Cinema

Embaixada dos Açores: “Mãe, pai, filhos… sou realizador”

A nova curta-metragem de Luís Filipe Borges é uma comédia-romântica com Cristóvão Campos e Ana Lopes no elenco.
Está prestes a estrear.

É noite, estou sozinho num dos Apartamentos Basalto, na Madalena do Pico, lá fora chove e a ventania ainda lembra a saga que foi para cá chegar. É véspera do dia em que realizo um sonho de sempre. E a escolha verbal não poderia ser mais adequada. Tenho 47 anos, dois rebentos pequeninos, dormi menos de três horas, fiz uma escala superior a quatro horas em São Miguel, e estivemos na dúvida até à última da hora sobre a possibilidade de aterrar na Ilha Montanha. Estou exausto física e emocionalmente, contudo, esta segunda-feira, 6 de janeiro — sempre longe demais — é dia de saltos olímpicos da minha criança interior. Acontece a antestreia do meu primeiro filme como realizador. 

Há uma pequena vergonha a suprimir, algo que vinha sentindo amiúde, de cada vez (e não foram poucas) que a NiT escolhia destacar a nova peça da Embaixada dos Açores (mais de 30, já), com um destaque que rezava mais ou menos assim: “esta semana, o realizador Luís Filipe Borges escreve sobre ou conversa com”. Agora já poderei quiçá não corar quando e se isso voltar a acontecer.

Como é que isto sucede?

Tudo começa com a criação, por parte do brilhante agente cultural Terry Costa (da MiratecArts, próximo protagonista deste espaço, daqui a 8 dias) e dos três municípios da Ilha do Pico, do Prémio Curta Pico — uma excelente e muito necessária iniciativa para a criação cinematográfica açoriana. 

O concurso tinha duas fases: primeiro era preciso cumprir algumas premissas (como ter uma história que se passasse na Ilha Montanha), apresentar uma sinopse, equipa, objetivos, e houve cerca de 50 candidaturas. Desses projetos, três eram escolhidos como finalistas e aí já era necessário apresentar um guião completo, orçamento e elementos complementares (storyboard, por ex.).

Esse trio de candidaturas acabou nas mãos de um júri formado por dois grandes realizadores açorianos (a quem não foi revelada a autoria dos projetos): o Augusto Fraga (“Rabo de Peixe”) e o Rui Vieira (diretor criativo da Playground). Foi uma honra enorme ter o meu sonho escolhido como vencedor por estes dois profissionais. E com acesso a 10 mil euros, uma quantia bastante simpática para uma curta-metragem, sobretudo na nossa região. O filme acabou por custar 20 mil, mas lá me safei com o resto. 

Na primeira fase da candidatura, e por ser um apaixonado por comédias românticas (houve uma época em que literalmente ressacava se não visse pelo menos uma por mês; ah meus saudosos Rob Reiner, Nora Ephron, Richard Curtis, etc.), pareceu-me logo que ter uma narrativa desse género — na qual um casal se encontra pela primeira vez no majestoso Pico — era algo com potencial. Depois, quando avancei para a escrita do guião, ocorreu-me que seria delicioso se um deles tivesse convencido o outro de ser natural da ilha, o melhor guia possível da mesma e tal… quando, na verdade, nunca lá pôs os pés. E agora, como é que ele descalça a bota e o que acontecerá quando ela descobrir a verdade?

Na curta-metragem “First Date”, Santiago e Melissa flirtam numa rede social ou app qualquer. Ela adora Romana Petri, autora de livros passados na ilha do Pico. Ele quer desesperadamente conhecê-la. “E se o nosso primeiro encontro fosse lá? É a minha terra!”. A jovem americana aceita o desafio com espanto e entusiasmo. Agora, o lisboeta que se fez passar por açoriano tem um belo dilema para resolver.

O elenco conta com Ana Lopes, açoriana, bilingue, querida amiga de há muito, que viveu e trabalhou mais de 15 anos entre Los Angeles e Londres; Cristóvão Campos, seguramente um dos melhores atores portugueses; Gina Neves, estreia absoluta desta septuagenária descoberta em casting no Pico; Nuno Janeiro, companheirão e maravilhoso isco sexual da narrativa. Ah, o cinema passou largas décadas a objetificar mulheres, foi? Então provem lá do remédio.

E agora, Borges?

Agora segue-se pelo menos um ano de candidaturas a largas dezenas de festivais nacionais e internacionais e depois — quem sabe? — disponibilização online exclusiva aqui neste meu orgulhoso cantinho na NiT.

