Carolina Torres tem um grande carinho pelo Cais do Sodré. Foi ali, naquela zona noturna no centro de Lisboa, que viveu quase uma segunda adolescência. Também ajudou que, quando se mudou para a capital portuguesa vinda de Vila Real, tivesse ido morar para ali bem perto.
Desde que concorreu ao “Ídolos” em 2009 que se tornou uma figura popular. Participou em diversos programas de televisão, apresentou o “Curto-Circuito”, fez teatro e várias iniciativas ligadas à música. Agora, está prestes a estrear o seu primeiro documentário — ela que estudou audiovisual mas que, por razões da vida, se tornou conhecida do outro lado, à frente das câmaras.
Carolina Torres é a autora e realizadora de “Caos do Sodré”, que estreia online na próxima quarta-feira, 27 de julho. A produção relata a história desta zona icónica da cidade, com foco nas melhores histórias dos bares e espaços culturais que abundam naquelas ruas — sobretudo entre os anos 70 e 90.
Entre os entrevistados encontram-se alguns donos dos clubes, mas também porteiros, empregados, músicos, DJ e figuras ligadas à noite. Samuel Úria, The Legendary Tigerman, Fernando Alvim, João Botelho, Kiko is Hot e Soraia Carrega são alguns dos nomes que dão os seus testemunhos.
O projeto é apresentado numa altura particularmente relevante para o Cais do Sodré. Três dos bares mais icónicos — o Tokyo, o Jamaica e o Europa — mudaram-se para novos espaços, junto do rio Tejo, onde deverão abrir em breve. O Sabotage, outro clube icónico, fechou portas há dois anos, motivado pela especulação imobiliária. O Viking está neste momento encerrado para obras. E há outros espaços que também desapareceram recentemente.
Para antecipar a estreia de “Caos do Sodré”, a NiT falou com Carolina Torres noutro spot daquela zona, o Antú. Leia a entrevista.
Porque é que quis fazer este documentário?
Sempre fui muito apaixonada pelo Cais do Sodré desde a primeira vez que cá vim, mas houve uma noite no Ménage… É um sítio só de strip-tease e as bebidas são mesmo muito caras e eu costumava ir lá já no fim da noite beber um café, só porque queria ver o strip e estar naquele sítio tão fora, mas não queria gastar muito dinheiro. Um café era, tipo, 3,50€. E o dono, o senhor António, explicou-me que não gostava nada de gente como nós. Ou seja, eu e os meus amigos que éramos todos do rock — vestidos de preto, botas, etc., na altura levava o rock um bocadinho mais a sério. E ele explicou-me que não gostava de nós porque tínhamos mau aspeto, mas que houve um dia há muitos anos, na década de 80, em que o Cais passa da prostituição ao rock n’ roll por causa de uma noite em que o António Sérgio vem beber um copo ao Tokyo. O DJ apercebe-se de quem é aquele senhor e oferece-lhe uma bebida. E o senhor António disse: “mas pagas com o teu dinheiro, não é com o meu!” Na altura, o António Sérgio era o radialista do momento, começou a publicitar o Tokyo e inventaram a Noite dos Heróis que era uma noite de rock. De repente, o senhor António tem a casa completamente à pinha com malta do rock, que não quer prostituição, que só quer beber normalmente e ouvir música. E apercebe-se de que há ali um novo modelo de negócio que acaba por ser um bocadinho a transição do Cais do Sodré.
E aí o Cais do Sodré torna-se, se calhar, numa zona mais cultural, menos conotada com a prostituição.
Sim, o Cais já sofreu muitas mutações e passou por muitas fases. Durante muitos anos, sobretudo no pós-25 de Abril mas também um bocadinho antes, recebia muitos boémios, jornalistas, poetas, escritores, pessoas inteligentes e interessantes que vinham para aqui ver este mundo tão fora e viver um bocadinho isto.
Disse que gostou do Cais do Sodré desde as primeiras vezes que cá veio. Quais são as suas primeiras memórias nesta zona de Lisboa?
Para contextualizar, quando fiz a universidade não gostava muito de álcool. Tinha experimentado muitas coisas mas ainda não tinha bebido nada que… bebidas brancas não é muito a minha cena. Cerveja e vinho, sim, mas não tinha muito esse foco. Cá em Lisboa acabo por ter uma segunda adolescência dentro dessa vida boémia. Porque estudei num sítio bastante fechado, muito bonito mas com poucos bares, que era Vila Real. E lá já apanhava o autocarro algumas vezes e vinha para aqui sem a minha mãe saber — ela entretanto descobriu [risos]. Vinha viver este sítio. Sentia exatamente aquilo que as pessoas todas sentem: a imprevisibilidade de as coisas acontecerem aqui. Podes estar aqui com os teus amigos, com malta portuguesa normal, ou malta de fora, músicos, atores, pessoas interessantes. A noite no Cais que me marcou mais foi mesmo no Viking, em que há um momento qualquer que não sei explicar, que entra a Fabiana — uma mulher muito alta, com um cabelo muito bonito e começa a dançar. Era a primeira vez que estava num sítio tão fora. E olhei para aquilo e pensei: sou a miúda mais sortuda do mundo. Só tinha amigos músicos e malta das artes na altura em que vim para Lisboa. De repente estava num sítio super fora, com uma mulher gigante a dançar, num sítio chamado Viking só com velhotes a servir… Eu era uma miúda um pouco da terrinha e de repente estava no centro de Lisboa, num dos sítios mais interessantes em que estive na minha vida.
