Luís Figo é um dos nomes maiores do futebol português. Do futebol mundial, até. Em 2000, foi o protagonista de uma das transferências mais polémicas de sempre, quando trocou o Barcelona pelo Real Madrid. A história é agora relatada num novo documentário da Netflix, “O Caso Figo: A Transferência que Mudou o Futebol”, que estreou na plataforma a 25 de agosto.
As controvérsias com clubes marcaram o percurso de Figo desde o início. Logo em 1989, aos 17 anos, estava no Sporting e chegou a assinar um acordo com o Benfica — acabou por ficar no clube do Estádio de Alvalade após o Sporting dobrar a proposta. Foi na mesma altura que conquistou dois campeonatos mundiais de juniores sob o comando de Carlos Queiroz, como parte de uma geração de ouro. A seguir, em 1990, estreava-se na equipa principal do Sporting, onde permaneceu durante cinco anos.
As suas excelentes exibições tornaram-no num dos melhores jogadores da liga portuguesa e começou a destacar-se nas provas europeias. A prestação na Taça UEFA contra o Real Madrid, em particular, foi fundamental para atrair pretendentes internacionais. Nos anos 90, a liga italiana era uma das mais apetecíveis e competitivas do mundo. Parecia ser o destino natural para Luís Figo. Aliás, os seus compatriotas Rui Costa, Fernando Couto e Paulo Sousa tinham ido todos para clubes italianos.
As negociações com dois clubes, contudo, levaram a um desfecho bizarro. Figo dizia que só tinha assinado contrato com o Parma, mas a Juventus apresentara à liga um acordo com o jogador — que os representantes do futebolista alegavam apenas ser um pré-acordo. Graças à controvérsia gerada, a liga italiana decidiu suspender qualquer transferência e impediu Luís Figo de jogar em Itália durante dois anos.
Isso não o travaria, claro, de rumar a outro clube europeu. Dois meses depois da decisão em Itália, foi anunciado como o novo reforço do Barcelona. Luís Figo foi feliz em Camp Nou, o estádio do mítico clube da Catalunha. Conquistou dois campeonatos, duas Taças do Rei, uma Taça das Taças, duas Supertaças espanholas e uma Supertaça europeia. Acima de tudo, foi acarinhado pelo fervoroso público do Barcelona. Adotaram Figo, um dos melhores futebolistas do clube, como um dos seus. Tornou-se mesmo num símbolo da equipa.
Por isso mesmo, o que se passou em 2000 foi um completo choque para todo o mundo do futebol. O grande instigador da transferência foi Florentino Pérez, atual presidente do Real Madrid, que na altura se estava a candidatar pela primeira vez à liderança do histórico clube. Pérez tinha o sonho de alimentar o Real Madrid, um clube característico pelas vitórias mas não por representar nenhuma identidade cultural ou social específica, através da sua enorme mística. Desejava ganhar e enaltecer o sentido de superioridade. Transformar as camisolas brancas num sinal de grandeza. Para isso queria contratar os melhores jogadores do mundo, o que também ajudaria a trazer as tão necessárias receitas ao clube.
O objetivo de Florentino Pérez tornou-se, então, contratar Figo ao eterno rival, o Barcelona. Mas Pérez era um mero candidato — sem qualquer garantia de que ganharia as eleições numa altura em que o Real Madrid estava bem desportivamente e não existia um grande descontentamento entre a massa associativa. A ideia era que Figo fosse um trunfo eleitoral na campanha. O que parecia quase impossível para todos: um jogador icónico do Barcelona ia participar nas eleições do Real Madrid, sem qualquer garantia de vitória, arriscando-se a queimar o seu lugar em ambos os clubes? Sim, acabou mesmo por acontecer.
Os meandros da transferência são explorados no documentário da Netflix. Uma das revelações é que Paulo Futre desempenhou um papel relevante no processo. Um mês antes das eleições, foi chamado por um amigo em comum para se reunir com Florentino Pérez. De seguida, contactou o agente José Veiga, que começou a negociar todo o processo com Luís Figo.
