Uma mulher grávida diz ao marido que vai para um congresso no Porto. Na verdade, ruma em direção a sul até ao Alentejo — é lá que vai passar um fim de semana numa casa com piscina com a sua amante, a mais jovem Clara, que é atriz.
Aquilo que seria uma escapadinha romântica entre as duas amantes depressa ganha contornos bizarros e assustadores — o maior fantasma de todos, no entanto, são os problemas na relação entre as duas.
É esta a premissa para “Faz-me Companhia”, a primeira longa-metragem de Gonçalo Almeida, que estreou esta a 2 de julho — no mesmo dia em que duas das maiores exibidoras nacionais, a NOS e a CinemaCity, reabriram as suas salas por todo o País. Esta produção nacional de terror foi gravada há dois anos, durante cerca de 20 dias numa casa no Alentejo.
Cleia Almeida interpreta a mulher grávida, Sílvia, enquanto Filipa Areosa tem o papel de Clara. São as únicas duas personagens da história — só Eunice Muñoz faz parte do elenco além delas, usando apenas a sua voz para interpretar a dona da propriedade, responsável pelo aluguer.
A NiT entrevistou Filipa Areosa sobre este novo filme — e aproveitámos ainda para falar sobre o papel em que interpreta Natércia Maia, a mulher do protagonista em “Salgueiro Maia — O Implicado”, que estreia a 1 de outubro e cujas gravações terminaram esta semana.
Este é um filme com apenas duas personagens, basicamente. Foi um desafio maior por causa disso?
Olha, eu acho que não. Acho que até foi melhor para nós porque não há tanta confusão e era tudo muito mais condensado na história destas duas personagens. A Cleia é incrível, eu já tinha trabalhado com ela, e é muito fácil de trabalhar. E o Gonçalo também. Claro que a carga de trabalho é muito maior, mas é tudo muito mais fácil porque estás a seguir uma linha, não estás a saltar de apontamento em apontamento. É muito mais fácil.
Ou seja, não há tantas distrações nem personagens secundárias que vão aparecendo aqui e ali.
Sim, e também estou a comparar com o filme que acabei de fazer [“Salgueiro Maia — O Implicado”], que é muita confusão. É diferente, porque tem o fator de ser histórico e há muita coisa para assimilares, mas aqui foi uma linha contínua, é mais fácil de trabalhar sobre isso.
Neste caso, como é que se preparou para este papel de Clara?
Não tivemos muito tempo para nos prepararmos, o que tivemos foi mais com o [coordenador de stunts] David Chan, porque tínhamos cenas de ação na piscina e o Gonçalo quis mesmo que houvesse essa preparação. E depois tivemos reuniões, ensaios… Mas a preparação mais intensa foi realmente com o David com as cenas mais físicas. Depois, vi alguns filmes de terror, que não são propriamente a minha praia [risos], não é o que adoro mais, mas diverti-me muito.
Para ter referências?
Exatamente, e para perceber um bocadinho os tempos também. Mas o Gonçalo disse para não nos preocuparmos com isso, porque ele tinha uma ideia muito certa do que queria fazer, não houve muitas dúvidas quando estivemos a filmar. E nós perguntávamos e na maioria das vezes ele estava contente e quase nunca pedia para repetirmos cenas.
Neste filme interpreta a amante da personagem de Cleia Almeida. Interpretar uma mulher homossexual é, de alguma forma, um desafio? Exige uma preparação diferente? Ou é só mais um papel, como os outros?
Neste caso o desafio também foi fazer par amoroso com a Cleia, até porque ela é muito minha amiga e nós temos uma ótima relação. E ter cenas mais íntimas é complicado. Não é complicado, mas é mais desconfortável. Mas fizemos as cenas e correu tudo bem. Como a Cleia é a figura mais feminina no filme, eu tentei fazer um bocadinho o oposto. Dentro de aquilo que eu sou, e às vezes também dou um ar um bocado mais frágil, mas tentei ser o contraponto mais masculino. Até a minha imagem…
Estava mais virada para esse lado.
Exatamente, era mais forte. Mas em termos de relação, na verdade, aqui tanto podia ser um homem como podia ser uma mulher. O foco da coisa são as relações que têm fantasmas e que estão por um fio.
E foi fácil ter esse lado um pouco mais masculino?