E depois? Bem. Realizar uma longa. Já está escrita, pelo menos. Nada mau. Arranjar o guito para produzi-la é que vai ser como subir o Pico 70 vezes.

O que falta para ouvirmos falar do Cinema Açoriano?

Incentivos, apoios, estratégia, visão. É uma questão que se prende com a nossa própria Identidade. Não existe melhor modo de levar os Açores ao mundo — suas culturas, tradições, história, elementos diferenciadores e peculiaridades — do que através da nossa criação audiovisual e cinematográfica — tal como o excecional Augusto Fraga demonstrou com a série “Rabo de Peixe”, ou como fizeram tantos trabalhos no currículo do enorme Zeca Medeiros. 

Se analisarmos os apoios concedidos neste âmbito e nos últimos 10 anos no contexto do RJAAC — Apoios Anuais à Cultura Açoriana — chegamos à conclusão de que rondam pouco mais de 100 mil euros por ano (para se ter uma ideia, isto é algo que paga dois episódios de uma mediana série de ficção em Portugal continental). Ora, uma produção de cinema ou de uma série implica invariavelmente equipas grandes, por vezes pequenos exércitos, e isso significa orçamentos onerosos.

Elenco, equipa técnica, equipa de produção, tudo gente que tem de ser hospedada, alimentada, material técnico de ponta, seguros, etc. Não é por isso possível nem viável tratar este sector no mesmo universo de apoios onde entram lançamentos de livros, filarmónicas, teatro, etc. E digo isto com o maior respeito e carinho, obviamente, por todas essas formas de expressão artística. São simplesmente realidades distintas, com custos de produção totalmente díspares e com expectativas de retorno económico e alcance de outra galáxia. O que os Açores precisam, neste campo, é de uma visão estratégica e de um fundo de apoio ao Audiovisual e Cinema Açorianos (F.A.C.A. — quer dizer, ainda por cima teria este nome, caraças!).

Há criadores e produtores extraordinários a fazer pequenos milagres nas ilhas — Francisco Lacerda, Diogo Lima, Diogo Rola, Sara Massa, Gonçalo Tocha, Pedro Gaipo, Rui Vieira, Maria João Sousa, Beatriz Reis, Catarina Gonçalves, etc — mas a situação como está não é sustentável. Precisamos de um Fundo que una, por exemplo, Secretaria Regional do Turismo, Direção Regional de Cultura, Vice-Presidência, Câmaras do Comércio, grandes grupos económicos açorianos como os Bensaúde e Finançor, a Associação de Municípios da Região Autónoma, enfim, um organismo que inclua um Gabinete de Apoio aos Fundos Europeus, e que possa garantir um milhão de euros anuais para o sector. Seria um ótimo princípio. 

Nota: um milhão são dois filmes apoiados pelo ICA, por ano, daqueles que depois vendem menos bilhetes do que o número de pessoas envolvidas na feitura das próprias obras. É que nem os primos vão ver.

E desculpem lá acabar com política, mas isto conduziria, em muito pouco tempo, à valorização dos profissionais açorianos de Cinema e Audiovisual e à criação de uma pequena indústria de produção local, dedicada a contar as nossas histórias e a partilhar os nossos valores, dos géneros documental à ficção, a uma larga audiência (nacional e internacional). E temos de ser nós a fazê-lo porque Lisboa e o Terreiro do Paço, esses sempre distantes tutores, estão-se nas tintas.

Atente-se no exemplo da Islândia, um território enorme mas com poucos mais habitantes do que os Açores (e muito longe de possuir uma Diáspora sequer comparável à nossa) mas que, porém, consegue produzir regularmente e com grande qualidade para plataformas internacionais de apelo massivo, como a Netflix. 

Imaginem só o que seria termos condições para contar as histórias de Peter Francisco ou de Brianda Pereira, dos piratas nas Flores ou da Little America em Santa Maria, adaptar os extraordinários livros de Pedro Almeida Maia para o pequeno ou grande ecrã (“Ilha América” ou “A Escrava Açoriana”, entre outros); ou simplesmente contar e criar histórias dos Açores contemporâneos, cosmopolitas e rurais, tradicionais e multifacetados, isolados geograficamente mas cada vez mais no centro (e bocas) do mundo. 

Tenho muita esperança de que algo próximo deste sonho — pelo qual venho batalhando — possa acontecer num futuro próximo, e acredito que Ponta Delgada, Capital Portuguesa da Cultura em 2026, poderá significar um passo decisivo nesse sentido.

Leia o artigo da NiT e conheça melhor a curta-metragem.

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