “Já faço dobragens há muito tempo. Faço parte da grupeta habitual que é chamada para os castings”, conta à NiT a um dia da grande estreia de “A Pequena Sereia”.
Filha de imigrantes cabo-verdianos, embrenhou-se nas artes, fez teatro, passou por peças e novelas, por séries e filmes, concorreu ao “The Voice Portugal”, venceu o concurso “A Tua Cara Não Me É Estranha” e desde a pandemia que se tem dedicado a escrever os seus próprios temas. Temas esses que chegaram às lojas na passada sexta-feira, 19 de maio, no seu primeiro disco “A Culpa é da Lua”.
Com dois discos a passearem por Portugal — o segundo é, naturalmente, o da banda-sonora do filme, onde interpreta vários temas —, prepara-se para a estreia de “A Pequena Sereia”, exausta mas feliz. Em conversa com a NiT, fala sobre como conquistou o papel de Ariel, a controvérsia em que esteve envolvido o filme, a representatividade, a sua música, a inspiração e, claro, o futuro.
Lembra-se de quando viu “A Pequena Sereia” pela primeira vez?
Não tenho memória disso, mas sempre foi dos meus favoritos. Os filmes da Disney que via mais era esse e o “Hércules”. Claro que já sabia todas as letras de cor. Curiosamente, o meu nome no Instagram é um trocadilho: a Pequena Soraia. Surgiu quando em 2015 fiz o Disney in Concert, onde interpretávamos temas com uma orquestra gigante. Sempre que me apresentavam, diziam a pequena Soraia. Gostei e comecei a usá-lo. E nesse espetáculo já cantava precisamente este tema, o “Fora do Mar”.
E como é que surge a oportunidade de ser a voz da Ariel?
Faço muitas dobragens, estou habituada a ser chamada para os castings. Como é normal, não sabia o que era. Só soube quando cheguei lá. Lembro-me de ficar triste porque nessa fase estava com nódulos na garganta, sabia que não estava no meu melhor para poder fazer um bom casting. Ainda por cima, nesse casting havia cerca de 15 candidatas. Costumam ser muito menos. Fiquei muito feliz por ter conseguido o papel. Mesmo com as limitações, o meu melhor foi suficiente para ser escolhida.
É atriz, cantora, faz dobragens. Quais são os desafios específicos mais associados à dobragem?
Não é fácil porque só temos acesso aos materiais quando estamos no estúdio. Por causa de questões de sigilo, os materiais, as falas, as músicas, nunca podem sair daquela sala, o que faz com que seja mais difícil ensaiar e trabalhar os textos. Tem que ser uma coisa imediata e isso torna-o mais difícil. Temos que fazer a interpretação no momento e seguir as indicações. Depois temos também que nos aproximar o mais possível do original e ao mesmo tempo trazer o nosso cunho português. Neste filme, a minha grande dificuldade não foi na voz falada, porque apesar de tudo, a atriz é super contida e acho que fazia um match com a minha forma de dobrar. O mais difícil foi mesmo a voz cantada, por duas razões: porque as músicas são tecnicamente mesmo muito exigentes; e porque ainda estava com os nódulos na garganta.
Isso é habitual?
Não é super normal, não. Tem normalmente a ver com excesso de trabalho. No meu caso foi porque tinha estado constipada e depois fiquei rouca por causa de obras que estou a fazer em casa. Na altura até estava em descanso vocal. A minha voz falada é muito grave e a cantada é muito aguda, o que faz com que esteja sempre em esforço, com a voz no extremo, cansa-a mais facilmente. É algo em que estou a trabalhar neste momento. Nas gravações, estava com a voz com mais ar, não conseguia estender as notas durante mais tempo. Mas tive a ajuda do Manuel Rebelo, diretor musical, que conseguiu com que eu fizesse coisas que nem sequer sabia que era capaz, mesmo sem nódulos.
Antes da estreia, pudemos ouvir a sua interpretação do tema “Fora do Mar”, que também mostrou no “The Voice Kids”. O que espera dos próximos dias e sobretudo com a estreia do filme?
Fiquei mesmo surpreendida com toda a reação à atuação. Não estava à espera de uma reação tão positiva, tantas visualizações, tantas mensagens. Depois disto acho que estou expectante para a estreia. Espero que as pessoas gostem e vejam a versão portuguesa. Eu já vi o filme e adorei. Acho que é muito bonito, tanto para adultos como para as crianças. É um filme familiar.
O filme gerou alguma controvérsia desde que Halle Bailey foi anunciada como protagonista, precisamente por se tratar de uma mulher negra no papel de Ariel. Um problema que encabeça numa discussão mais generalizada. Ainda há dois anos houve por cá um debate sobre a escolha de um elenco de atores brancos para dobrar o “Soul”, um filme apenas com personagens negras. Como é que vê toda questão?
Não acho que atores brancos tenham que fazer dobragens de personagens brancas e negros as personagens negras. A questão do “Soul” é diferente, porque o filme tem uma componente de representatividade e houve um cuidado da Disney nos EUA de fazer passar essa mensagem através dos atores que davam voz às personagens. Mas isso não passou para o resto do mundo e fez-se como se costuma fazer: chamaram-se os atores e procuraram-se os matches vocais para cada personagem. Ninguém pensou na mensagem do filme e foi um erro.
Serviu de lição ou nada mudou?
