Num ano em que “Assim Nasce uma Estrela” ameaça ganhar todos os prémios, Alfonso Cuarón lançou discretamente uma pérola de cinema que é, para já, a primeira produção Netflix capaz de ambicionar à conquista do Óscar. Mais do que isso, “Roma” é uma obra para recordar e rever como os clássicos de Fellini ou Vittorio De Sica. Mas não se propõem aqui comparações; Cuarón criou um filme inequivocamente seu. O realizador escavou a sua própria infância — chegando até a procurar os móveis que decoravam a sua casa de família para compor os cenários — e tratou “Roma” como uma autobiografia que não o chega a ser. Isto porque a personagem principal é Cleo (Yalitza Aparicio), uma empregada doméstica indígena que, em circunstância normais, seria uma mera figura secundária da história.
Cleo trabalha para Sofia (Marina de Tavira) e Antonio (Fernando Grediaga), um casal burguês com quatro filhos pequenos — entre eles, o próprio Alfonso Cuarón. Tímida e sempre muito calada, Cleo (que na vida real se chamava Libo) assiste ao fim do casamento entre Sofia e o doutor Antonio, que decidiu sair de casa para viver com uma mulher mais nova. Sofia decide esconder a situação dos filhos, na esperança de que Antonio se arrependa e regresse ao lar. Ao mesmo tempo, Cleo envolve-se com um rapaz que a rejeita assim que descobre que engravidou.
A história passa-se na Cidade do México do início dos anos setenta e enquadra também a comoção política da época, incluindo o massacre de Corpus Christii que culminou na morte de 120 pessoas e que dá origem a uma das sequências mais memoráveis. Mas “Roma” — que é o nome do bairro onde vive a família, Colonia Roma — faz-se mais de pequenos momentos da vida quotidiana que de grandes cenas épicas. Alfonso Cuarón realiza com um olho clínico e a maior parte do filme é filmado em planos gerais. O que, em si, faz um contraste interessante: numa história tão íntima, a câmara mantém-se afastada, como se nos desse espaço para interpretar a ação. “Roma” não vem com um livro de instruções e é melhor por isso mesmo — a história é universal o suficiente para que nos identifiquemos com ela sem precisar que o filme dite o que é suposto sentirmos.
Além do trabalho magnífico de realização, produção e argumento, Alfonso Cuarón assumiu também a direção de fotografia. A responsabilidade era muita, visto que o autor está habituado a trabalhar com o grande Emmanuel Lubezki, mas o resultado não deixa de impressionar: “Roma” é um dos filmes mais bonitos do ano e merece ser visto no grande ecrã. Igualmente impressionante é o trabalho dos atores, que nos fazem esquecer que isto não é um documentário, com especial destaque para a jovem Yalitza Aparicio. É uma interpretação admirável, tendo em conta que foi o primeiro papel da atriz, que estudava para ser professora de pré-primária quando a convenceram a entrar no casting deste filme.
“Roma” não é uma história moralista fácil, mas sim um elogio aos desafios diários das mulheres que sofrem e lutam, muitas vezes sem recompensa ou reconhecimento. A afeição com que o realizador trata as suas personagens é evidente e dá uma dimensão profundamente humana a “Roma”. Isto não é só um trabalho para Cuarón, mas sim parte da sua vida derramada no ecrã e uma homenagem sincera às mulheres que o criaram. Há uma evolução óbvia entre este drama familiar e a grandiloquência espacial de “Gravidade”, o projeto anterior do realizador, que conquistou o maior número de Óscares em 2013 (fugiu-lhe o Óscar de Melhor Filme para “12 Anos Escravo”).
Desde então, o seu parceiro/rival Alejandro Iñarritu conseguiu o cobiçado prémio em 2014 com “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)” e Guillermo del Toro repetiu a façanha em 2017 com “A Forma da Água”. Se imaginarmos que esta é uma espécie de corrida saudável entre realizadores sul-americanos, Cuarón parece agora ter-se adiantado: “Roma” é simultaneamente o melhor e o mais pessoal filme da sua carreira. E uma obra-prima genuína, das que se guarda com carinho.