Tem sido um dos temas mais discutidos nos últimos dias. A invasão de palco e interrupção da peça “Tudo Sobre a Minha Mãe” — que ocorreu no Teatro São Luiz, em Lisboa, na quinta-feira passada — lançou para o espaço público uma discussão sobre inclusão e representatividade trans no meio artístico dos atores.
Keyla Brasil, atriz e performer, subiu semi nua ao palco e caracterizou o trabalho de André Patrício como “transfake” — ou seja, criticou o facto de um ator cisgénero interpretar uma personagem transgénero, alegando que as pessoas trans têm dificuldades em aceder a trabalhos na área da representação e apontando a discriminação diária de que sofrem.
Embora em graus distintos, tanto André Patrício como o encenador Daniel Gorjão e a própria companhia Teatro do Vão mostraram-se solidários com a causa, legitimando as razões do protesto. Esta encenação de “Tudo Sobre a Minha Mãe” já incluía uma atriz trans a encarnar uma das personagens trans, com Gaya de Madeiros a fazer de Agrado; mas a personagem de Lola era interpretada por André Patrício. Depois do protesto, a companhia de teatro reagiu rapidamente e convidou a atriz trans Maria João Vaz para fazer de Lola nas restantes datas. André Patrício manteve-se na produção, para dar vida a outras personagens.
O termo “transfake”, provavelmente desconhecido para a grande maioria dos portugueses que se depararam agora com este tema, é muito usado no Brasil — a origem da artista que invadiu o palco do Teatro São Luiz. Em várias páginas nas redes sociais, grupos de ativistas alertaram para o problema como parte da ação de protesto.
“O termo ‘transfake’ descreve a ação de artistas cisgénero que participam na exclusão de trabalhadores culturais trans através da apropriação de papéis trans. O casting transfake é transfóbico. Nega o nosso acesso ao emprego, deturpa e ridiculariza a nossa experiência, e mantém a lógica da nossa opressão. O casting transfake não é representação trans. É uma forma de discriminação que procura manter estereótipos preconceituosos”, escreveu Dusty Whistles no Instagram.
No ano passado, tinha sido lançada uma petição pública digital que protestava contra outra peça de teatro portuguesa acusada de transfake. Tratou-se de uma encenação de “Eu Sou a Minha Própria Mulher”, do Teatro Experimental de Cascais (TEC), no Teatro Municipal Mirita Casimiro. Marco d’Almeida interpretava várias personagens, entre as quais uma mulher transgénero, Charlotte.
“O texto de divulgação do TEC descreve Charlotte numa retórica transfóbica, tão simplista quanto sensacionalista, tornando a sua identidade de género um foco de atenção. Nas palavras do TEC, e depois reproduzido e promovido pela DGArtes, Charlotte seria como ‘uma mulher nascida num corpo masculino’, ou mesmo ‘um homem que era uma mulher que era Charlotte’. Ao fazê-lo, desrespeita a identidade de Charlotte enquanto mulher, e reproduz um conjunto de estereótipos em torno de corpos trans como corpos confusos, equívocos, ou ridículos”, pode ler-se no texto da nota de repúdio, que foi assinada por 317 pessoas.
“Consideramos o casting de Marco d’Almeida para representar Charlotte von Mahlsdorf uma escolha transfóbica, violenta, e excludente. A escolha de um ator cisgénero para representar uma mulher trans perpetua um conjunto de presunções transfóbicas, através das quais pessoas cisgêneras capitalizam com as vidas e vivências de pessoas trans. Isto reproduz uma dinâmica tanto de exclusão simbólica como de exclusão profissional, que pontua a experiência de artistas trans e não binários e a sua relação com o setor cultural”, acrescenta ainda o texto.
“Numa sociedade cissexista, que historicamente confrontou comunidades trans e não-binárias com a criminalização e patologização, a violência ou a morte, a expressão cultural trans é frequentemente confrontada com negação, apropriação, e apagamento. Como as instituições culturais e os organismos de financiamento artístico não contemplam a inclusão de trabalhadores culturais trans, as narrativas de pessoas trans e não binárias são muitas vezes compreendidas apenas no prisma de perspectivas, expectativas e desejos cisgéneros. As pessoas trans e não binárias são confinadas à vida nocturna, ao entretenimento, à imposição e à exigência de uma expressão binária de gênero e normas hegemônicas. O nosso trabalho é limitado a narrativas de sofrimento trans, para o consumo de audiências cis. Somos simbóliques, subvalorizades, e vistas como adereços descartáveis para elevar o capital social de pessoas cisgénero. É-nos negada a nuance da nossa humanidade, a diversidade interseccional das nossas experiências, a complexidade das nossas vozes, e as potencialidades das nossas imaginações.”
A representação trans lá fora
Na indústria de Hollywood, a mais dominante e influente do planeta, há sinais de progresso no que toca à representatividade trans — ainda que, como se pode comprovar por diversos relatórios e estudos publicados em vários países, as pessoas transgénero continuem a ser particularmente violentadas e discriminadas.
De acordo com um relatório da organização não governamental Gay & Lesbian Alliance Against Defamation (GLAAD), publicado em meados de 2022, contabilizaram-se 42 personagens transgénero nas séries de televisão norte-americanas — são mais 13 do que no relatório anterior. Isto significa que talvez haja uma maior abertura para personagens trans interpretadas por atores trans, mas também personagens cis interpretadas por profissionais trans.
