Cinema

Chegou o documentário para descobrir Ennio Morricone, o génio da música (e do xadrez)

Não é só um dos maiores compositores de bandas-sonoras do cinema, é um dos grandes compositores da história da música.
O compositor morreu em 2020

Em 1972, Bobby Fischer e Boris Spassky protagonizavam a partida de xadrez do século — que terminou com a vitória do norte-americano. Mais de duas décadas depois, o grande mestre soviético do xadrez sentava-se para uma partida amigável num torneio com dezenas de jogadores. As partidas começaram todas ao mesmo tempo. No final, só Spassky e o seu adversário se mantinham num aguerrido jogo mental.

À sua frente estava nem mais nem menos do que Ennio Morricone, o lendário compositor italiano que marcou uma era no cinema. Para Morricone, o xadrez era uma verdadeira paixão, apenas superada pela música.

“Se não me tivesse tornado compositor, quereria ter sido jogador de xadrez, mas um de nível elevado, alguém que pudesse competir pelo título mundial”, recordou em 2009, numa entrevista à “The Paris Review”.

Se soubesse que poderia atingir esse nível, Morricone não tem dúvidas de que “valeria a pena deixar a carreira na música”. “Mas isso não era possível. Tal como não foi possível perseguir o meu sonho de criança de ser médico.” Nunca estudou ciências. O mesmo não se pode dizer da arte do xadrez. Ao longo da sua vida, dedicou muitas horas a estudar partidas, jogadas e estratégias. Afinal, havia uma semelhança entre as suas duas virtudes.

“O xadrez está relacionado com a matemática e a matemática está relacionada com a música, tal como Pitágoras reclamava”, exclamou. O embate com Spassky terminou num empate — o que, na prática, significa uma vitória para Morricone ou para qualquer outro que consiga impedir a vitória de um grande mestre.

Ennio, por sua vez, conquistou o direito de ser um grande mestre na arte que aperfeiçoou. Ao longo de mais de 60 anos a compor, transformou-se no mais reconhecido nome na composição de bandas-sonoras para o cinema. Só que a sua obra ultrapassou as salas de cinema e há até quem ouse apelidá-lo de um dos grandes compositores da história ao lado de nomes como Bach ou Mozart.

O italiano que morreu em 2020, aos 91 anos, foi homenageado da forma mais esperada. O cineasta Giuseppe Tornatore puxou das memórias e do seu talento para honrar o mestre e colega de trabalho de mais de 30 anos. “Ennio, o Maestro”, que foi lançado em 2021, chega esta quinta-feira, 2 de fevereiro, aos cinemas portugueses.

Coincidentemente, a colaboração de ambos começou com “Cinema Paradiso”, a carta de amor ao cinema idealizada por Tornatore e que foi magistralmente embrulhada com as composições de Morricone. O filme viria a conquistar o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1989.

A produção do documentário antecedeu a morte de Morricone. “Os produtores perguntaram-me se queria fazer o documentário e eu disse que sim, mas apenas se o Ennio aceitasse falar. Eles foram falar com ele e ele disse que sim”, recorda Tornatore, a propósito da habitual relutância do compositor em dar entrevistas. “Quando começámos a gravar, disse-lhe logo: ‘Ennio, aqui não temos limites, podemos contar tudo.’ Demorámos onze dias até que ele chegasse ao ponto de aceitar a ideia de que deveria ser ele a dar o seu testemunho.”

Morricone não ficou com o ónus solitário de falar sobre o seu trabalho. Presentes no documentário estão cineastas e compositores, atores e cantores. A lista é invejável e reveladora do poder, influência e mestria de Morricone: John Williams, Hans Zimmer, Quentin Tarantino, Bernardo Bertolucci, Dario Argento, Clint Eastwood, Bruce Springsteen.

Filho de um trompetista, cresceu no pitoresco bairro romano de Trastevere e, curiosamente, foi colega de escola de Sergio Leone, o cineasta com quem, anos mais tarde, faria colaboração nos muitos spaghetti western que marcaram a história do cinema italiano. Foi graças ao pai que aprendeu a ler música e a tocar, ao ponto de ter assinado a sua primeira composição com apenas seis anos. Aos 12 anos entrou para o conservatório e nunca mais largou a música.

Tocou em bandas e orquestras, trabalhou na sombra para compositores conhecidos e fez arranjos para alguns dos grandes nomes da música italiana. Mas era preciso pôr pão na mesa e nos anos 50 começou a compor peças para filmes em nome de outros compositores — assinava sempre com um pseudónimo com nomes ingleses. Em 1959, criou a sua primeira banda-sonora para “Morte di un Amico”, de Franco Rossi, mas a estreia oficial, sob o seu nome verdadeiro, acontece em 1961 com “Il Federale”

“Nunca pensei que a música fosse o meu destino. Quando fiz o meu primeiro filme, disse: ‘Em 1970 deixo o cinema de vez.’ Ao início, pensava que fazer bandas-sonoras era humilhante. Queria a minha vingança, queria conquistar essa culpa.” E foi o que fez, ao provar que é possível criar obras épicas e intemporais para qualquer meio.

Ao longo de mais de duas horas e meia, “Ennio, o Maestro” percorre algumas das suas melhores obras, explicadas e contextualizadas pelos homens que trabalharam lado a lado com o mestre. Curiosamente, Morricone teve que esperar pelo seu último filme para levar um Óscar para casa, ele que apesar da ligação a Hollywood, nunca abandonou a sua Itália.

Não venceu com “A Missão” em 1987 nem com “Os Intocáveis em (1988). E apesar de ter conquistado um Óscar honorário em 2007, só em 2015, com “Os Oito Odiados” de Quentin Tarantino é que mereceu o reconhecimento da Academia.

“Ao fim de cinco nomeações, não estava à espera de nada. Aliás, esperava manter o estatuto de não-oscarizado”, revelou em 2007, após a entrega do troféu honorário. “Ter-me-ia mantido na companhia de outros ilustres que nunca venceram como Stanley Kubrick”, confessou, enquanto desvalorizava os galardões. “Olho para os Óscares como uma espécie de lotaria — mesmo que os vencedores tenham merecido as estatuetas.”

Carregue na galeria para conhecer as séries que chegam à televisão em fevereiro.

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