Sim, acho que todos nós temos um lado mais feminino e outro mais masculino. Neste caso tive de puxar um bocadinho mais pelo meu lado masculino, mas acho que o figurino também ajudava muito nesse sentido. Na altura eu tinha acabado de cortar o cabelo, e não estava nada como eu queria e gostava, estava mesmo a sentir que aquilo fazia jus ao que era aquela personagem.
As filmagens aconteceram onde?
A casa fica no Alentejo, filmámos entre setembro e outubro. Já não estava aquele calor incrível, mas é o Alentejo. Durante o dia é muito fixe e à noite é um frio descomunal. As cenas na piscina foram um bocado mais difíceis de fazer [risos]. Mas foi muito, muito fixe. A equipa estava a dormir na casa e eu e a Cleia estávamos as duas a dividir uma casa no centro de Porto Covo. E isso ajudou também, para criarmos um bocadinho a nossa relação. Normalmente não acontece, não é? Cada um vai para o seu quarto no hotel… e isso foi muito fixe. Mas também a Cleia já está mais do que batida nisto, ela faz isto muito bem.
Foi um processo muito intensivo, 20 dias nos mesmos cenários?
Foi, muito intensivo. Mas estávamos com uma equipa que era toda de pessoas que já trabalharam com o Gonçalo e eram tudo pessoas novas, que sabiam muito bem o que queriam fazer, estava tudo muito bem estruturado, e quando chegámos era mais uma questão de nos ajustarmos ao sítio… Foi tudo muito sucinto e rápido. E tinha o bónus de ser uma equipa jovem, de pessoas novas sem merdas, tudo super tranquilo. Pessoas com vontade: isto é cinema e nós queremos fazer cinema como deve ser. “Se precisarem de mais tempo para fazer as coisas…” Havia um respeito entre todas as partes.
Estava a dizer que o cinema de terror não é bem a sua praia. Durante as gravações de um filme como este sente-se esse ambiente de terror? Ou, pelo contrário, é preciso tentar entrar nesse ambiente, com esses sentimentos?
Sente-se, senti um bocadinho. Nas cenas em que fazíamos na casa das máquinas, aquilo assustava-me um bocadinho. Até porque fizemos à noite e o Alentejo à noite é sempre um bocadinho mais vazio. E isso assusta um bocadinho. As cenas no campo de ténis também eram um pouco assustadoras, apesar de aquilo ser muito bonito. Mas ao mesmo tempo tinha um lado meio abandonado, sabes? E há uma cena em que a personagem da Cleia está à procura da minha personagem no meio do bosque e ela disse mesmo: “Eu estava cheia de medo, apesar de estarem pessoas à minha frente”. Eu não tive tantas cenas dessas, mais a piscina, que à noite também mete um bocadinho de medo. É engraçado que o ambiente da piscina traz um bocadinho isso: tu não sabes o que está ali. Lembro-me de quando era miúda nadar — sempre nadei — e quando estava sozinha na piscina aquilo era assustador. O Gonçalo noutro dia estava a dizer uma coisa muito gira: normalmente as coisas que nos trazem mais conforto depois quando as colocas nestas situações são aquelas que nos assustam mais. Nos filmes de terror jogas com isto, com as coisas com que não estás à espera que te assustem.
E esse medo que se sente nas gravações também pode ser útil para o papel?
Para o da Cleia sim, o meu não tanto. Eu entrei um bocado na maluqueira [risos], mandei-me um bocadinho. Às vezes aquilo até roçava um bocadinho o ridículo, mas é assim, não é? Às vezes o ridículo acontece. Mas acaba por ser divertido e libertador. A cena da piscina… No início eu estava: como é que eu vou fazer isto? Mas depois fiz e diverti-me imenso. A dada altura estava de rabo para cima a tentar ouvir sons e quem vai ver ficar “esta gaja está maluca”, mas era o objetivo.
Qual foi a cena mais complicada de fazer? Existe alguma em particular?
Há, e acho que isso se nota, porque é um bocado mais frágil da nossa parte. São as cenas de intimidade entre elas as duas. Foi difícil fazer. Não é que não estejamos à vontade, mas é aquela coisa, eu e a Cleia temos uma ligação e uma amizade muito de irmãs, então estarmos ali aos beijos uma à outra foi um bocado estranho… E nota-se, acho que se nota. Ou então somos só nós que notamos. Mas, de resto, a cena de luta dentro de água teve as suas dificuldades. A Cleia estava mesmo grávida e nós tínhamos cenas de luta mesmo. Já era difícil a luta por si, ainda mais com o frio que estava. Eu tenho de ser agressiva com ela, mas ao mesmo tempo tenho de ter cuidado porque ela está grávida e eu não quero que lhe aconteça nada de mal. Mas funcionou, acho que funcionou.