Depois desse filme, começaram a procurar mais atores negros para dobragens. Por outro lado, acho que isso leva as coisas ao extremo: a maioria das personagens negras começaram a ser dobradas por pessoas negras. Acho que também não é por aí, mas se calhar também é preciso chegar a esse extremo para que depois se consiga encontrar um ponto de equilíbrio. Ao final do dia, prefiro que seja assim para que haja mais profissionais diferenciados, do que se esteja sempre a recorrer às mesmas pessoas, seja por facilitismo ou ignorância.
Isso aconteceu neste “A Pequena Sereia”?
Neste casting só havia mulheres negras, muito por causa disso. Se por um lado acho que se deve ser livre para escolher o match vocal perfeito, por outro a representatividade sempre esteve muito presente na escolha da Halle Bailey e da personagem. Tiveram esse cuidado e eu concordo. Quando a mensagem passa por aí, é importante darmos-lhe foco. E percebo a escolha da Halle Bailey, é uma artista muito talentosa e também foi por isso que foi escolhida. Consigo entender que o público a rejeite pelo facto de ela fisicamente não ser parecida com a Ariel original. São personagens que ficam no nosso imaginário e quando trocam as suas características físicas, temos tendência a rejeitar. Mas também acho que deve haver alguma sensibilidade e perceber que as histórias são renovadas, contam-se de maneira diferente. E esta história até nem é muito diferente da original. Isto para percebermos que a cor da pele não é aqui uma questão.
Nem sequer é um traço característico que defina a personagem e influencie a narrativa.
Exatamente. A história está toda lá e acho que está a ser bem contada. No que toca à questão da representatividade, basta vermos todas aquelas crianças a verem o trailer e a sentirem-se representadas — ao vermos isso, acho que devemos todos apoiar a escolha e não rejeitá-la.
Tem sido uma semana em cheio. Há uma semana, lançava também o seu primeiro álbum.
Confesso que estou muito cansada, mas muito feliz. Tentei lançar o disco uma semana antes para que não houvesse confusão entre as duas coisas, mas não sabia que a banda sonora do filme ia sair no mesmo dia do disco (risos). Acabou por se misturar tudo, tinha medo que uma coisa tapasse a outra, mas acabou por ajudar. Houve uma mancha de Soraia Tavares. Foram engraçadas todas estas coincidências, até porque a capa do meu álbum também é parecida com a da banda-sonora.
Como é que descreveria o disco e a sua música para quem não a conhece?
O disco chama-se “A Culpa é da Lua” e é também o nome de um dos singles. Escrevi a canção por causa da minha relação com a lua, sempre achei que ela me dava azar. Quando chega a noite, ficamos sempre mais introspetivos. Escrevi-a na altura da pandemia, quando durante o dia estava super bem e à noite os medos e receios começavam a surgir. Achava que as sensações não podiam ser culpa minha, tinha que ser culpa da lua. E surgiu a canção.
E como é que desenvolveu o resto do álbum?
Mais tarde compilei as várias canções e decidi que as ia juntar. Fez sentido usar esse “a culpa é da lua”, porque tem várias fases de mim. Foi todo um processo de descoberta daquilo que queria cantar. O disco tem tanto de soul como de afro beat e kizomba. Passa por esses vários estilos. A meio do processo de preparação fiz um projeto que me fez reconectar com as minhas raízes, ouvir ainda mais música cabo-verdiana e aí deu-me mais vontade de cantar em crioulo. E a música foi-se transformando.
É filha de imigrantes cabo-verdiano, cresceu e formou-se por cá, lutou e hoje lança um disco e brilha num filme da Disney a dar voz a Ariel. Imaginava-se aqui há 10 ou 15 anos?
Imaginava sim (risos). Confesso que sempre me imaginei na melhor situação possível. A sensação que tenho é de que não estou perto do sítio onde quero estar, mas sei que cheguei longe e conquistei uma posição. Não deixa de ser inspirador para mim olhar para trás e ver tudo o que corri, o que conquistei. Não vou dizer é que nunca o imaginei, porque imaginei.
É uma otimista inveterada?
Sou sim.
Mas sente que, pelo menos nesta área, impera de facto a meritocracia? É possível qualquer pessoa de qualquer meio e origem ter sucesso?
Acho que ainda há muito por fazer. Já se conquistou muito, mas há muito por fazer. Ainda é necessário que hajam quotas para que muita gente, muitas culturas, muitas nacionalidades consigam introduzir-se no mercado de trabalho.
Sentiu isso no seu percurso?
Talvez, sim. Talvez pudesse ter facilitado o meu caminho. Sempre tive que dar 200, 300 por cento para conquistar o que tenho. Senti que tinha que dar muito muito mais do que os outros e, também por isso, hoje sinto que não sei descansar. Quando damos sempre muito mais, temos uma enorme dificuldade em festejar o que já conquistámos. Pensamos sempre: E agora? O que faço? O que vem a seguir?”. Isso causa muita ansiedade.
Se já se imaginava a chegar até aqui, o que é que imagina uma otimista para o que o futuro lhe reserva?
Imagino-me a fazer mais coisas como atriz, a fazer projetos internacionais. Como cantora… Temos sempre pequenos e grandes sonhos. Para já, na música, bom bom seria que as pessoas ouvissem este álbum e que pudesse fazer uma tour, inicialmente por Portugal. Depois? Logo se vê.