Tudo se resumiu, claro, a dinheiro. A cláusula de rescisão de Luís Figo valia 60 milhões de euros, um valor ultra avultado para a altura. José Veiga pedia uma comissão de 10 milhões para concretizar a transferência. Acabou por conseguir seis — e Paulo Futre outros 1,5 milhões. Figo passaria a ganhar quatro vezes mais se aceitasse assinar pelo Real Madrid. Mas era demasiado arriscado se aceitasse de imediato a proposta.
Optou, então, por explicar ao Barcelona que tinha uma proposta em cima da mesa pelo valor da sua cláusula de rescisão. Queria perceber se o clube da Catalunha poderia melhorar o seu contrato para se manter na equipa. O próprio Barcelona também estava em processo de eleições e acabou por não dar essas garantias a Figo. Ninguém se quis comprometer. O vice-presidente, e principal candidato à sucessão, Joan Gaspart, acreditava que era um estratagema do português e do seu empresário para conseguirem mais dinheiro. Não acreditava que existisse realmente um clube disposto a pagar tamanho valor, quanto mais que fosse o grande rival de Madrid.
A verdade acabou por ser divulgada pela comunicação social duas semanas antes das eleições do Real. O que deixou Luís Figo numa posição desconfortável. Rapidamente enfrentou a ira dos adeptos. Deu uma entrevista ao jornal catalão “Sport” onde tentou acalmar os ânimos. “Não estou maluco a ponto de assinar com Florentino nem recebi 500 milhões de pesetas [o equivalente três milhões de euros] de adiantamento (…) Os adeptos podem estar tranquilos. A 24 [de julho] vou estar em Camp Nou.”
Depois dessas declarações, foi Florentino Pérez que ficou preocupado. E pressionou José Veiga a convencer Figo a dar uma entrevista ao jornal “Marca”, próximo do clube de Madrid, para esclarecer tudo. José Veiga tinha todas as razões para o fazer. Afinal, o acordo que tinham assinado incluía a cláusula de que, se Figo não assinasse pelo Real Madrid e Florentino vencesse as eleições, José Veiga era obrigado a pagar uma indemnização de 30 milhões de euros. Veiga e Futre juntaram-se então e foram ter com Figo, que estava a passar férias com a família.
Luís Figo aceitou encontrar-se com Florentino Pérez em Lisboa e saiu da reunião convencido. O futuro presidente do Real Madrid tinha um projeto desportivo e financeiro pensado e muito baseado na contratação do português, que seria a grande estrela. Figo convenceu a mulher, a quem a transferência não parecia uma ideia assim tão boa visto que obrigava a uma mudança brusca de vida, e a 24 de julho, no dia em que deveria regressar a Camp Nou (algo que até tinha prometido), foi apresentado oficialmente como novo jogador do Real Madrid. Começava assim a era dos galáticos — seguir-se-iam reforços como Zidane ou Beckham, entre outros, que asseguraram o sucesso de Florentino Pérez na liderança do clube.
Por sua vez, os adeptos do Barcelona passaram a odiar Luís Figo. Ficou visto como um traidor, um “pesetero” — ou seja, alguém para quem só o dinheiro importava. Tantos anos depois, Figo responde a isso mesmo neste novo documentário da Netflix. “As pessoas falam de sentimentos. Claro que tenho sentimentos, mas tenho de sentir que são recíprocos.” O futebolista insiste que o Barcelona não fez o suficiente para o manter e que o Real Madrid mostrou de facto o quanto queria contar consigo.
Em outubro de 2000, Luís Figo voltou a Camp Nou para defrontar o Barcelona. Foi recebido como se esperava: com apupos, cartazes insultuosos nas bancadas, e até lhe atiraram com uma cabeça de porco. Mas isso não o leva a pensar que tomou a decisão errada. Pode ter perdido alguns dos seus maiores fãs, mas em Madrid ganhou tudo. Desde salários milionários aos títulos conquistados (como a Liga dos Campeões), tornou-se um símbolo de uma nova era do futebol e um ícone no Real Madrid (embora depois tenham aparecido outros). Nesse ano conquistou ainda a Bola de Ouro. Para conhecer todos os detalhes desta história sumarenta, o melhor é mesmo assistir a “O Caso Figo: A Transferência que Mudou o Futebol”, na Netflix.