Nessa altura ainda estava na faculdade?
Não, nessa altura já estava em Lisboa. Na primeira vez mesmo fui parar ao Europa, lembro-me de que perdi um cachecol e passados quatro anos voltei lá e disse: vocês por acaso não têm aqui um cachecol? Eles perceberam o quão inocente eu era.
Estava a explicar como teve a ideia de transformar este fascínio pelo Cais do Sodré num documentário, mas depois como é que a coisa se começou a concretizar? Já sabia mais ou menos com quem é que queria falar? Como é que a coisa se desenvolveu?
Para explicar melhor, estudei audiovisual, ou seja, cinema, fotografia e multimédia. Portanto, a parte técnica e de estar atrás das câmaras era algo muito natural para mim. Só que nos exercícios de escola metiam-me muito à frente da câmara, sempre tive bastante à vontade em palco. No fundo, acabou por ser um erro o meu percurso de vida ter ido para o lado contrário, porque estava era a formar-me para ficar atrás das câmaras. Houve sempre essa vontade da minha parte em fazer coisas minhas e ter os meios e o know-how para as fazer.
Já era um mundo familiar para si.
Exato, preparar um documentário ou um programa. Em relação ao Cais especificamente, acho que o nosso País não tem muito orgulho cultural para fazer coisas sobre nós. Acho que agora está a existir mais isso. Há mais apoio na ficção, nos documentários, as plataformas também começam a ter interesse nas coisas portuguesas… Mas temos imensas histórias super estranhas que, se fosse noutro país qualquer, já haveria um filme sobre isso. Temos um assassino em Nova Iorque, histórias de mães que matam filhas e cenas super fora com que somos bombardeados diariamente, mas nunca ninguém pega naquilo com uma obra cinematográfica. E à medida que fui descobrindo as histórias do Cais, pensei: tenho de documentar isto de alguma maneira. Inicialmente, a minha ideia era só pegar numa câmara e começar a filmar e depois via-se. Mas, felizmente, neste ano que passou o governo teve a decência muito fixe de criar o Garantir Cultura, e foi a partir dessa verba que conseguimos algum dinheiro para começar a fazer o documentário. Depois foi só escolher uma equipa fixe, de pessoas de que gostasse muito e em quem confiasse.
Por onde é que começou a gravar?
Comecei sempre por pensar no senhor António, que me contou coisas como: as mulheres não podiam andar de um bar para outro sozinhas, atravessando a rua, porque eram presas. A polícia vinha e levava-as para a esquadra. Corta para: eu vir aqui e ver a prostituição e strippers e beber copos e estar à vontade. Nunca me senti desprotegida nem me senti mal. Nunca houve nenhuma situação… Só levei uma cabeçada uma vez, mas pronto [risos], nem tudo pode ser bom. Mas saberes que o assassino do Martin Luther King passou cá 10 dias e envolveu-se com uma prostituta portuguesa — com várias, na verdade — e dessa história surge um romance gigante que é todo mentira. E toda a gente conta esta história como se eles se tivessem apaixonado durante anos e trocado cartas e é tudo mentira. Mas se perguntares aqui, as pessoas pensam mesmo que foi assim. É fixe ver os mitos a terem mais força do que a verdade, saber que já tivemos cá a malta de “Os Sopranos”, que supostamente o Robert De Niro esteve a bater à porta do Musicbox. É uma cena super fora teres estas personagens todas.
Foram essas histórias que foi colecionar.
Sim, mas o senhor António era a chave, o homem que já deu palestras sobre isso, que tinha as coisas mais na memória… Mas também quis ter malta mais nova, porque também acaba por fazer parte disto. Quis misturar as duas coisas. E havia pessoas que queria entrevistar que já faleceram. Por isso achei que teria de ser agora, que não queria usar esse dinheiro para fazer outro projeto, tinha de ser este porque não podemos perder mais estas personagens, estas histórias.
De todas as histórias, qual é que a surpreendeu mais?
