Para o papel crucial de três jovens, foram a casting cerca de 500 atores e não-atores, num processo que teve oito fases de seleção, espalhadas ao longo de um ano. Numa das audições, o realizador Gonçalo Galvão Teles deparou-se com Alba Baptista. “Pedi-lhe um improviso. Disse-lhe uma coisa que teria que dizer aos outros, algo bastante complicado. A certa altura, ela sai do estúdio e nós vamos atrás dela com a câmara”, recorda à NiT.
“Os outros ficaram a olhar para ela incrédulos, mas ela é assim, é alguém que traz vida para dentro das personagens. É uma força da natureza, tem um instinto quase sobrenatural”, frisa o professor, argumentista e realizador de 49 anos. Alba é apenas uma das atrizes que compõe o bem-recheado elenco de “Nunca Nada Aconteceu”, que é também o último filme de Filipe Duarte, ator que morreu em 2020, vítima de um enfarte.
O filme conta a história de Maria, Pedro e Paulo, “três jovens inseparáveis que enfrentam os dramas e desilusões próprios da idade, em que os seus encontros são os únicos momentos de felicidade e liberdade, onde experimentam e arriscam o que ninguém pode saber”. Além de Alba, os outros dois papéis ficaram nas mãos de dois talentos: Miguel Amorim, que deu início a uma carreira internacional; e Bernardo Lobo Faria.
Este último é o elo de ligação à família que está no centro da narrativa. Uma família disfuncional que junta, na mesma casa, três gerações. “O filme é um retrato transgeracional, de um avô obrigado a deixar a terra-natal para vir para a cidade ajudar o filho, desempregado, numa relação difícil com a mulher”, explica o realizador. “O avô partilha o quarto com o neto, que é a pessoa de quem mais se aproxima, mas que na verdade não conhece verdadeiramente, porque o jovem esconde um segredo com os seus dois amigos.”
Para Galvão Teles, “Nunca Nada Aconteceu” toca em temas universais e “fundamentais da existência de cada um de nós”. “Fala da adolescência, da entrada na idade adulta, na paternidade, o caminhar para o fim da vida, os medos e fantasias universais, o medo do futuro, o desejo de ser amado, a incapacidade de comunicar e a solidão a que isso pode levar.”
Foi um processo atribulado, aquele pelo qual “Nunca Nada Aconteceu” teve que passar até chegar, finalmente, aos ecrãs dos cinemas nacionais, esta quinta-feira, 29 de setembro. Com uma pandemia pelo meio, o filme de Galvão Teles ultrapassou obstáculos e, mesmo concluído em 2021, só ao fim de um ano chegou à meta.
Obrigou também a uma transição particular para o realizador que fez a sua carreira a cuidar de projetos próprios. O filho do também cineasta Luís Galvão Teles formou-se em Direito, mas passou grande parte dos anos de formação a estudar a escrita de argumentos. É, aliás, hoje professor no departamento de cinema e artes da Universidade Lusófona.
“Evolui naturalmente dos argumentos para a realização. Achei que tinha chegado a um bloqueio em relação à escrita, mas também sentia um apelo por tentar apropriar mundos e histórias criados por outros”, conta. Começou a trocar os seus argumentos pelos argumentos dos outros em “Gelo” e, mais tarde, na minissérie “Soldado Milhões”. Sentiu-se realizado.
Foi quando lhe chegou às mãos este argumento, um original de Luís Filipe Rocha, que sentiu que era exatamente esse o trabalho que queria fazer. “Queria um filme sobre personagens, sobre a vida, sobre aquilo que vemos quando nos olhamos ao espelho.”
Apesar de assumir que trabalhar a história dos outros acarreta “uma maior responsabilidade”, sente que ao ter acesso ao argumento já finalizado e acabado, isso permite “vê-lo com maior clareza de pensamento”, o que torna “tudo muito libertador”.
Além de Filipe Duarte e dos três jovens talentos, o elenco conta ainda com Rui Morrison, Ana Moreira, Beatriz Batarda e Gonçalo Waddington. “Sempre disse que este era um filme de atores e eles deram tudo. Podíamos ter toda a experimentação e evolução técnica, que se não conseguisse juntar-me com um grupo de atores com o tom certo para esta história, o resto de nada serviria”, nota. “Os atores são tudo e acho que este é um filme que vive completamente deles. Eles são a alma, o suor e o sangue do filme.”
Os elogios são recíprocos, repara Alba Baptista, apesar de já não se recordar propriamente de todos os pormenores da audição que marcou o realizador. “Não me recordo desse específico momento, mas lembro-me bem da liberdade que nos foi dada tanto na fase de audições como nas rodagens para improvisarmos e criarmos as nossas próprias cores para as personagens”, explica à NiT. “É, a meu ver, a abordagem mais saudável para encontrar verdade e conforto com a personagem.”
Sem desvendar muito dos segredos da história, a atriz de 25 anos e estrela da série da Netflix, “Warrior Nun”, explica que Maria, “se fosse um elemento, seria fogo”. “Tanto pode ser o refúgio, como a destruição.” Sobre o resultado final, Alba Baptista acredita “que a maioria dos espectadores levarão o filme para casa”. “É uma história que convida a reflexão.”
Entretanto, na cadeira do realizador, Galvão Teles assume-se cada vez mais confortável. “Sinto, absolutamente, que este é o caminho”, nota. “Digo sempre aos meus alunos que a marca de um realizador é terminar um filme e desejar ardentemente fazer o próximo.”
Não abdica, contudo, da carreira académica, apesar de já ter um desejo ardente por cumprir, como se impõe. “Acho que sou melhor realizador porque sou professor, e sou melhor professor porque sou realizador”, conclui. E talvez por isso, o próximo desejo passe mesmo por um cruzamento de interesses. “O que desejo ardentemente fazer agora? É um projeto com os meus alunos.”