E depois desta experiência, gostava de fazer mais papéis de terror?
Adorava. Porque é muito divertido, fazes coisas que normalmente não tens a oportunidade de fazer. Nunca me imaginei na vida estar a fazer amor com uma piscina, por exemplo [risos]. Aquilo também tem muito o elemento da água, que é interessante, e os filmes de terror têm estas coisas mais peculiares, que normalmente os dramas e as comédias não têm. É muito fixe, eu adorava fazer mais, mas é um tipo de cinema que não se faz muito em Portugal. Mas pode ser que este abra caminho para isso também.
Aproveitando para falar do papel que tem no filme “Salgueiro Maia — O Implicado”, que personagem é que fez?
Eu vou ser a Natércia Maia, a mulher do Salgueiro Maia. Ela ainda está viva e nós tivemos oportunidade de estar com ela, antes de filmarmos. Foram milhares as perguntas que fizemos, só que eu queria estar sozinha com ela. E depois combinei com ela um almoço, só que foi dois dias antes da Covid-19. Eu fiquei doente — não apanhei, não foi nada, mas fiquei doente em casa. Só que como não sabia o que era, fiquei com um bocadinho de medo de me ir encontrar com ela, porque a Natércia já tem uma certa idade. E acabei por não ter mais proximidade com ela, mas este filme também não é propriamente um retrato exato. É romanceado. E conseguimo-nos defender por aí. Mas foi muito fixe. É uma visão diferente de quem era o Salgueiro Maia, é o lado mais romântico e familiar dele, que é desconhecido do público.
A Natércia Maia foi muito recetiva à ideia do filme?
Foi, foi super recetiva. E ela também deu-nos algumas dicas sobre a maneira como ela falava e como eles se tratavam. Acho que ela estava muito contente e emocionada. E foi muito engraçado. Ela foi ao set num dia que estávamos a gravar em Santarém, precisamente no dia do casamento. E ela emocionou-se muito ao ver-me a mim e ao Tomás Alves a interpretá-los a eles no casamento. Esteve connosco no dia do casamento dela, é muito engraçado, é um marco.
Claro, nem toda a gente tem o seu casamento retratado no cinema.
De todo [risos].
Como dizia, a maior parte das pessoas conhece o Salgueiro Maia por aquilo que ele fez mas não conhece a sua vida familiar — nem a vida da própria Natércia Maia. O que é que a surpreendeu mais?
Acho que era um casal muito unido. Eram pessoas com as quais não estamos habituados hoje em dia. São pessoas muito cúmplices e que na relação não precisavam de falar muito, não era preciso dizer muita coisa e as coisas aconteciam e eram feitas e eram bonitas. E isso surpreendeu-me. Não é um tipo de casal com o qual eu esteja habituada. As pessoas hoje em dia falam muito sobre tudo. E na altura as pessoas não falavam tanto. Tendo em conta a época é algo que faz algum sentido. E tinham um grande amor um pelo outro. Houve muitas coisas que fiquei a saber. Não sabia que eles tinham adotado uma criança, por exemplo, e não sabia que adotar na altura era algo excecional, que não acontecia tanto.
Tem feito filmes, séries, novelas, teatro. É porque gosta de equilibrar todas estas coisas? Há algumas de que gosta mais de fazer?
Acho que não há nada de que eu goste mais de fazer. Acho que depende dos projetos e das pessoas. Isto é tudo feito por pessoas e se o ambiente e o grupo for bom, acho que, mesmo que o produto final não seja bom, valeu e vale a pena. Não há assim nada de que goste mais de fazer. E depende do tempo que existe para os fazer. Se for uma coisa feita assim à pressa, sem tempo para as coisas ficarem bem feitas, eu não adoro. Mas acho que isso é comum, é transversal.
Qual é o seu próximo papel?
Depois da Natércia Maia, vou começar os ensaios para um novo filme — do qual ainda não se pode falar — e acho que em 2021 vou estar no teatro. Por enquanto é isso.