Acho que a do James Earl Ray, o assassino do Martin Luther King. Eu andava louca atrás da verdade da história, consegui encontrar um jornalista incrível que entrevistou a prostituta, a Maria — ainda por cima tem um nome tão português. Toda a história é super fora.
A ideia foi também retratar a evolução do Cais do Sodré? Tentaram falar com os responsáveis pelos clubes todos? Como é que fizeram a seleção, qual foi o critério?
Sim, tentámos os mais antigos, os mais puros… Há um homem, o senhor Augusto, que diz “Eu vim da tropa, cheguei aqui ao Cais do Sodré e fiquei sócio” de X bares. E nós ficámos a olhar para ele e a perguntar-nos: como? Este são o tipo de coisas que aconteciam no Cais, pequenos bares em que eras um gajo trabalhador e tinhas logo uma sociedade, ou maneira de crescer muito rapidamente. Estas pessoas mais antigas são engraçadas e por vezes cruzamo-nos com elas no Cais, apesar da bebedeira…
E têm sempre boas histórias.
Têm. E às vezes a meio da noite: este é o dono do não sei quê! E vamos fazendo perguntas parvas e acho que é isso que faz com que o Cais continue a ser o Cais. Mas isto agora vai sofrer muita mudança.
O documentário também é relevante neste momento por causa disso.
Sim, precisamente, é muito importante fazermos este retrato agora porque não sabemos qual será o próximo estado do Cais. Três dos bares saíram e foram para perto do rio, o Viking continua em obras, o Sabotage saiu — era um dos meus bares preferidos e era o local com mais concertos do País, porque era de terça-feira a sábado, uma coisa insana. E nós não sabemos bem o que vai acontecer. De repente tens montes de turistas, mojitos na rua, e coisas que não são bem Cais mas que são igualmente bem-vindas. Porque há lugares como este, como a Collect, continuas a ter alguns dos bares mais antigos, então não sabes bem o que vai acontecer.
É o fim de uma era no Cais do Sodré?
Acho que sim, sem dúvida. Mas pode ser o início de outra. E vai depender muito dos projetos que sejam feitos. Agora, tornar esta zona altamente turística com hotéis e Airbnb, que é o que está a acontecer muito à volta da cidade… Isto também é uma chamada de atenção porque este lugar tem mesmo muita história e passou por muitas mudanças e isto pode perder completamente o interesse para um português. Mas pode ser um sítio fixe de turismo. Espero que não, que não seja só isso porque se não descaracterizas completamente a cidade. O que vai acontecer é que as pessoas vão chegar aqui e vão ver um sítio como outro qualquer. E não é essa a ideia: vêm para Portugal para conhecerem o País, não é?
Também entrevistou músicos como o Samuel Úria ou o The Legendary Tigerman. Porque quis ouvir a visão deles sobre o Cais do Sodré?
Eu entrevistei para aí 97 por cento das pessoas com quem já curti no Cais [risos]. É mesmo uma cena muito minha. Tive noites incríveis com os meus amigos músicos de cá, mas o Tigerman tem histórias ainda dos anos 80. Ele tocou aqui com os Tédio Boys e não sabe onde é que foi, não faz ideia — e isso é que é o Cais do Sodré [risos]. Acho isso super engraçado e ele viveu o Cais do Sodré numa fase diferente. O Úria costumava ir ao Come. E Cala-te e ao Tokyo, mas lembro-me de uma festa muito específica no Viking que foi o Chupa Rock N’ Roll, em que houve um karaoke, e essa noite foi mágica porque ficámos todos muito amigos.
Qual é o clube com as melhores histórias? É mesmo o Viking?
Todos eles têm histórias diferentes, nenhuma delas é especificamente de um bar. Acho que o Viking tem boas histórias, mas o Texas Bar, o antigo Musicbox, reza a lenda que tinha um barco — em vez de um palco — preso na parede que era onde as bandas tocavam. Há coisas muito fora. Mas no Viking há uma história que adoro, que é um rapaz que se entusiasmou com o strip e a Fabiana caiu em cima dele e… o resto vocês terão de ver o documentário.
Este projeto fica por aqui? Ou está a equacionar fazer uma segunda parte ou até outra iniciativa relacionada com o Cais do Sodré?
Não pode ficar por aqui. Primeiro, porque tenho 10 horas de gravação e não queria já maçar as pessoas, então tenho de colocar quase um teaser grande daquilo que temos. E, depois, porque isto é um problema: tu entrevistas uma pessoa e ela fala-te super entusiasmada de quatro outras pessoas, então queres entrevistar também essas quatro pessoas… Acaba por ser um esquema de pirâmide terrível e dá-te muita pica continuar a fazê-lo. A certa altura sei que vou ter que parar, mas aquilo que tenho agora é suficiente para fazer duas partes. E sei que, quando isto for lançado, as pessoas vão-me enviar mais histórias.