Chama-se “Nayola” e é um filme de animação realizado pelo cineasta português José Miguel Ribeiro a partir de uma história original do autor angolano José Eduardo Agualusa — que entretanto passou por múltiplas mutações. Esteve em antestreia no festival Monstra e chegou aos cinemas nacionais a 13 de abril.
A narrativa centra-se na guerra civil de Angola, que se prolongou por 25 anos, e acompanha três gerações de mulheres durante o conflito armado. Lelena é a avó, Nayola é a mãe e Yara a filha e neta. A guerra marcou-as de formas distintas — mas acima de tudo é um acontecimento que moldou de forma inevitável toda a sociedade e as famílias angolanas.
“Nayola” tem sido bastante elogiado pela crítica e pelos espectadores de diversos países. Agora, prepara-se para estrear em Portugal. A NiT falou com José Eduardo Agualusa no Cinema São Jorge, no âmbito do Monstra. Leia a entrevista.
Esta história começou como um conto que entretanto se tornou peça de teatro e teve múltiplas versões. Agora é um filme de animação. É interessante que um texto seu possa gerar tanta vida artística?
Sim, é muito interessante pensar que começou por ser um conto meu; depois eu e o Mia, a partir desse conto, criámos uma peça de teatro; e depois resolvemos publicar o conjunto das peças e ela voltou a ser um conto. Mas já estava muito transformada, já era outra coisa. É muito interessante pensar nessas muitas vidas que um texto pode ter. Nunca imaginámos que isto poderia acontecer. Até porque a peça de teatro não correu tão bem. A primeira peça, que era uma comédia, correu muito bem. Depois o mesmo grupo de teatro pediu-nos esta outra e escrevemos um texto bastante mais denso, e mais sombrio também, que não correu bem. E para nós tinha morrido ali, não é? Aquela peça tinha acabado ali. Então foi muito interessante quando o Jorge António — um amigo meu de há muitos anos, um realizador português que vive em Angola, é casado com uma angolana e, enfim, é praticamente angolano — veio falar comigo e perguntou-me se poderia fazer uma adaptação para cinema. Nós dissemos logo que sim.
Pareceu-lhe logo uma boa ideia?
Pareceu-me uma boa ideia, mas não acreditámos nem pensámos muito nisso, na verdade. Depois fui ver os outros trabalhos do Zé [José Miguel Ribeiro] e percebi imediatamente que era sério, que não era uma brincadeira. Porque muitas vezes pedem-nos coisas, sobretudo para cinema, e 90 por cento não se concretizam. Inclusive recebemos adiantamentos e depois nunca há filmes. Acabamos por vender sucessivamente a vários realizadores. Mas assim que vi o trabalho do Zé percebi que era sério e depois vi o filme. Tanto eu como o Mia ficámos muito felizes e espantados pela forma como o guionista, o Virgílio [Almeida], conseguiu pegar naquela nossa história e transformá-la noutra coisa, mas respeitando o projeto inicial, por um lado; e, por outro, com uma grande poesia. O filme é muito, muito bonito. É um prazer enorme e uma grande alegria estar associado a um projeto como este.
Inicialmente o filme era para estar dividido em dois segmentos: um de imagem real e outro de animação. Acabou por ficar todo em animação.
Porque inicialmente era um projeto do Jorge António, que faz cinema com pessoas físicas. Mas, bom, acho que está maravilhoso.
Gostou logo da ideia quando soube que teria uma componente de animação? Permite expandir e explorar as emoções de outra forma, ou retratar diferentes épocas de forma distinta.
E todo esse trabalho poético que eles têm, de construção de metáforas… É poesia através do desenho, da ilustração, da imagem animada. Não era possível de outra forma. Vão ver o filme, é muito bom [risos].
E o filme tem gerado um ótimo feedback por onde tem sido mostrado.
É, não conheço ninguém que não tenha gostado. Agora o filme está a passar em França e recebo muitas mensagens e toda a gente adora. É impossível não gostar deste filme, é preciso não ter coração [risos].
Mas estava à espera que tivesse este impacto?
Depois de ver o filme, sim. Até digo com franqueza: o que me admira é que não tenha mais impacto. É um filme excecional, é muito bonito. A primeira vez que vi o filme foi no meu computador, com os meus filhos mais velhos. E a reação deles foi muito interessante. Porque a minha filha começou a ver e disse “mas é um filme angolano”. Acho que os angolanos se reconhecem imediatamente no filme. Porque as personagens são angolanas, porque aqueles garotos falam como os garotos angolanos. E a banda sonora, devo dizer, é extraordinária.
O facto de contar a história de três mulheres, de se focar no lado feminino da sociedade angolana durante os vários períodos da guerra civil, também era importante por às vezes não ser algo tão valorizado?
Bem, entre nós é valorizado… Quando eu e o Mia partimos daquela minha história, não foi sequer consciente. Porque é tão óbvio que a mulher é essencial na estrutura da sociedade angolana. As mulheres é que mantêm a sociedade em pé. Portanto, isso era tão óbvio que não foi sequer uma questão conversada. É uma evidência. Foi um processo natural.
O facto de esta história existir em vários formatos faz com que possa ser apresentado a diferentes públicos, e com um filme talvez até seja mais fácil que possa ser mostrada a muitas pessoas em diversos países. Tendo em conta a temática, no caso de Angola o filme é mais um formato artístico que contribui para que as pessoas possam lidar com os traumas e problemas enquanto sociedade? Porque se trata de um passado muito recente, que continua a ter grandes consequências.
Sem dúvida. Acho que sim, no caso de Angola pode ajudar as pessoas a conversar sobre a guerra. Não é que as pessoas conversem muito, não. E talvez seja importante fazer esse luto ainda. Por outro lado, fora de Angola o filme também dá uma imagem da cultura angolana. Mais uma vez, a banda sonora é extraordinária e não é muito evidente. É de quem conhece profundamente a música angolana. Porque vai buscar cantores como a Lily Tchumba, uma cantora dos anos 50 que em Angola, infelizmente, hoje, não é muito ouvida. O Mário Rui Silva, que está em Paris e produziu os primeiros discos do Bonga, e que também é menos conhecido do que deveria. Acho que o filme também serve para isso.
No caso específico de Portugal, onde as perceções são diferentes — por exemplo, por cá fala-se da Guerra Colonial, em Angola fala-se de uma guerra pela independência e libertação, por motivos óbvios. É importante que haja um filme como este para mostrar o outro lado?
Sem dúvida. O filme fala da guerra civil, que para nós é uma guerra muito mais devastadora do que foi a guerra de libertação. Mas está interligado. Infelizmente, até pelas piores razões, a guerra civil começou ainda antes da independência, durante a guerra colonial, porque os diferentes partidos já se combatiam. Mas, sim, o filme também deve e pode servir em Portugal para chamar a atenção para essa realidade angolana — acho que é conhecida em Portugal, até porque muitos portugueses se reconhecem, porque viveram em Angola. Mas vão ver este filme e vão gostar de o ver, tenho a certeza.