Existe, inclusive, uma agência de talentos especializada em atores trans e não-binários, a Transgender Talent, que foi fundada em 2015 por Ann Thomas. “Antes ligavam para os centros LGBT: por acaso conheces alguém?”, recordou Thomas em declarações à “The Hollywood Reporter” no ano passado.
Curiosamente, essa tendência não se verifica nos filmes. De acordo com a GLAAD, em 2020, por exemplo, não houve uma única personagem trans num filme distribuído na maior parte dos cinemas. “A televisão é muito apoiante e inclusiva”, referiu ainda Ann Thomas. “Quando toca ao distribuidor internacional de um filme, uma grande distribuidora não pode ter personagens trans e depois exibir o filme em países como a Arábia Saudita. Um dos filmes da Marvel, ‘Eternals’, foi banido na Arábia Saudita simplesmente porque incluía uma cena sobre uma relação gay.”
Como não existem muitas oportunidades para interpretar personagens trans no cinema, Ann Thomas incentiva os seus atores a fazerem papéis cisgénero ou onde o género simplesmente não é um assunto. Foi assim, por exemplo, que o ator Zach Barack conseguiu um papel na turma de Peter Parker no filme “Spider-Man: Far From Home”.
Em 2021, foi lançada outra agência para ajudar profissionais trans e queer do entretenimento, sobretudo na área de Nova Iorque. A Arraygency é um projeto de Jason Rodriguez, uma das estrelas da série da HBO “Pose”, que se foca na comunidade trans e gay na Nova Iorque dos anos 80 e 90.
Porém, a representação por si só pode não ser suficiente para mudar radicalmente o panorama atual e dar voz a esta comunidade. De acordo com a GLAAD, que no final do ano passado fez um estudo sobre a representação trans na televisão desde 2002, 54 por cento das vezes as personagens são retratadas de forma negativa. E 35 por cento das vezes variam entre “problemáticas” e “boas”.
“Esperamos que as representações das pessoas transgénero na televisão evoluam para se tornarem tão diversas, inspiradoras e com tantas nuances como a comunidade que aquelas imagens refletem”, disse o presidente da organização, Herndon Graddick.
“Uma das coisas que os media podem fazer para ajudar é contratar atores trans para interpretarem personagens trans. Não só os atores trans têm uma maior dificuldade em arranjar trabalho do que os colegas cisgénero, como contratar atores cisgénero para fazer personagens trans simplesmente perpetua o estigma de que as pessoas trans apenas brincam às roupas, em vez de estarem a viver autenticamente como elas próprias”, pode ler-se num artigo publicado no site Good Housekeeping.
“A indústria do entretenimento pode ajudar [a comunidade trans] ao dar-nos mais oportunidades e melhores papéis, que não se foquem apenas na nossa sexualidade”, argumentou, por sua vez, a atriz Victoria Beltran em declarações à “Vice”.
Filmes como “Psycho” (1960), “Dog Day Afternoon” (1975), “O Silêncio dos Inocentes” (1991), “Albert Nobbs” (2011), “Dallas Buyers Club” (2013), “A Rapariga Dinamarquesa” (2015) ou “Zoolander 2” (2016) são apontados como exemplos negativos de usarem “transfakes” e prejudicarem a imagem da comunidade trans.
Os atores trans que se têm destacado na indústria
Há uma série de atores trans que, nos últimos anos, se têm destacado em vários papéis na indústria de Hollywood. Um deles é Elliot Page, que se manteve na série da Netflix “The Umbrella Academy” após fazer a transição. Mas, claro, já era um ator bastante conhecido.
Outro caso de sucesso é o de Hunter Schafer, que interpreta Jules, uma das principais personagens de “Euphoria” — que é uma das séries mais populares da HBO. O facto de não se focarem em qualquer crise identitária também é um ponto a favor na normalização de papéis trans. “Precisam existir mais papéis em que as pessoas trans não estão só a lidar com o facto de serem trans; elas são trans e lidam com outras coisas. Somos muito mais complexos do que uma única identidade”, disse Schafer à revista “Variety”.
Laverne Cox (“Orange is the New Black”), Asia Kate Dillon (“Billions” e “Orange is the New Black”), Indya Moore (“Pose”), Dominique Jackson (“Pose”), MJ Rodriguez (“Pose”), Jamie Clayton (“Sense 8”), Elliot Fletcher (“Shameless”), Josie Totah (“Glee”) ou Trace Lysette (“Transparent” e “Pose”) são outros atores trans que têm conseguido entrar em projetos de renome e com visibilidade nos últimos anos.
A dificuldade é maior para as mulheres trans. Como explica o ator Jake Graf, citado no mesmo artigo do site Good Housekeeping, é um privilégio ser apenas percecionado como “um dos gajos”. “Muito por causa da nossa fisicalidade, tivemos o luxo de levar uma vida discreta e abaixo do radar. Historicamente, as mulheres trans têm sido mais visíveis.”
A perceção sobre a representatividade trans continua a evoluir. Eddie Redmayne, que interpretou uma personagem transgénero no filme “A Rapariga Dinamarquesa” (2015), veio a público afirmar que não deveria ter interpretado aquele papel. “Fiz o filme com a melhor das intenções, mas acho que foi um erro. A maior discussão sobre as frustrações em torno de quem é contratado tem a ver com o facto de muitas pessoas ainda não terem um lugar à mesa. Tem de haver um nivelamento do terreno, se não, vamos continuar a ter estes debates.”
Leia também o artigo da NiT sobre Maria João Vaz, a atriz trans que ficou com o papel de Lola na peça “Tudo Sobre a Minha Mãe”, que vai agora ser apresentada no Porto.